domingo, 25 de agosto de 2013

DILIGÊNCIA JURÍDICA BELO HORIZONTE ADVOGADO APOIO PARCERIA CORRESPONDENTE

DILIGÊNCIA JURÍDICA BELO HORIZONTE ADVOGADO APOIO PARCERIA EXTRAÇÃO CÓPIAS PROCESSUAIS

ASSESSORIA JURÍDICA ADVOGADO DILIGÊNCIA JURÍDICA BELO HORIZONTE

DILIGÊNCIA JURÍDICA BELO HORIZONTE ADVOGADO APOIO PARCERIA EXTRAÇÃO CÓPIAS PROCESSUAIS

Escritório de advocacia e consultoria localizado em um ponto estratégico da cidade de Belo Horizonte/MG, que conta com equipe composta de profissionais altamente qualificados e que atua, principalmente, nas esferas cível, consumeirista, previdenciária, criminal e trabalhista.
Pincer & Da Matta Advocacia & Consultoria atua também como escritório de apoio a escritórios de advocacia localizados em todo o Brasil, efetuando diligências jurídicas na cidade de Belo Horizonte/MG e região metropolitana, com os seguintes serviços:
- Cobrança extrajudicial;                                                                                                   
- Participação em audiências de conciliação e instrução e julgamento;
- Extração de cópias de peças processuais;
- Retirada de certidões, Carta Precatória;
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- Consulta de fase e andamento de processos judiciais (in loco);

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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

MICHEL FOUCAULT
VIGIAR E PUNIR
NASCIMENTO DA PRISÃO
Tradução de Raquel Ramalhete
29ª Edição
EDITORA VOZES
Petrópolis 2004
Sumário
Primeira Parte
SUPLÍCIO
CAP. I - O CORPO DOS CONDENADOS, 9
CAP. II - A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS, 30
NOTAS, 57
Segunda Parte
PUNIÇÃO
CAP. I - A PUNIÇÃO GENERALIZADA, 63
CAP. II - A MITIGAÇÃO DAS PENAS, 87
NOTAS, 109
Terceira Parte
DISCIPLINA
CAP. I - OS CORPOS DÓCEIS, 117
A arte das distribuições, 121
O controle da atividade, 127
A organização das gêneses, 132
A composição das forças, 137
CAP. II - OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO, 143
A vigilância hierárquica, 143
A sanção normalizadora, 148
O exame, 154
CAP. III - O PANOPTISMO, 162
NOTAS, 188
Quarta Parte
PRISÃO
CAP. I - INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS, 195
CAP. II - ILEGALIDADE E DELINQUÊNCIA, 215
CAP. III - O CARCERÁRIO, 243
NOTAS, 255
Primeira Parte
SUPLÍCIO
Capítulo I
O corpo dos condenados
[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de
Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de
duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos
mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio,
queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em
fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus
membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.(1)
Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d'Amsterdam].(2) Essa última operação foi muito longa, porque os
cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não
bastasse, foi necessário, para desmembraras coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas...
Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios;
apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: "Meu Deus, tende piedade de mim;
Jesus, socorrei-me". Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de
sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente.
[O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da
mão mal e mal sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço
preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita,
depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que
forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do
mesmo lado ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de um escudo de seis libras.
Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o
mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada
ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir
a cada membro ao longo das coxas, das pernas e dos braços.
O senhor Lê Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer.
Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os
condenados: "Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor". Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava de
vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pêlos homens que puxavam as extremidades
faziam-no sofrer dores inexprimíveis. O senhor Lê Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria
dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o
crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: "Perdão, Senhor".
9 ▲
Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um
carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os
cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe
romper os braços nas juntas. Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se
olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante dos atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado
algum.
Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Lê Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe
disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Lê Breton, de volta da
cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas
caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar): "Beijem-me, reverendos".
O senhor cura de Saint-Paul não teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o
na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu ofício, pois não lhes
queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de Saint-Paul que rezasse por ele na
primeira missa.
Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma
faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as
duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços,
com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda
força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro.
Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar; mas o carrasco informou-lhes que ele
estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos
carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda
estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no
local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à
palha ajuntada a essa lenha.
...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se
consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os
oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros formados em destacamento, permanecemos
no local até mais ou menos onze horas.
Alguns pretendem tirar conclusões do fato de um cão se haver deitado no dia seguinte no lugar onde fora levantada
a fogueira, voltando cada vez que era enxotado. Mas não é difícil compreender que esse animal achasse o lugar mais
quente do que outro.(3)
Três décadas mais tarde, eis o regulamento redigido por Léon Faucher para a "Casa dos jovens detentos em
Paris"](4):
Art. 17. - O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de
durar nove horas por dia em qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o dia
terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão.
Art. 18. - Levantar. Ao primeiro rufar de tambor, os detentos devem levantar-se e vestir-se em silêncio, enquanto o
vigia abre as portas das celas. Ao segundo rufar, devem estar de pé e fazer a cama. Ao terceiro, põem-se em fila por
ordem para irem à capela fazer a oração da manhã. Há cinco minutos de intervalo entre cada rufar.
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Art. 19. -A oração é feita pelo capelão e seguida de uma leitura moral ou religiosa. Esse exercício não deve durar
mais de meia hora.
Art. 20. - Trabalho. Às cinco e quarenta e cinco no verão, às seis e quarenta e cinco no inverno, os detentos descem
para o pátio onde devem lavar as mãos e o rosto, e receber uma primeira distribuição de pão. Logo em seguida, formamse
por oficinas e vão ao trabalho, que deve começar às seis horas no verão e às sete horas no inverno.
Art. 21. - Refeições. Às dez horas os detentos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório; lavam as mãos nos
pátios e formam por divisão. Depois do almoço, recreio até às dez e quarenta.
Art. 22. - Escola. Às dez e quarenta, ao rufar do tambor, formam-se as filas, e todos entram na escola por divisões. A
aula dura duas horas, empregadas alternativamente na leitura, no desenho linear e no cálculo.
Art. 23. - Às doze e quarenta, os detentos deixam a escola por divisões e se dirigem aos seus pátios para o recreio.
Às doze e cinqüenta e cinco, ao rufar do tambor, entram em forma por oficinas.
Art. 24. - À uma hora, os detentos devem estar nas oficinas: o trabalho vai até às quatro horas.
Art. 25. - Às quatro horas, todos deixam as oficinas e vão aos pátios onde os detentos lavam as mãos e formam por
divisões para o refeitório.
Art. 26. - O jantar e o recreio que segue vão até às cinco horas: neste momento os detentos voltam às oficinas.
Art. 27. - Às sete horas no verão, às oito horas no inverno, termina o trabalho; faz-se uma última distribuição de pão
nas oficinas. Uma leitura de um quarto de hora, tendo por objeto algumas noções instrutivas ou algum fato comovente, é
feita por um detento ou algum vigia, seguida pela oração da noite.
Art. 28. - Às sete e meia no verão, às oito e meia no inverno, devem os detentos estar nas celas depois de lavarem as
mãos e feita a inspeção das vestes nos pátios; ao primeiro rufar de tambor, despir-se, e, ao segundo, deitar-se na cama.
Fecham-se as portas das celas e os vigias fazem a ronda nos corredores para verificarem a ordem e o silêncio.
Apresentamos exemplo de suplício e de utilização do tempo. Eles não sancionam os mesmos crimes, não
punem o mesmo gênero de delinqüentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal. Menos de um século
medeia entre ambos. E a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo.
Época de grandes "escândalos" para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do
crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes;
projeto ou redação de códigos "modernos": Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788;
França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal, uma era nova.
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Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos suplícios. Hoje existe a tendência a
desconsiderá-lo; talvez, em seu tempo, tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com exagerada
ênfase como "humanização" que autorizava a não analisá-lo. De qualquer forma, qual é sua importância, comparando-o às
grandes transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, com regras unificadas de procedimento; o júri
adotado quase em toda parte, a definição do caráter essencialmente corretivo da pena, e essa tendência que se vem
acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo os indivíduos culpados? Punições menos
diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e
despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos
arranjos com maior profundidade? No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo
supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.
No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de
punição vai-se extinguindo. Nessa transformação, misturaram-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia
nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado
e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração. A confissão pública dos crimes tinha sido abolida
na França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo; o
pelourinho foi supresso em 1789; a Inglaterra aboliu-o em 1837. As obras públicas que a Áustria, a Suíça e algumas
províncias americanas como a Pensilvânia obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas - condenados com coleiras de
ferro, em vestes multicores, grilhetas nos pés, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de
rancor ou de cumplicidade(5) - são eliminados mais ou menos em toda parte no fim do século XVIII, ou na primeira
metade do século XIX. O suplício de exposição do condenado foi mantido na França até 1831, apesar das críticas
violentas - "cena repugnante", dizia Real (6); ela é finalmente abolida em abril de 1848. Quanto às cadeias que arrastavam
os condenados a serviços forçados através de toda a França, até Brest e Toulon, foram substituídas em 1837 por decentes
carruagens celulares, pintadas de preto. A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar
de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser
compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um "fecho" ao crime mantinha com ele afinidades espúrias:
igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma
12 ▲
ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer
com criminoso, os juizes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de
piedade e de admiração. Beccaria há muito dissera:
O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos.(7)
A execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência.
A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias conseqüências: deixa o
campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstraia; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua
intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a
mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de
violência que está ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força, mas um
elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor. As caracterizações da infâmia são
redistribuídas: no castigo-espetáculo um horror confuso nascia do patíbulo; ele envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o
condenado: e se por um lado sempre estava a ponto de transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao
supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em infâmia a violência legal do executor. Desde então, o
escândalo e a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que marcará o delinqüente com sinal negativo
e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar
que a justiça tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância, tendendo sempre a confiá-la a outros e sob a
marca do sigilo. É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que
a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe. A execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que
um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da
pena. É um caso típico na França que a administração das prisões por muito tempo ficou sob a dependência do ministério
do Interior, e a dos trabalhos forçados sob o controle da Marinha e das Colônias. E acima dessa distribuição dos papéis se
realiza a negação teórica: o essencial da pena que nós, juizes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é
procurar corrigir, reeducar, "curar"; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação do mal, e liberta
os magistrados do vil ofício de castigadores. Existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de
punir, que nem sempre exclui o zelo; ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno
funcionário da ortopedia moral.
13 ▲
O desaparecimento dos suplícios é pois o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se
extingue. Em 1787, dizia Rush:
Só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forças, o pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão
considerados, na história dos suplícios, como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca
influência da razão e da religião sobre o espírito humano.(8)
Efetivamente, Van Meenen ao abrir, sessenta anos mais tarde, o segundo congresso penitenciário, em Bruxelas,
lembrava o tempo de sua infância como uma época passada:
Vi o solo semeado de rodas, de forcas, de patíbulos, de pelourinhos; vi esqueletos horrendamente estendidos sobre
rodas.(9)
A marca a ferro quente foi abolida na Inglaterra (1834) e na França (1832); o grande suplício dos traidores já a
Inglaterra não ousava aplicá-lo plenamente em 1820 (Thistlewood não foi esquartejado). Unicamente o chicote ainda
permanecia em alguns sistemas penais (Rússia, Inglaterra, Prússia). Mas, de modo geral, as práticas punitivas se tornaram
pudicas. Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-seá:
a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação - que parte
tão importante tiveram nos sistemas penais modernos - são penas "físicas": com exceção da multa, se referem diretamente
ao corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de
instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa
privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa
penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico,
a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis
a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à
distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais "elevado". Por efeito dessa nova
retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os
médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles
cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação
punitiva. É preciso refletir no seguinte: um médico hoje deve cuidar dos condenados à morte até ao último instante -
justapondo-se destarte como chefe do bem-estar, como agente de não-sofrimento, aos funcionários que, por sua vez, estão
encarregados de eliminar a vida. Ao se aproximar o momento da execução, aplicam-se aos pacientes injeções de
tranqüilizantes. Utopia do pudor judiciário: tirar a vida
14 ▲
evitando de deixar que o condenado sinta o mal, privar de todos os direitos sem fazer sofrer, impor penas isentas de dor.
O emprego da psicofarmacologia e de diversos "desligadores", fisiológicos, ainda que provisório, corresponde
perfeitamente ao sentido dessa penalidade "incorpórea".
Os rituais modernos da execução capital dão testemunho desse duplo processo - supressão do espetáculo, anulação
da dor. Um mesmo movimento arrastou, cada qual com seu ritmo próprio, as legislações européias: para todos uma
mesma morte, sem que ela tenha que ostentar a marca específica do crime ou o estatuto social do criminoso; morte que
dura apenas um instante, e nenhum furor há de multiplicá-la antecipadamente ou prolongá-la sobre o cadáver, uma
execução que atinja a vida mais do que o corpo. Não mais aqueles longos processos em que a morte é ao mesmo tempo
retardada por interrupções calculadas e multiplicada por uma série de ataques sucessivos. Não mais aquelas combinações
que eram levadas a espetáculo para matar os regicidas, ou como aquela com que sonhava, no começo do século XVIII, o
autor de Hanging not Punishment Enoughm, e que teria permitido arrebentar um condenado sobre a roda, depois açoitá-lo
até a perda dos sentidos, em seguida suspendê-lo com correntes, antes de deixá-lo morrer lentamente de fome. Não mais
aqueles suplícios em que o condenado era arrastado sobre uma grade (para evitar que a cabeça arrebentasse contra o
pavimento), seu ventre aberto, as entranhas arrancadas às pressas, para que ele tivesse tempo de as ver com seus próprios
olhos ser lançadas ao fogo; em que era decapitado enfim e seu corpo dividido em postas." A redução dessas "mil mortes"
à estrita execução capital define uma moral bem nova própria do ato de punir.
Já em 1760, se havia tentado na Inglaterra (por ocasião da execução de Lord Ferrer) uma máquina de enforcamento
(um suporte, que se escamoteava por baixo dos pés do condenado, devia evitar as lentas agonias e as altercações
ocasionadas entre a vítima e o verdugo). Foi aperfeiçoada e adotada definitivamente em 1783, no ano em que se suprimiu
o cortejo de Newgate em Tyburn, e se aproveitou a reconstrução da prisão, depois dos Gordon Riots, para se instalar os
patíbulos em Newgate mesmo.(12) O famoso artigo 3° do código francês de 1791 — "todo condenado à morte terá a
cabeça decepada" - tem estas três significações: uma morte igual para todos ("Os delitos do mesmo gênero serão punidos
pelo mesmo gênero de pena, quaisquer que sejam a classe ou condição do culpado", dizia já a moção votada, por proposta
de Guillotin, a 1° de dezembro de 1789); uma só morte por condenado, obtida de uma só vez e sem recorrer a esses
suplícios "longos e conseqüentemente cruéis", como a forca denunciada por Lê Peletier; enfim, o castigo unicamente para
o condenado, pois a decapitação, pena dos nobres, é a menos infamante para a família do
15 ▲
criminoso.(13) A guilhotina utilizada a partir de março de 1792 é a mecânica adequada a tais princípios. A morte é então
reduzida a um acontecimento visível, mas instantâneo. Entre a lei, ou aqueles que a executam, e o corpo do criminoso, o
contacto é reduzido à duração de um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas; o carrasco só tem que se comportar como
um relojoeiro meticuloso.
A experiência e a razão demonstram que o modo em uso no passado para decepar a cabeça de um criminoso leva a
um suplício mais horrendo que a simples privação da vida, que é a intenção formal da lei, para que a execução seja feita
num só instante e de uma só vez; os exemplos provam como é difícil chegar a este ponto. É preciso necessariamente, para
a certeza do processo, que ele dependa de meios mecânicos invariáveis, cuja força e efeito possam ser igualmente
determinados... É fácil fazer construir semelhante máquina de efeito infalível; a decapitação será feita num instante de
acordo com a nova lei. Tal aparelho, embora necessário, não causaria nenhuma sensação e mal seria percebido.(14)
Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira os
bens. Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito jurídico, detentor, entre outros
direitos, do de existir. Ela devia ter a abstração da própria lei.
Sem dúvida, algo dos suplícios prevaleceu, por algum tempo, na França, à sobriedade das execuções. Os parricidas -
e os regicidas, a eles assemelhados - eram conduzidos ao cadafalso, cobertos por um véu negro, onde, até 1832, lhes
cortavam a mão. Assim, restou apenas o ornamento do crepe, tal como aconteceu para Fieschi, em novembro de 1836:
Será conduzido ao lugar da execução, em camisão, pés descalços e com a cabeça coberta por um véu negro; será
exposto, em um cadafalso, enquanto o meirinho levará para o povo a sentença condenatória e imediatamente executado.
Devemos lembrar-nos de Damiens e comparar que o derradeiro implemento à morte penal foi o crepe. O condenado
não deve mais ser visto. Só a leitura da sentença punitiva mostra um crime que não deve ter rosto.(15) O último vestígio
dos grandes espetáculos de execução é sua própria anulação: um pano para esconder um corpo. Exemplo disto foi a
execução de Benoít, três vezes criminoso - matador da mãe, homossexual, homicida — o primeiro parricida cujas mãos a
lei não cortou.
Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação, estava de pé no cadafalso, sustentado pêlos carrascos. Era
horrível aquele espetáculo: envolto em grande mortalha, a cabeça coberta por um crepe, o parricida estava fora do alcance
dos olhares da silenciosa multidão. E sob aquelas vestes, misteriosas e lúgubres, a vida só continuava a manifestar-se
através dos gritos horrorosos, que se extinguiram logo, sob o facão.(16)
Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é
escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos
16 ▲
considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre
1830 e 1848. Claro, tal afirmação em termos globais deve ser bem entendida. Primeiro, as transformações não se fazem
em conjunto nem de acordo com um único processo. Houve atrasos. Paradoxalmente, a Inglaterra foi um dos países mais
reacionários ao cancelamento dos suplícios: talvez por causa da função de modelo que a instituição do júri, o processo
público e o respeito ao habeas-corpus haviam dado à sua justiça criminal; principalmente, sem dúvida, porque ela não
quis diminuir o rigor de suas leis penais no decorrer dos grandes distúrbios sociais do período 1780-1820. Por muito
tempo, Romilly, Mackintosh e Fowell Buston não conseguiram atenuar a multiplicidade e o rigor das penas previstas na
lei inglesa - esta "terrível carnificina", dizia Rossi. Sua severidade (ao menos nas penas previstas, uma vez que sua
aplicação se afrouxava à proporção que a lei parecia excessiva aos olhos dos júris) havia aumentado, pois em 1760
Blackstone constatara a existência de cento e sessenta crimes capitais, na legislação inglesa, que somavam duzentos e
vinte e três em 1819. Devemos levar em consideração também as acelerações e recuos que o processo global seguiu entre
1760 e 1840, a rapidez da reforma em certos países, como a Áustria, a Rússia, os Estados Unidos, a França no momento
da Constituinte, depois, o refluxo da Contra-Revolução na Europa e o grande temor social de 1820 a 1848; as
modificações, mais ou menos temporárias, ocasionadas pêlos tribunais ou pelas leis de exceção; a distorção entre a teoria
da lei e a prática dos tribunais (longe de refletir o espírito da legislação). Tudo isto torna bem irregular o processo
evolutivo que se desenvolveu na virada do século XVIII ao XIX.
A isto tudo acresce que, embora se tenha alcançado o essencial da transmutação por volta de 1840, embora
os mecanismos punitivos tenham adotado novo tipo de funcionamento, o processo assim mesmo está longe de ter chegado
ao fim. A redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de 1760-1840, mas que não chegou ao
termo. E podemos dizer que a prática da tortura se fixou por muito tempo - e ainda continua - no sistema penal francês. A
guilhotina, a máquina das mortes rápidas e discretas, marcou, na França, nova ética da morte legal. Mas a Revolução logo
a revestiu de um grandioso rito teatral. Durante anos, deu espetáculos. Foi necessário deslocá-la para a barreira de Saint-
Jacques; substituir a carroça por uma carruagem fechada; empurrar, rapidamente, o condenado do furgão para o estrado;
organizar execuções apressadas e em horas tardias; finalmente, colocá-la no interior das prisões e torná-la inacessível ao
público (depois da execução de Weidmann, em 1939); bloquear as ruas que davam acesso à prisão onde estava oculto o
cadafalso e onde a execução se passava em segredo (execuções de Buffet e Bontemps, em Santé, em 1972); processar as
testemunhas que relatavam o ocorrido para que a execução deixasse de ser um espetáculo e permanecesse
17 ▲
um estranho segredo entre a justiça e o condenado. Basta evocar tantas precauções para verificar-se que a morte penal
permanece, hoje ainda, umacena que, com inteira justiça, é preciso proibir.
O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX. Sem
dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem
ou de um direito. Porém castigos como trabalhos forçados ou prisão - privação pura e simples da liberdade - nunca
funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física,
masmorra. Conseqüências não tencionadas mas inevitáveis da própria prisão? Na realidade, a prisão, nos seus dispositivos
mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. A crítica ao sistema penitenciário, na primeira
metade do século XIX (a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos têm menos fome, menos frio e privações
que muitos pobres ou operários), indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado: é justo que o condenado
sofra mais que os outros homens? A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física. Que seria então um
castigo incorporai?
Permanece, por conseguinte, um fundo "supliciante" nos modernos mecanismos da justiça criminal - fundo que não
está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do incorporal.
O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos
historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo:
menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e "humanidade". Na verdade, tais modificações se fazem concomitantes
ao deslocamento do objeto da ação punitiva. Redução de intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente.
Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A
resposta dos teóricos - daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não se encerrou - é simples, quase
evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo
deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. Mably
formulou o princípio decisivo:
Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo.17
Momento importante. O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem
entra em cena, mascarado. Ter-
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minada uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades impalpáveis. O aparato da
justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.
Pura informação teórica, repelida pela prática penal? Seria superficialidade afirmá-lo. A verdade é que punir,
atualmente, não é apenas converter uma alma. Entretanto, o princípio de Mably não permaneceu como um piedoso voto.
Por toda a moderna história da penalidade, é possível seguir-lhe os efeitos.
Em primeiro lugar, a substituição de objetos. Não queremos dizer com isso que, subitamente, se começou a punir
outros crimes. Sem dúvida, a definição das infrações, sua hierarquia de gravidade, as margens de indulgência, o que era
tolerado de fato e o que era permitido de direito - tudo isto modificou-se amplamente nos últimos duzentos anos. Muitos
crimes perderam tal conotação, uma vez que estavam objetivamente ligados a um exercício de autoridade religiosa ou a
um tipo de vida econômica; a blasfêmia deixou de se constituir em crime; o contrabando e o furto doméstico perderam
parte de sua gravidade. Mas tais transformações não são, por certo, o mais importante: a divisão de permitido e proibido
manteve, entre um e outro século, certa constância. Em compensação, o objeto '"crime", aquilo a que se refere a prática
penal, foi profundamente modificado: a qualidade, a natureza, a substância, de algum modo, de que se constitui o
elemento punível, mais do que a própria definição formal. A relativa estabilidade da lei obrigou um jogo de substituições
sutis e rápidas. Sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos definidos pelo
Código. Porém julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de
meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao
mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos. Dir-se-ia que não são eles que são
julgados; se são invocados, é para explicar os fatos a serem julgados e determinar até que ponto a vontade do réu estava
envolvida no crime. Resposta insuficiente, pois são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa, que são,
na realidade, julgadas e punidas. Julgadas mediante recurso às "circunstâncias atenuantes", que introduzem no veredicto
não apenas elementos "circunstanciais" do ato, mas coisa bem diversa, juridicamente não codificável: o conhecimento do
criminoso, a apreciação que dele se faz, o que se pode saber sobre suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que
se pode esperar dele no futuro. Julgadas também por todas essas noções veiculadas entre medicina e jurisprudência desde
o século XIX (os "monstros" da época de Georget, as "anomalias psíquicas" da circular Chaumié, os "pervertidos" e os
''inadaptados" dos laudos periciais contemporâneos) e que, pretendendo explicar um ato, não passam de maneiras de
qualificar um indivíduo. Punidas pelo castigo que se atribui a função de tornar o criminoso "não só desejoso, mas também
capaz de viver respeitando a lei e de suprir às suas próprias necessi-
19 ▲
dades"; são punidas pela economia interna de uma pena que, embora sancione o crime, pode modificar-se (abreviando-se
ou, se for o caso, prolongando-se), conforme se transformar o comportamento do condenado; são punidas, ainda, pela
aplicação dessas "medidas de segurança" que acompanham a pena (proibição de permanência, liberdade vigiada, tutela
penal, tratamento médico obrigatório) e não se destinam a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar
sua periculosidade, a modificar suas disposições criminosas, a cessar somente após obtenção de tais modificações. A alma
do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime e introduzi-la como um elemento na atribuição
jurídica das responsabilidades; se ela é invocada cora tanta ênfase, com tanto cuidado de compreensão e tão grande
aplicação "científica", é para julgá-la, ao mesmo tempo que o crime, e fazê-la participar da punição. Em todo o ritual
penal, desde a informação até a sentença e as últimas conseqüências da pena, se permitiu a penetração de um campo de
objetos que vêm duplicar, mas também dissociar os objetos juridicamente definidos e codificados. O laudo psiquiátrico,
mas de maneira mais geral a antropologia criminal e o discurso repisante da criminologia encontram aí uma de suas
funções precisas: introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos susceptíveis de um conhecimento
científico, dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas
sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser. O
suplemento de alma que a justiça garantiu para si é aparentemente explicativo e limitativo, e de fato anexionista. Faz 150
ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidade, e desde então os juizes, pouco a pouco, mas por
um processo que remonta bem longe no tempo, começaram a julgar coisa diferente além dos crimes: a "alma" dos
criminosos.
E, com isso, começaram a fazer algo diferente do que julgar. Ou, para ser mais exato, no próprio cerne da
modalidade judicial do julgamento, outros tipos de avaliação se introduziram discretamente modificando no essencial
suas regras de elaboração. Desde que a Idade Média construiu, não sem dificuldade e lentidão, a grande procedura do
inquérito, julgar era estabelecer a verdade de um crime, era determinar seu autor, era aplicar-lhe uma sanção legal.
Conhecimento da infração, conhecimento do responsável, conhecimento da lei, três condições que permitiam estabelecer
um julgamento como verdade bem fundada. Eis, porém, que durante o julgamento penal encontramos inserida agora uma
questão bem diferente de verdade. Não mais simplesmente: "O fato está comprovado, é delituoso?" Mas também: "O que
é realmente esse fato, o que significa essa violência ou esse crime? Em que nível ou em que campo da realidade deverá
ser colocado? Fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade?" Não mais simplesmente: "Quem é o autor?"
Mas: "Como citar o processo causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem do crime? Instinto,
inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?" Não mais
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simplesmente: "Que lei sanciona esta infração?" Mas: "Que medida tomar que seja apropriada? Como prever a evolução
do sujeito? De que modo será ele mais seguramente corrigido?" Todo um conjunto de julgamentos apreciativos,
diagnósticos, prognósticos, normativos, concernentes ao indivíduo criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo
penal. Uma outra verdade veio penetrar aquela que a mecânica judicial requeria: uma verdade que, enredada na primeira,
faz da afirmação de culpabilidade um estranho complexo científico-jurídico. Um fato significativo: a maneira como a
questão da loucura evoluiu na prática penal. De acordo com o código (francês) de 1810, ela só era abordada no final do
artigo 64. Este prevê que não há crime nem delito, se o infrator estava em estado de demência no instante do ato. A
possibilidade de invocar a loucura excluía, pois, a qualificação de um ato como crime: na alegação de o autor ter ficado
louco, não era a gravidade de seu gesto que se modificava, nem a sua pena que devia ser atenuada: mas o próprio crime
desaparecia. Impossível, pois, declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco; o diagnóstico de loucura uma vez
declarado não podia ser integrado no juízo; ele interrompia o processo e retirava o poder da justiça sobre o autor do ato.
Não apenas o exame do criminoso suspeito de demência, mas também os próprios efeitos desse exame deviam ser
exteriores e anteriores à sentença. Mas desde logo os tribunais do século XIX se equivocaram acerca do sentido do artigo
64. Apesar de vários decretos do supremo tribunal de justiça lembrando que o estado de loucura não podia acarretar nem
uma pena moderada, nem sequer uma absolvição, mas uma improcedência judicial, eles levantaram em seu próprio
veredicto a questão da loucura. Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco tanto menos
culpado; culpado, sem dúvida, mas que deveria ser enclausurado e tratado e não punido; culpado perigoso, pois
manifestamente doente, etc. Do ponto de vista do código penal, eram absurdos jurídicos. Mas estava aí o ponto de partida
de uma evolução que a jurisprudência e a própria legislação iam desencadear durante os 150 anos seguintes: já a reforma
de 1832, introduzindo as circunstâncias atenuantes, permitia modular a sentença segundo os graus supostos de uma
doença ou as formas de uma semiloucura. E a prática usual nos tribunais, aplicada às vezes à prática correcional, da
perícia psiquiátrica faz com que a sentença, ainda que formulada em termos de sanção legal, implique, mais ou menos
obscuramente, em juízos de normalidade, atribuições de causalidade, apreciações de eventuais mudanças, previsões sobre
o futuro dos delinqüentes. Operações, todas, de que não se poderia dizer com razão que preparam do exterior um
julgamento bem fundado; elas se integram diretamente no processo de formação da sentença. Em vez de a loucura apagar
o crime no sentido primitivo do artigo 64, qualquer crime agora e, em última análise, qualquer infração incluem como
uma suspeita legítima, mas também como um direito que podem reivindicar, a hipótese da loucura ou em todo caso da
anomalia. E a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa, uma decisão legal que
sanciona; ela implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível. O juiz de
nossos dias - magistrado ou jurado - faz outra coisa, bem diferente de "julgar".
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E ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de
instâncias anexas. Pequenas justiças e juizes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos
psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração
penitenciária fracionam o poder legal de punir; dir-se-á que nenhum deles partilha realmente do direito de julgar; que uns,
depois das sentenças, só têm o direito de fazer executar uma pena fixada pelo tribunal, e principalmente que outros - os
peritos - não intervêm antes da sentença para fazer um julgamento, mas para esclarecer a decisão dos juizes. Mas desde
que as penas e as medidas de segurança definidas pelo tribunal não são determinadas de uma maneira absoluta, a partir do
momento em que elas podem ser modificadas no caminho, a partir do momento em que se deixa a pessoas que não são os
juizes da infração o cuidado de decidir se o condenado "merece" ser posto em semiliberdade ou em liberdade condicional,
se eles podem pôr um termo à sua tutela penal, são sem dúvida mecanismos de punição legal que lhes são colocados entre
as mãos e deixados à sua apreciação; juizes anexos, mas juizes de todo modo. Todo o aparelho que se desenvolveu há
anos, em torno da aplicação das penas e de seu ajustamento aos indivíduos, desmultiplica as instâncias da decisão
judiciária, prolongando-a muito além da sentença. Quanto aos peritos psiquiatras, podem bem evitar de julgar. Basta
examinar as três perguntas que, depois da circular de 1958, eles têm que responder: O acusado apresenta alguma
periculosidade? É acessível à sanção penal? É curável ou readaptável? Estas perguntas não têm relação com o artigo 64,
nem com a loucura eventual do acusado no momento do ato. Não são perguntas em termos de "responsabilidade". Só
dizem respeito à administração da pena, sua necessidade, sua utilidade, sua eficácia possível; permitem indicar, num
vocabulário que apenas foi codificado, se é melhor o hospício que a prisão, se é necessário prever um enclausuramento
breve ou longo, um tratamento médico ou medidas de segurança. E o papel do psiquiatra em matéria penal? Não será o
perito em responsabilidade, mas de conselheiro de punição; cabe-lhe dizer se o indivíduo é "perigoso", de que maneira se
proteger dele, como intervir para modificá-lo, se é melhor tentar reprimir ou tratar. Bem no começo de sua história, a
perícia psiquiátrica tivera que formular proposições "verdadeiras" sobre a medida da participação da liberdade do infrator
no ato que cometera; ela tem agora que sugerir uma receita sobre o que se poderia chamar seu "tratamento médicojudicial".
Resumindo: desde que funciona o novo sistema penal - o definido pêlos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX
-um processo global levou os juizes
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a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar; e o poder de
julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não são as dos juizes da infração. A operação penal inteira carregou-se de
elementos e personagens extrajurídicos. Pode-se dizer que não há nisso nada de extraordinário, que é do destino do direito
absorver pouco a pouco elementos que lhe são estranhos. Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se
carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no
estrito poder de punir; é, ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não
jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e
simplesmente aquele que castiga:
Naturalmente, damos um veredicto, mas ainda que reclamado por um crime, vocês bem podem ver que para nós
funciona como uma maneira de tratar um criminoso; punimos, mas é um modo de dizer que queremos obter a cura.
A justiça criminal hoje em dia só funciona e só se justifica por essa perpétua referência a outra coisa que não é ela
mesma, por essa incessante reinscrição nos sistemas não jurídicos. Ela está votada a essa requalificação pelo saber.
Sob a suavidade ampliada dos castigos, podemos então verificar um deslocamento de seu ponto de aplicação; e
através desse deslocamento, todo um campo de objetos recentes, todo um novo regime da verdade e uma quantidade de
papéis até então inéditos no exercício da justiça criminal. Um saber, técnicas, discursos "científicos" se formam e se
entrelaçam com a prática do poder de punir.
Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do
atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus
efeitos e mascara sua exorbitante singularidade.
Mas a partir de onde se pode fazer essa história da alma moderna em julgamento? Se nos limitarmos à evolução das
regras de direito ou dos processos penais, corremos o risco de valorizar como fato maciço, exterior, inerte e primeiro, uma
mudança na sensibilidade coletiva, um progresso do humanismo, ou o desenvolvimento das ciências humanas. Para
estudar, como fez Durkheim1*, apenas as formas sociais gerais, corremos o risco de colocar como princípio da
suavização punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de poder e entre elas dos novos
mecanismos penais. O presente estudo obedece a quatro regras gerais:
1) Não centrar o estudo dos mecanismos punitivos unicamente em seus efeitos "repressivos", só em seu aspecto de
"sanção", mas recolocá-los na série completa dos efeitos positivos que eles podem induzir, mesmo se à primeira
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vista são marginais. Conseqüentemente, tomar a punição como uma função social complexa.
2) Analisar os métodos punitivos não como simples conseqüências de regras de direito ou como indicadores de
estruturas sociais; mas como técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder.
Adotar em relação aos castigos a perspectiva da tática política.
3) Em lugar de tratar a história do direito penal e a das ciências humanas como duas séries separadas cujo encontro
teria sobre uma ou outra, ou sobre as duas talvez, um efeito, digamos, perturbador ou útil, verificar se não há uma matriz
comum e se as duas não se originam de um processo de formação "epistemológico-jurídico"; em resumo, colocar a
tecnologia do poder no princípio tanto da humanização da penalidade quanto do conhecimento do homem.
4) Verificar se esta entrada da alma no palco da justiça penal, e com ela a inserção na prática judiciária de todo um
saber "científico", não é o efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas relações de
poder.
Em suma, tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se
poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto. De maneira que, pela análise da suavidade
penal como técnica de poder, poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou
anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal; e de que maneira um modo específico de
sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status "científico".
Mas não tenho a pretensão de ter sido o primeiro a trabalhar nessa direção.(19)
Do grande livro de Rusche e Kirchheimer podemos guardar algumas referências essenciais. Abandonar em primeiro
lugar a ilusão de que a penalidade é antes de tudo (se não exclusivamente) uma maneira de reprimir os delitos e que nesse
papel, de acordo com as formas sociais, os sistemas políticos ou as crenças, ela pode ser severa ou indulgente, voltar-se
para a expiação ou procurar obter uma reparação, aplicar-se em perseguir o indivíduo ou em atribuir responsabilidades
coletivas. Analisar antes os "sistemas punitivos concretos", estudá-los como fenômenos sociais que não podem ser
explicados unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas fundamentais; recolocá-los em seu
campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o único elemento; mostrar que as medidas punitivas não são
simplesmente mecanismos "negativos" que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir;
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mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar (e nesse sentido,
se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são
feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções). Nessa linha, Rusche e Kirchheimer
estabeleceram a relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa
economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar - e constituir uma
escravidão "civil" ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio; com o feudalismo, e numa época em que a
moeda e a produção estão pouco desenvolvidas, assistiríamos a um brusco crescimento dos castigos corporais - sendo o
corpo na maior parte dos casos o único bem acessível; a casa de correção - o Hospital Geral, o Spinhuis ou Rasphuis - o
trabalho obrigatório, a manufatura penal apareceriam com o desenvolvimento da economia de comércio. Mas como o
sistema industrial exigia um mercado de mão-de-obra livre, a parte do trabalho obrigatório diminuiria no século XIX nos
mecanismos de punição, e seria substituída por uma detenção com fim corretivo. Há sem dúvida muitas observações a
fazer sobre essa correlação estrita.
Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que, em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser
recolocados em uma certa "economia política" do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos,
mesmo quando utilizam métodos "suaves" de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata - do corpo e de suas
forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão. É certamente legítimo fazer uma história
dos castigos com base nas idéias morais ou nas estruturas jurídicas. Mas pode-se fazê-la com base numa história dos
corpos, uma vez que só visam à alma secreta dos criminosos?
Os historiadores vêm abordando a história do corpo há muito tempo. Estudaram-no no campo de uma demografia ou
de uma patologia históricas; encararam-no como sede de necessidades e de apetites, como lugar de processos fisiológicos
e de metabolismos, como alvos de ataques microbianos ou de vírus: mostraram até que ponto os processos históricos
estavam implicados no que se poderia considerar a base puramente biológica da existência; e que lugar se deveria
conceder na história das sociedades a "acontecimentos" biológicos como a circulação dos bacilos, ou o prolongamento da
duração da vida.(21) Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm
alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas,
à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de
poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só
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é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e
corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pêlos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta,
física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada,
organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de
ordem física. Quer dizer que pode haver um "saber" do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um
controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia
chamar a tecnologia política do corpo. Essa tecnologia é difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e
sistemáticos; compõe-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza um material e processos sem relação entre si. O
mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso seria
impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho do Estado. Estes recorrem a ela; utilizamna,
valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em seus mecanismos e efeitos, se situa
num nível completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pêlos
aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os
próprios corpos com sua materialidade e suas forças.
Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas
como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma "apropriação", mas a disposições, a
manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre
em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o
contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se
exerce mais que se possui, que não é o "privilégio" adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas - efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados.
Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que "não têm";
ele os investe, passa por eles e através deles; apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança. O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da
sociedade, que não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se
contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos, a forma geral da lei ou
do governo; que se há continuidade (realmente elas se articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de
complexas engrenagens),
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não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e de modalidade. Finalmente, não são unívocas;
definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de
inversão pelo menos transitória da relação de forças. A derrubada desses "micropoderes" não obedece portanto à lei do
tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo
funcionamento ou uma destruição das instituições; em compensação nenhum de seus episódios localizados pode ser
inscrito na história senão pêlos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra.
Seria talvez preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as
relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora de suas injunções, suas exigências e seus
interesses. Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que em compensação a renúncia ao poder é uma
das condições para que se possa tornar-se sábio. Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente
favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há
relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo
tempo relações de poder. Essas relações de "poder-saber" não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do
conhecimento que seria ou não livre em redação ao sistema do poder; mas é preciso considerar ao contrário que o sujeito
que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimentos são outros tantos efeitos dessas implicações
fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do sujeito de
conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o
atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.
Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se reuncie — no que se refere ao
poder — à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do contrato ou ao da conquista; no que se
refere ao saber, que se renuncie à oposição do que é "interessado" e do que é "desinteressado", ao modelo do
conhecimento e ao primado do sujeito. Dando à palavra um sentido diferente do que lhe era dado no século XVII por
Petty e seus contemporâneos, poder-se-ia sonhar com uma "anatomia" política. Não seria o estudo de um Estado tomado
como um "corpo" (com seus elementos, seus recursos e suas forças) mas não seria tampouco o estudo do corpo e do que
lhe está conexo tomados como um pequeno Estado. Trataríamos aí do "corpo político" como conjunto dos elementos
materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de
poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber.
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Trata-se de recolocar as técnicas punitivas - quer elas se apossem do corpo no ritual dos suplícios, quer se dirijam à
alma- na história desse corpo político. Considerar as práticas penais mais como um capítulo da anatomia política, do que
uma conseqüência das teorias jurídicas.
Kantorowitz(22) fez uma vez do "corpo do rei" uma análise notável: corpo duplo de acordo com a teologia jurídica
formada na Idade Média, pois comporta além do elemento transitório que nasce e morre um outro que permanece através
do tempo e se mantém como fundamento físico mas intangível do reino; em torno dessa dualidade que esteve, em sua
origem, próxima do modelo cristológico, organizam-se uma iconografia, uma teoria política da monarquia, mecanismos
jurídicos que ao mesmo tempo distinguem e ligam a pessoa do rei e as exigências da Coroa, e todo um ritual que encontra
na coroação, nos funerais, nas cerimônias de submissão, seus tempos mais fortes. Poderíamos imaginar no pólo oposto o
corpo do condenado; ele também tem seu estatuto jurídico; reclama seu cerimonial e impõe todo um discurso teórico, não
para fundamentar o "mais poder" que afetava a pessoa do soberano, mas para codificar o "menos poder" que marca os que
são submetidos a uma punição. Na região mais sombria do campo político, o condenado desenha a figura simétrica e
invertida do rei. Seria preciso analisar o que se poderia chamar em homenagem a Kantorowitz o "mínimo corpo do
condenado".
Se o suplemento de poder do lado do rei provoca o desdobramento de seu corpo, o poder excedente exercido sobre o
corpo submetido do condenado não suscitou um outro tipo de desdobramento: o de um incorpóreo, de uma "alma", como
dizia Mably. A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia
da "alma" moderna. A ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo
atual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito
ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na
superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira
mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica dessa
alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce
antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é absolutamente
substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem
pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa
realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade,
personalidade,
28 ▲
consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as
reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por
um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos
convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma "alma" o habita e o leva à
existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma
anatomia política; a alma, prisão do corpo.
Que as punições em geral e a prisão se originem de uma tecnologia política do corpo, talvez me tenha ensinado mais
pelo presente do que pela história. Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo. Os
objetivos que tinham, suas palavras de ordem, seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa de paradoxal. Eram
revoltas contra toda uma miséria física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação e o excesso de
população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas eram também revoltas contra as prisõesmodelos,
contra os tranqüilizantes, contra o isolamento, contra o serviço médico ou educativo. Revoltas cujos objetivos
eram só materiais? Revoltas contraditórias contra a decadência, e ao mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas, e
ao mesmo tempo contra os psiquiatras? De fato, tratava-se realmente dos corpos e de coisas materiais em todos esses
movimentos: como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX. O
que provocou esses discursos e essas revoltas, essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas, essas
ínfimas coisas materiais. Quem quiser tem toda liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja
aí estratégias estranhas. Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que
estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão,
era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o
corpo, que a tecnologia da "alma" - a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras - não consegue mascarar nem
compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos. É desta prisão, com todos os investimentos
políticos do corpo que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história. Por puro anacronismo?
Não, se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos do presente. Sim, se entendermos com isso fazer a
história do presente. (23)
29 ▲
Capítulo II
A ostentação dos suplícios
A ordenação de 1670 regeu, até à Revolução, as formas gerais da prática penal. Eis a hierarquia dos castigos por ela
descritos:
A morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento.
As penas físicas tinham, portanto, uma parte considerável. Os costumes, a natureza dos crimes, o status dos
condenados as faziam variar ainda mais.
A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: uns podem ser condenados à forca, outros a ter a mão
ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida; outros, por crimes mais graves, a ser arrebentados vivos e
expirar na roda depois de ter os membros arrebentados; outros a ser arrebentados até a morte natural, outros a ser
estrangulados e em seguida arrebentados, outros a ser queimados vivos, outros a ser queimados depois de estrangulados;
outros a ter a língua cortada ou furada, e em seguida queimados vivos; outros a ser puxados por quatro cavalos, outros a
ter a cabeça cortada, outros enfim a ter a cabeça quebrada.(1) [E Soulatges, de passagem, acrescenta que há também penas
leves, de que a Ordenação não fala]: satisfação à pessoa ofendida, admoestação, repreensão, prisão temporária, abstenção
de um lugar, e enfim as penas pecuniárias - muitas ou confiscação.
Não devemos no entanto nos enganar. Entre esse arsenal de horror e a prática cotidiana da penalidade, a margem era
grande. Os suplícios não constituíam as penas mais frequentes, longe disso. Sem dúvida para nossos olhos atuais a
proporção de veredictos de morte, na penalidade da era clássica, pode parecer considerável: as decisões do Châtelet
durante o período de 1755 a 1785 comportam 9 a 10% de penas capitais - roda, forca ou fogueira2; em 260 sentenças, o
Parlamento de Flandres pronunciou 39 condenações à morte, de 1721 a 1730 (e 26 em 500 entre 1781 e 1790).3 Mas não
se deve esquecer que os tribunais encontravam muitos meios de abrandar os rigores da penalidade regular, seja recusandose
a levar adiante processos quando as infrações eram exageradamente castigadas, seja modificando a qualificação do
crime; às vezes também o próprio poder real indicava não aplicar estritamente tal ordenação particularmente severa.4 De
qualquer modo, a maior parte das condenações era banimento ou multa: numa jurisprudência como a do Châtelet (que só
conhecia delitos relativamente graves) o banimento representou, entre 1755 e 1785, mais da metade das penas aplicadas.
Ora, grande parte dessas penas não corporais era acompanhada a título acessório de penas que comportavam uma
dimensão de suplício: exposição, roda, coleira de ferro, açoite, marcação com ferrete; era a regra para todas as
condenações às galeras ou ao equivalente para as mulheres
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- a reclusão no hospital; o banimento era muitas vezes precedido pela exposição e pela marcação com ferrete; a multa, às
vezes, era acompanhada de açoite. Não só nas grandes e solenes execuções, mas também nessa forma anexa é que o
suplício manifestava a parte significativa que tinha na penalidade; qualquer pena um pouco séria devia incluir alguma
coisa do suplício.
Que é um suplício?
Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jaucourt]; e acrescentava: "é um fenômeno inexplicável a
extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade.(5)
Inexplicável, talvez, mas certamente não irregular nem selvagem. O suplício é uma técnica e não deve ser
equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais:
em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos
apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de
viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação - que reduz todos os
sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício - até o esquartejamento que os leva quase ao infinito,
através do enforcamento, da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte-suplício é a arte de reter a vida
no sofrimento, subdividindo-a em "mil mortes" e obtendo, antes de cessar a existência, the most exqidsite agonies.(6) O
suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o
tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do
criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o
corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes de açoite, localização do
ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente
imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de
mutilação a impor (mão decepada, lábios ou língua furados). Todos esses diversos elementos multiplicam as penas e se
combinam de acordo com os tribunais e os crimes: "A poesia de Dante posta em leis", dizia Rossi; um longo saber físicopenal,
em todo caso. Além disso, o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a
duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela
ostentação de que se acompanha, a tomar infame aquele que é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função "purgar"
o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar; a
memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do
31 ▲
sofrimento devidamente constatados. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser
constatado por todos, um pouco como seu triunfo. O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua
glória: o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso, mas é o próprio
cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da
morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça
persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível.
O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um
ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de
uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o controle. Nos "excessos" dos suplícios, se investe toda a
economia do poder.
O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime.
Na França, como na maior parte dos países europeus - com a notável exceção da Inglaterra - todo o processo
criminal, até à sentença, permanecia secreto: ou seja opaco não só para o público mas para o próprio acusado. O processo
se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as
provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação. "O mais diligente e o mais secretamente
que se puder fazer", dizia, a respeito da instrução, o edito de 1498. De acordo com a ordenação de 1670, que resumia, e
em alguns pontos reforçava, a severidade da época precedente, era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo,
impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as
testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um
advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa. Por seu lado, o magistrado tinha o
direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a natureza da causa, de interrogá-lo de maneira capciosa,
de usar insinuações.(7) Ele constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e essa
verdade, os juizes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos; para eles, esses documentos sozinhos
comprovavam; só encontravam o acusado uma vez para interrogá-lo antes de dar a sentença. A forma secreta e escrita do
processo confere com o princípio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus
juizes um direito
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absoluto e um poder exclusivo. Ayrault supunha que esse procedimento (já estabelecido no que tange ao essencial no
século XVI) tinha por origem
o medo dos tumultos, das gritarias e aclamações que o povo normalmente faz, o medo de que houvesse desordem,
violência e impetuosidade contra as partes talvez até mesmo contra os juizes;
o rei quereria mostrar com isso que a "força soberana" de que se origina o direito de punir não pode em caso algum
pertencer à "multidão".(8)
Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar.
Mas o segredo não impedia que, para estabelecer a verdade, se devesse obedecer a certas regras. O segredo
implicava mesmo na definição rigorosa de um modelo de demonstração penal. Toda uma tradição, que remontava ao
meio ambiente medieval, mas que os juristas da Renascença haviam largamente desenvolvido, prescrevia o que deviam
ser a natureza e a eficácia das provas. Ainda no século XVIII encontravam-se regularmente distinções como as seguintes:
as provas verdadeiras, diretas ou legítimas (os testemunhos por exemplo) e as provas indiretas, conjeturais, artificiais (por
argumento); ou ainda as provas manifestas, as provas consideráveis, as provas imperfeitas ou ligeiras(9); ou ainda: as
provas "urgentes e necessárias" que não permitem duvidar da verdade do fato (são provas "plenas": assim duas
testemunhas irrepreensíveis que a afirmassem ter visto o acusado com uma espada nua e ensangüentada na mão, a sair do
lugar onde, algum tempo depois, foi encontrado o corpo do morto marcado por golpes de espada); os indícios próximos
ou provas semiplenas, que se podem considerar verdadeiras enquanto o acusado não as destruir com uma prova contrária
(prova "semiplena", como uma só testemunha ocular, ou ameaças de morte que precedem um assassinato); enfim os
indícios longínquos ou "adminículos" que consistem apenas no parecer dos homens (opinião pública, fuga do suspeito,
sua perturbação ao ser interrogado, etc.).(10) Ora, essas distinções não são simplesmente sutilezas teóricas. Elas têm uma
função operatória. Em primeiro lugar, porque cada um desses indícios, tomado em si mesmo e se permanece isolado, pode
ter um tipo definido de efeito judiciário: as provas plenas podem acarretar qualquer condenação; as semiplenas podem
acarretar penas físicas infamantes, mas nunca a morte; os indícios imperfeitos e leves bastam para fazer "decretar" o
suspeito, para fazer contra ele investigações mais aprofundadas ou para lhe impor uma multa. Em segundo lugar, porque
se combinam entre si de acordo com regras precisas de cálculo: duas provas semiplenas podem fazer uma prova completa:
adminículos, desde que sejam vários e concordem, podem combinar-se para formar uma meia-prova; mas sozinhos, por
numerosos que sejam, não podem equivaler a uma prova completa. Temos então uma aritmética penal meticulosa em
muitos pontos, mas que deixa ainda margem a muitas discussões: podemos apoiar-nos, para dar uma sentença capital,
numa única prova plena ou é preciso que ela seja acompa-
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nhada de outros indícios mais ligeiros? Dois indícios próximos são sempre equivalentes a uma prova plena? Não seria
necessário admitir três deles ou combiná-los com os indícios longínquos? Há elementos que só podem ser indícios para
certos crimes, em certas circunstâncias e em relação a certas pessoas (assim um testemunho é anulado se provém de um
vagabundo; é, ao contrário, reforçado, se se trata "de uma pessoa de consideração" ou de um patrão a respeito de um
delito doméstico). Aritmética modulada por uma casuística, que tem por função definir como se pode construir uma prova
judicial. Por um lado esse sistema das "provas legais" faz da verdade no campo penal o resultado de uma arte complexa;
obedece a regras que só os especialistas podem conhecer; e conseqüentemente reforça o princípio do segredo. "Não basta
que o juiz tenha a convicção que qualquer homem razoável pode ter... Nada mais errado que essa maneira de julgar que,
na verdade, não passa de uma opinião mais ou menos fundamentada". Mas por outro lado ,ele cerceia o magistrado
severamente; sem essa regularidade "qualquer julgamento de condenação seria temerário, e pode-se dizer de certa maneira
que é injusto mesmo se, na verdade, o acusado fosse culpado." Chegará o dia em que a singularidade dessa verdade
judicial parecerá escandalosa: como se a justiça não tivesse que obedecer às regras da verdade comum: "Que se diria de
uma meia-prova nas ciências demonstráveis? Que seria uma meia-prova geométrica ou algébrica?(12) Mas não devemos
esquecer que essas exigências formais da prova jurídica eram um modo de controle interno do poder absoluto e exclusivo
de saber.
A informação penal escrita, secreta, submetida, para construir suas provas, a regras rigorosas, é uma máquina que
pode produzir a verdade na ausência do acusado. E por essa mesma razão, embora no estrito direito isso não seja
necessário, esse procedimento vai necessariamente tender à confissão. Por duas razões: em primeiro lugar, porque esta
constitui uma prova tão forte que não há nenhuma necessidade de acrescentar outras, nem de entrar na difícil e duvidosa
combinação dos indícios; a confissão, desde que feita na forma correta, quase desobriga o acusador do cuidado de
fornecer outras provas (em todo caso, as mais difíceis). Em seguida, a única maneira para que esse procedimento perca
tudo o que tem de autoridade unívoca, e se torne efetiva-mente uma vitória conseguida sobre o acusado, a única maneira
para que a verdade exerça todo o seu poder, é que o criminoso tome sobre si o próprio crime e ele mesmo assine o que foi
sábia e obscuramente construído pela informação.(13)
Não é bastante [como dizia Ayrault que não gostava nem um pouco desses processos secretos] que os maus sejam
justamente punidos. É preciso, se possível, que eles mesmos se julguem e se condenem.
No interior do crime reconstituído por escrito, o criminoso que confessa vem desempenhar o papel de verdade viva.
A confissão, ato do sujeito crimi-
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noso, responsável e que fala, é a peça complementar de uma informação escrita e secreta. Daí a importância dada à
confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial.
Daí também as ambigüidades de seu papel. Por um lado, tenta-se fazê-lo entrar no cálculo geral das provas; ressaltase
que ela não passa de uma delas; ela não é a evidência rei; assim como a mais forte das provas, ela sozinha não pode
levar à condenação, deve ser acompanhada de indícios anexos, e de presunções; pois já houve acusados que se declararam
culpados de crimes que não tinham cometido; o juiz deverá então fazer pesquisas complementares, se só estiver de posse
da confissão regular do culpado. Mas, por outro lado, a confissão ganha qualquer outra prova. Até certo ponto ela as
transcende; elemento no cálculo da verdade, ela é também o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que
esta é bem fundamentada; transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmação voluntária. Pela confissão, o próprio
acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal. Como já dizia o direito medieval, a confissão torna a coisa
notória e manifesta. A esta primeira ambigüidade se sobrepõe uma segunda: investiga-se de novo a confissão como prova
particularmente forte, que exige para levar à condenação apenas alguns indícios suplementares, que reduzem ao mínimo o
trabalho de informação e a mecânica de demonstração; todas as formas possíveis de coerção serão utilizadas para obtê-la.
Mas embora ela deva ser, no processo, a contrapartida viva e oral da informação escrita, a réplica desta, e como que sua
autenticação por parte do acusado, será cercada de garantias e formalidades. Ela conserva alguma coisa de uma transação;
por isso exige-se que seja "espontânea", que seja formulada diante do tribunal competente, que seja feita com toda
consciência, que não trate de coisas impossíveis, etc.(14) Pela confissão, o acusado se compromete em relação ao
processo; ele assina a verdade da informação.
Essa dupla ambigüidade da confissão (elemento de prova e contrapartida da informação; efeito de coação e
transação semivoluntária) explica os dois grandes meios que o direito criminal clássico utiliza para obtê-la: o juramento
que se pede ao acusado antes do interrogatório (ameaça por conseguinte de ser perjuro diante da justiça dos homens e
diante da de Deus; e ao mesmo tempo, ato ritual de compromisso); a tortura (violência física para arrancar uma verdade
que, de qualquer maneira, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juizes, a título de confissão
"espontânea"). No fim do século XVIII, a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de
uma selvageria denunciada como "gótica". É verdade que a prática da tortura remonta à Inquisição, é claro, e mais longe
ainda do que os suplícios dos escravos. Mas ela não figura no direito clássico como sua característica ou mancha. Ela tem
seu lugar estrito num mecanismo penal
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complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um lastro de elementos do sistema acusatório; em que a
demonstração escrita precisa de um correlato oral; em que as técnicas da prova administrada pêlos magistrados se
misturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado; em que lhe é pedido - se necessário pela coação
mais violenta- que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário; em que se trata em suma de produzir a
verdade por um mecanismo de dois elementos - o do inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato
realizado ritualmente pelo acusado. O corpo do acusado, corpo que fala e, se necessário, sofre, serve de engrenagem aos
dois mecanismos; é por isso que, enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito
poucas críticas radicais da tortura.(15) Com muito mais freqüência, simples conselhos de prudência:
O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade; por isso os juizes não devem recorrer a
ela sem refletir. Nada é mais equívoco. Há culpados que têm firmeza suficiente para esconder um crime verdadeiro...; e
outros, inocentes, a quem a força dos tormentos fez confessar crimes de que não eram culpados.(16)
Pode-se a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório como suplício da verdade. Em primeiro lugar, o
interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos
interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a
um procedimento bem definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos
chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os diferentes hábitos,
cuidadosamente codificado.(17) A tortura é um jogo judiciário estrito. E a esse título, mais longe do que às técnicas da
Inquisição, ela se liga às antigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios: ordálias, duelos judiciais,
julgamentos divinos. Entre o juiz que ordena a tortura e o suspeito que é torturado, há ainda como uma espécie de justa: o
"paciente" — é o termo pelo qual é designado o supliciado — é submetido a uma série de provas, de severidade graduada
e que ele ganha "agüentando", ou perde confessando.(18) Mas o juiz não impõe a tortura sem, por seu lado, correr riscos
(e não é só o perigo de ver morrer o suspeito); ele põe alguma coisa em jogo no torneio, que são os elementos de prova
que já reuniu; pois a regra diz que, se o condenado "agüenta" e não confessa, o magistrado é obrigado a abandonar as
acusações. O supliciado ganhou. Daí o hábito, que se introduzira para os casos mais graves, de impor suplício do
interrogatório "com reserva de provas": nesse caso o juiz podia continuar, depois das torturas, a fazer valer as presunções
reunidas; o suspeito não era inocentado por sua resistência; mas pelo menos devia ele à sua vitória não mais poder ser
condenado à morte. O juiz conservava todas as cartas, menos a principal. Omnia citra mortem. Daí a recomendação que
se faz muitas vezes aos juizes de não submeter a suplício
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do interrogatório um suspeito contra o qual há convicção suficiente dos crimes mais graves, pois se ele viesse a resistir à
tortura, o juiz não teria mais o direito de lhe infligir a pena de morte, que ele merece, entretanto; nessa justa, a justiça
perderia: se as provas são suficientes
para condenar tal culpado à morte [não se deve] ariscar a condenação ao destino e ao desenlace de um suplício de
interrogatório provisório que não leva a nada; pois afinal é para o bem-estar e o interesse público castigar para escarmento
os crimes graves, atrozes e capitais.(19)
Sob a aparente pesquisa intensa de uma verdade urgente, encontramos na tortura clássica o mecanismo
regulamentado de uma prova; um desafio físico que deve decidir sobre a verdade; se o paciente é culpado, os sofrimentos
impostos pela verdade não são injustos; mas ela é também uma prova de desculpa se ele for inocente. Sofrimento,
confronto e verdade estão ligados uns aos outros na prática da tortura; trabalham em comum o corpo do paciente. A
investigação da verdade pelo suplício do "interrogatório" é realmente uma maneira de fazer aparecer um indício, o mais
grave de todos - a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitória de um adversário sobre o outro que "produz"
ritualmente a verdade. A tortura para fazer confessar tem alguma coisa de inquérito, mas tem também de duelo.
Do mesmo modo misturam-se aí um ato de instrução e um elemento de punição. E esse não é um de seus menores
paradoxos. Com efeito, ela é definida como uma maneira de completar a demonstração quando "não há penas suficientes
no processo". E é classificada entre as penas; e uma pena tão grave que, na hierarquia das punições, a Ordenação de 1670
a insere logo depois da morte. Como pode uma pena ser utilizada como um meio, se perguntará mais tarde. Como se pode
fazer valer a título de castigo o que deveria ser um processo de demonstração? A razão está na maneira como, na época
clássica, a justiça criminal fazia funcionar a demonstração da verdade. As diferentes partes da prova não constituíam
outros tantos elementos neutros; não lhes cabia serem reunidas num feixe único para darem a certeza final da culpa. Cada
indício trazia consigo um grau de abominação. A culpa não começava uma vez reunidas todas as provas: peça por peça,
ela era constituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado. Assim, uma meia-prova não
deixava inocente o suspeito enquanto não fosse completada: fazia dele um meio-culpado; o indício, apenas leve, de um
crime grave, marcava alguém como "um pouco" criminoso. Enfim, a demonstração em matéria penal não obedecia a um
sistema dualista; verdadeiro ou falso; mas um princípio de gradação contínua: um grau atingido na demonstração já
formava um grau de culpa e implicava conseqüentemente num grau de punição. O suspeito, enquanto tal, merecia sempre
um certo castigo; não se podia ser inocentemente objeto de suspeita. A suspeita implicava, ao mesmo tempo, da parte do
juiz um elemento de demons-
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tração, da parte do acusado a prova de uma certa culpa, e da parte da punição uma forma limitada de pena. Um suspeito
que continuasse suspeito não estava inocentado por isso, mas era parcialmente punido. Quando se chegava a um certo
grau de presunção, podia-se então legitimamente executar uma prática que tinha um duplo papel: começar a punir em
razão das indicações já reunidas; e servir-se deste início de pena para extorquir o resto de verdade que ainda faltava. A
tortura judiciária, no século XVIII, funciona nessa estranha economia em que o ritual que produz a verdade caminha a par
com o ritual que impõe a punição. O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de
extorsão da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um elemento de inquérito e um fragmento de
culpa, o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo uma medida para punir e um ato de instrução.
Ora, curiosamente, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua, feita a prova e formulada a sentença,
na própria execução da pena. E o corpo do condenado é novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público.
Cabe ao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu. Seu corpo mostrado, passeado,
exposto, supliciado, deve ser como o suporte público de um processo que ficara, até então, na sombra; nele, sobre ele, o
ato de justiça deve-se tornar legível para todos. Essa manifestação atual e brilhante da verdade na execução pública das
penas toma, no século XVIII, vários aspectos:
1) Fazer em primeiro lugar do culpado o arauto de sua própria condenação. Ele é encarregado, de algum modo, de
proclamá-la e dessa maneira de atestar a verdade do que lhe foi reprovado: passeio pelas ruas, cartaz que lhe é pendurado
nas costas, no peito ou na cabeça para lembrar a sentença; paradas em vários cruzamentos, leitura do documento de
condenação, confissão pública à porta das igrejas, durante a qual o condenado reconhece solenemente seu crime:
Descalço, de camisola, levando uma tocha, de joelhos dizer e declarar que com maldade, horrivelmente,
traidoramente e com intenção premeditada, ele havia cometido o crime detestável, etc.;
exposição junto ao poste onde são lembrados os fatos e a sentença; mais uma vez leitura da condenação ao pé do
patíbulo; quer se trate simplesmente do pelourinho ou da fogueira e da roda, o condenado publica seu crime e a justiça
que ele é obrigado a fazer a si mesmo, levando-os fisicamente sobre o corpo.
2) Prosseguir uma vez mais a cena da confissão. Dublar a proclamação forçada da confissão pública com um
reconhecimento espontâneo e público.
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Estabelecer o suplício como momento da verdade. Fazer com que esses últimos instantes em que o culpado não tem
mais nada a perder sejam ganhos para a luz plena da verdade. O tribunal podia mesmo decidir, depois da condenação,
uma nova tortura para arrancar o nome dos eventuais cúmplices. Estava também previsto que no momento de subir ao
cadafalso o condenado podia pedir um tempo para fazer novas revelações. O público esperava essa nova peripécia da
verdade. Muitos aproveitavam isso para ganhar um pouco de tempo, como Michel Barbier, culpado de ataque a mão
armada:
Olhou desafiadoramente o cadafalso dizendo que não era para ele que tinham erguido, já que era inocente; pediu
primeiro para subir ao quarto onde apenas ficou a divagar durante meia hora, querendo sempre se justificar; depois,
levado ao suplício, sobe ao patíbulo decididamente, mas quando se vê despojado das vestes e preso na cruz, pronto a
receber os golpes de barra, pede para subir uma segunda vez ao quarto e lá finalmente confessa o crime e declara mesmo
que era culpado de outro assassinato.
O verdadeiro suplício tem por função fazer brilhar a verdade; e nisso ele continua, até sob os olhos do público, o
trabalho do suplício do interrogatório. Ele opõe à condenação a assinatura daquele que sofre. Um suplício bem sucedido
justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado. Exemplo do bom
condenado foi François Billiard, caixa-geral do correio, que em 1772 havia assassinado a mulher; o carrasco queria
esconder-lhe o rosto para defendê-lo dos insultos:
Não me infligiram, disse ele, essa pena que mereci para não ser visto pelo público... Usava ainda o traje de luto pela
mulher... calçava escarpins novos, tinha frisado os cabelos e aplicara pó branco à pele, caminhava numa atitude tão
modesta e imponente que as pessoas que haviam podido contemplá-lo mais de perto diziam que ele tinha que ser ou o
cristão mais perfeito ou o maior de todos os hipócritas. O cartaz que levava no peito estava torto, notaram que ele mesmo
o arrumava, sem dúvida para que pudesse ser lido mais facilmente. (21)
A cerimônia penal, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, tem a eficácia de uma longa confissão
pública.
3) Prender o suplício no próprio crime; estabelecer de um para o outro relações decifráveis. Exposição do cadáver
do condenado no local do crime, ou num dos cruzamentos mais próximos. Execução no próprio local em que o crime fora
cometido - como aquele estudante que em 1723 matara várias pessoas e para quem o tribunal de Nantes decidiu erguer um
cadafalso em frente à porta do albergue onde ele cometera os assassinatos.(22) Utilização de suplícios "simbólicos", em
que a forma da execução faz lembrar a natureza do crime: fura-se a língua dos blasfemadores, queimam-se os impuros,
corta-se o punho que matou; às vezes faz-se o condenado ostentar o instrumento de seu crime -como Damiens, com a
famosa faquinha que foi coberta com enxofre e amarrada à mão culpada para queimar ao mesmo tempo que ele. Como
dizia Viço, essa velha jurisprudência foi "toda uma poética".
39 ▲
Enfim, encontramos às vezes a reprodução quase teatral do crime na execução do culpado: mesmos instrumentos,
mesmos gestos. Aos olhos de todos, a justiça faz os suplícios repetirem o crime, publicando-o em sua verdade e anulandoo
ao mesmo tempo na morte do culpado. Ainda no final do século XVIII, em 1772, encontram-se sentenças como a
seguinte:
Uma criada de Cambrai, que matara sua senhora, é condenada a ser levada ao lugar do suplício numa carroça "usada
para retirar as imundícies em todas as encruzilhadas; lá haverá uma forca a cujo pé será colocada a mesma poltrona onde
estava sentada a senhora Laleu, sua patroa, quando foi assassinada; e sendo colocada lá, o executor da alta justiça lhe
cortará a mão direita e em sua presença a jogará ao fogo, e lhe dará imediatamente depois quatro facadas com a faca
utilizada por ela para assassinar a senhora Laleu, a primeira e a segunda na cabeça, a terceira no antebraço esquerdo, e a
quarta no peito; feito o que, será pendurada e estrangulada na dita forca até à morte; e depois de duas horas seu cadáver
será retirado, e a cabeça separada ao pé da dita forca sobre o dito cadafalso, com a mesma faca que ela utilizou para
assassinar sua senhora, e a cabeça exposta sobre uma figura de vinte pés fora da porta da dita Cambrai, junto ao caminho
que leva a Douai, e o resto do corpo posto num saco, e enterrado perto do dito poste, a dez pés de profundidade.(23)
4) Enfim, a lentidão do suplício, suas peripécias, os gritos e o sofrimento do condenado têm, ao termo do ritual
judiciário, o papel de uma derradeira prova. Como qualquer agonia, a que se desenrola no cadafalso diz uma certa
verdade: mas com mais intensidade, na medida em que é pressionada pela dor; com mais rigor, pois está exatamente no
ponto de junção do julgamento dos homens com o de Deus; com mais ostentação, pois se desenrola em público. O
sofrimento do suplício prolonga o da tortura preparatória; nesta, entretanto, o jogo não estava feito e a vida podia ser
salva; agora a morte é certa, trata-se de salvar a alma. O jogo eterno já começou; o suplício antecipa as penas do além;
mostra o que são elas; ele é o teatro do inferno; os gritos do condenado, sua revolta, suas blasfêmias já significam seu
destino irremediável. Mas as dores deste mundo podem valer também como penitência para aliviar os castigos do além;
um martírio desses, se é suportado com resignação, Deus não deixará de levar em conta. A crueldade da punição terrestre
é considerada como dedução da pena futura; nela se esboça a promessa do perdão. Mas pode-se dizer ainda: um
sofrimento tão vivo não seria sinal de que Deus abandonou o culpado nas mãos dos homens? E longe de garantir uma
futura absolvição, ele representa a danação iminente; enquanto que, se o condenado morre rápido, sem agonia prolongada,
não é isso a prova de que Deus quis protegê-lo e impedir que ele caísse no desespero? Portanto, ambigüidade desse
sofrimento que pode do mesmo modo significar a verdade do crime ou o erro dos juizes, a bondade ou a maldade do
criminoso, a coincidência ou a divergência entre o julgamento dos homens e o de Deus. Daí essa extraordinária
curiosidade que leva os espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso e do sofrimento que este exibe; lêem-se aí
o crime e a inocência, o passado e o futuro, este mundo e o eterno. Momento de verdade que todos os espectadores
interrogam: cada palavra, cada grito, a duração da agonia, o corpo que resiste, a vida que não
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quer ser arrancada, tudo isso vale por um sinal: o homem que viveu "seis horas na roda, não querendo que o executor, que
o consolava e o encorajava sem dúvida por sua iniciativa, o deixasse um só instante"; o que morre "com os sentimentos
mais cristãos, e demonstra o mais sincero arrependimento; o que "expira na roda uma hora depois de lá ter sido posto;
dizem que os espectadores de seu suplício ficaram comovidos com suas demonstrações exteriores de religião e de
arrependimento"; o que revelara os mais claros sinais de contrição durante todo o trajeto até o cadafalso, e que, colocado
vivo na roda, não cessa de "dar gritos pavorosos"; ou ainda a mulher que "conservara o sangue frio até o momento da
leitura do julgamento, mas cuja cabeça começou então a ficar perturbada; e completamente louca, ao ser enforcada".(24)
O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime. Ou melhor, ele
constitui o elemento que, através de todo um jogo de rituais e de provas, confessa que o crime aconteceu, que ele mesmo
o cometeu, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, suporta a operação do castigo e manifesta seus efeitos da maneira
mais ostensiva. O corpo várias vezes supliciado sintesa a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de
processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição. Peça essencial, conseqüentemente, numa liturgia penal em
que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno dos direitos formidáveis do soberano, do inquérito e
do segredo.
O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor,
das cerimônias pelas quais se manifesta o poder.
A infração, segundo o direito da era clássica, além do dano que pode eventualmente produzir, além mesmo da regra
que infringe, prejudica o direito do que faz valer a lei:
Mesmo supondo que não haja prejuízo nem injúria ao indivíduo, se foi cometida alguma coisa proibida por lei, é um
delito que exige reparação, porque o direito do superior é violado e é injuriar a dignidade de seu caráter.(25)
O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do
soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do príncipe. Pois
para que uma lei pudesse vigorar neste reino, era preciso necessariamente que emanasse diretamente do soberano,
ou pelo menos que fosse confirmada com o selo de sua autoridade.(26)
A intervenção do soberano não é portanto uma arbitragem entre dois adversários; é mesmo muito mais que uma
ação para fazer respeitar os direitos de cada um; é uma réplica direta àquele que a ofendeu.
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O exercício do poder soberano na punição dos crimes é sem dúvida uma das partes essenciais na administração da
justiça. (27)
O castigo então não pode ser identificado nem medido como reparação do dano; deve haver sempre na punição pelo
menos uma parte, que é a do príncipe; e mesmo quando se combina com a reparação prevista, ela constitui o elemento
mais importante da liquidação penal do crime. Ora, essa parte que toca ao príncipe, em si mesma, não é simples: ela
implica, por um lado, na reparação do prejuízo que foi trazido ao reino (a desordem instaurada, o mau exemplo dado, são
prejuízos consideráveis que não têm comparação como o que é sofrido por um particular); mas implica também em que o
rei procure a vingança de uma afronta feita à sua pessoa.
O direito de punir será então como um aspecto do direito que tem o soberano de guerrear seus inimigos: castigar
provém desse
direito de espada, desse poder absoluto de vida ou de morte de que trata o direito romano ao se referir ao merum
imperium, direito em virtude do qual o príncipe faz executar sua lei ordenando a punição do crime.(28)
Mas o castigo é também uma maneira de buscar uma vingança pessoal e pública, pois na lei a força físico-política
do soberano está de certo modo presente:
Vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender mas também a vingar o desprezo de sua
autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suas defesas.(29)
Na execução da pena mais regular, no respeito mais exato das formas jurídicas, reinam as forças ativas da vindita.
O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um
instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere
em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada,
submissão dos súditos revoltados): por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe aos olhos de todos uma força
invencível. Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dissimetria
entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força. Se a reparação do dano privado
ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada, se a sentença deve ser justa, a execução da pena é feita para dar não o
espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso; deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do
poder e de sua superioridade intrínseca. E esta superioridade não é simplesmente a do direito, mas a da força física do
soberano que se abate sobre o corpo de seu adversário e o domina: atacando a lei, o infrator lesa a própria pessoa do
príncipe: ela - ou pelo menos aqueles a quem ele delegou sua força - se apodera do corpo do condenado para mostrá-lo
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marcado, vencido, quebrado. A cerimônia punitiva é "aterrorizante". Os juristas do século XVIII, ao entrarem em
polêmica com os reformadores, darão uma interpretação restritiva e "modernista" da crueldade física das penas: se são
necessárias penas severas, é porque o exemplo deve ficar profundamente inscrito no coração dos homens. Na realidade,
entretanto, o que até então sustentara essa prática dos suplícios não era a economia do exemplo, no sentido em que isso
será entendido na época dos ideólogos (de que a representação da pena é mais importante do que o interesse pelo crime),
mas a política do medo: tornar sensível a todos, sobre o corpo do criminoso, a presença encolerizada do soberano. O
suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder. No século XVII, e ainda no começo do XVIII, ele não era, com todo
o seu teatro de terror, o resíduo ainda não extinto de uma outra época. Suas crueldades, sua ostentação, a violência
corporal, o jogo desmesurado de forças, o cerimonial cuidadoso, enfim todo o seu aparato se engrenava no funcionamento
político da penalidade.
Pode-se compreender a partir daí certas características da liturgia dos suplícios. E, antes de mais nada, a importância
de um ritual que devia exibir seu fausto em público. Nada devia ser escondido desse triunfo da lei. Os episódios eram
tradicionalmente os mesmos e no entanto as sentenças não deixavam de enumerá-los, de tal modo eles eram importantes
no mecanismo penal; desfiles, paradas nos cruzamentos, permanência à porta das igrejas, leitura pública da sentença,
ajoelhar-se, declarações em voz alta de arrependimento pela ofensa feita a Deus e ao rei. As questões de precedência e
etiqueta eram muitas vezes reguladas pelo próprio tribunal:
Os oficiais irão a cavalo segundo a ordem abaixo: a saber, à frente os dois sargentos de polícia; em seguida o
paciente: depois deste, Bonfort e Lê Corre caminharão juntos à sua esquerda, e darão lugar ao escrivão que os seguirá e
desta maneira irão à praça pública do grande mercado em que será executado o julgamento.(30)
Ora, esse cerimonial meticuloso é, de uma maneira muito explícita, não só judicial mas militar. A justiça do rei
mostra-se como uma justiça armada. O gládio que pune o culpado é também o que destrói os inimigos. Todo um aparato
militar cerca o suplício: sentinelas, arqueiros, policiais, soldados. Pois importa, evidentemente, impedir qualquer evasão
ou ato de violência; importa prevenir também, da parte do povo, um movimento de simpatia para salvar os condenados,
ou uma onda de indignação para matá-los imediatamente: importa igualmente lembrar que em todo crime há uma espécie
de sublevação contra a lei e que o criminoso é um inimigo do príncipe. Todas essas razões - quer sejam de precaução
numa determinada conjuntura, ou de função no desenrolar de um ritual - fazem da execução pública mais uma
manifestação de força do que uma obra de justiça; ou antes, é a justiça como força física, material e temível do soberano
que é exibida. A cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força que dá poder à lei.
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Como ritual da lei armada, em que o príncipe se mostra ao mesmo tempo, e de maneira indissociável, sob o duplo
aspecto de chefe de justiça e chefe de guerra, a execução pública tem duas faces: uma de vitória, outra de luta. De um
lado, ela é o desfecho entre o criminoso e o soberano, cujo resultado é conhecido antecipadamente; ela deve manifestar o
poder sem medidas do soberano sobre aqueles que ele reduziu à impotência. A dissimetria, o irreversível desequilíbrio das
forças faziam parte das funções do suplício. Um corpo liquidado, reduzido à poeira e jogado ao vento, um corpo destruído
parte por parte pelo poder infinito do soberano, constitui o limite não só ideal mas real do castigo. Atesta esse fato o
famoso suplício de Ia Massola, aplicado em Avignon, e que foi um dos primeiros a excitar a indignação dos
contemporâneos: suplício aparentemente paradoxal, pois se desenrola quase inteiramente depois da morte, e a justiça não
faz outra coisa que estender sobre um cadáver seu teatro magnífico, a louvação ritual de suas forças: o condenado é
amarrado a um poste, com os olhos vendados; em toda a volta, sobre o cadafalso, estacas com ganchos de ferro.
O confessor fala com o paciente ao ouvido, e depois que ele lhe dá a bênção, imediatamente o executor, com uma
maça de ferro, das que são usadas nos matadouros, descarrega um golpe com toda a força na têmpora do infeliz, que cai
morto: no mesmo instante, o mortis exactor lhe corta o pescoço com uma grande faca, banhando-se de sangue: num
espetáculo horrível para os olhos; corta-lhe os nervos até os dos calcanhares, e em seguida abre-lhe o ventre de onde tira o
coração, o fígado, o baço, os pulmões pendurando-os num gancho de ferro, e o corta e disseca em pedaços que põe em
outros ganchos à medida que vai cortando, assim como se faz com os de um animal. Quem puder que olhe uma coisa
dessas.(31)
Na forma lembrada explicitamente do açougue, a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo:
cada pedaço é exposto no balcão.
O suplício se realiza num grandioso cerimonial de triunfo: mas comporta também, como núcleo dramático em seu
desenrolar monótono, uma cena de confronto de inimigos: é a ação imediata e direta do carrasco sobre o corpo do
"paciente". Ação codificada, é claro, pois o costume, e muitas vezes de maneira explícita, a sentença, prescrevem os
principais episódios. Esta ação, no entanto, conserva alguma coisa da batalha. O executor não é simplesmente aquele que
aplica a lei, mas o que exibe a força; é o agente de uma violência aplicada à violência do crime, para dominá-la. Desse
crime ele é o adversário material e físico. Adversário ora digno de piedade, ora encarniçado. Damhoudère se queixava,
bem como muitos contemporâneos seus, de que os carrascos praticavam
toda espécie de crueldade para com os pacientes malfeitores, maltratando-os, com empurrões e pontapés e matandoos
como se tivessem animais sob suas mãos.(32)
E durante muito tempo esse hábito persistirá.(33) Há também alguma coisa de desafio e de justa na cerimónia do
suplício. Se o carrasco triunfa, se consegue fazer saltar com um golpe a cabeça que lhe mandaram abater, ele
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a mostra ao povo, põe-na no chão e saúda em seguida o público que o ovaciona muito, batendo palmas.(34)
Ao contrário, se ele fracassa, se não consegue matar como devia, é passível de punição. Foi o caso do carrasco de
Damiens, que, como não soubesse esquartejá-lo de acordo com as regras, teve que cortá-lo com a faca; confiscaram, em
proveito dos pobres, os cavalos do suplício que lhe tinham sido prometidos. Alguns anos mais tarde, o carrasco de
Avignon fizera sofrer demais os três bandidos, aliás temíveis, que devia enforcar; os espectadores se aborrecem;
denunciam-no; para puni-lo e também para subtraí-lo à vindita popular, é preso.(35) E, por trás dessa punição do carrasco
inábil, encontramos uma tradição, ainda bem próxima: ela dizia que o condenado seria perdoado se a execução
fracassasse. Era um costume claramente estabelecido em certas regiões.(36) Muitas vezes o povo esperava que tal
tradição fosse aplicada, e às vezes protegia um condenado que dessa maneira acabava escapando à morte. Para fazer
desaparecer tanto o costume quanto a expectativa, foi preciso lembrar o adágio: "a força não perde sua presa"; foi
necessário o cuidado de introduzir nas sentenças capitais instruções explícitas: "pendurado e estrangulado até a morte",
"até à extinção da vida". E jurista como Serpillon ou Blackstone insistem em pleno século XVIII no fato de que o fracasso
do carrasco não deve significar que o condenado salvou a vida.(37) Havia algo da prova e do julgamento de Deus que
ainda se podia perceber na cerimônia da execução. Em sua confrontação com o condenado, o executor era um pouco
como o campeão do rei. Campeão entretanto não condenável e condenado: a tradição dizia, parece, que quando as cartas
do carrasco haviam sido lacradas, não eram postas na mesa, mas jogadas à terra. Conhecem-se todas as proibições que
cercam esse "ofício muito necessário", mas "contrário à natureza".(38) Apesar de o carrasco ser, em certo sentido, o
gládio do rei, partilhava da infâmia do adversário. O poder soberano que o obrigava a matar, e que agia através dele, não
estava presente nele: não se identificava com sua fúria. E justamente nunca aparecia com tanta ostentação do que ao sustar
eventualmente com uma carta de indulto o gesto do executor. O pouco tempo que comumente separava a sentença da
execução (muitas vezes algumas horas) fazia com que geralmente a remissão interviesse no último momento. Mas a
cerimônia, com a lentidão de seus lances, havia sido organizada para permitir essa eventualidade.(39) Os condenados a
esperavam e, para fazer durar as coisas, pretendiam ainda, ao pé do cadafalso, ter revelações a fazer. O povo, quando a
desejava, lembrava-a aos gritos, procurando retardar o último momento, observando se o mensageiro vinha trazer a carta
com lacre de cera verde, e, se necessário, sugeriam que ele estava chegando (foi o que aconteceu no momento em que
eram executados os condenados por sublevação popular ocasionada por raptos de crianças, em 3 de agosto de 1750). O
soberano está presente à execução, não só como o poder
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que vinga a lei, mas como o poder que é capaz de suspender tanto a lei quanto a vingança. Só ele como senhor deve
decidir se lava as mãos ou as ofensas que lhe foram feitas; embora tenha conferido aos tribunais o cuidado de exercer seu
poder de justiça, ele não o alienou; conserva-o integralmente para suspender a pena ou fazê-la valer.
Deve-se conceber o suplício, tal como é ritualizado ainda no século XVIII, como um agente político. Ele entra
logicamente num sistema punitivo, em que o soberano, de maneira direta ou indireta, exige, resolve e manda executar os
castigos, na medida em que ele, através da lei, é atingido pelo crime. Em toda infração há um crimen majestatis, e no
menor dos criminosos um pequeno regicida em potencial. E o regicida, por sua vez, não é nem mais nem menos que o
criminoso total e absoluto, pois em vez de atacar, como qualquer delinqüente, uma decisão ou uma vontade particular do
poder soberano ele ataca seu princípio na pessoa física do príncipe. A punição do regicida deveria ser soma de todos os
suplícios possíveis. Seria a vingança infinita: as leis francesas, em todo caso, não previam pena fixa para essa espécie de
monstruosidade. Foi preciso inventar a de Ravaillac combinando entre si as mais cruéis que tinham sido praticadas na
França. Queriam imaginar ainda mais atrozes para Damiens. Houve projetos, mas foram considerados menos perfeitos.
Retomou-se então a cena de Ravaillac. E temos que reconhecer que foram moderados, comparados com os suplícios que
em 1584 o assassino de Guilherme de Orange teve que suportar, entregue a uma vingança sem fim.
No primeiro dia, ele foi levado à praça onde encontrou uma caldeira d'água fervente, onde foi enfiado o braço com o
qual desferira o golpe. No dia seguinte, o braço foi cortado, e, tendo caído a seus pés, chutou-o lá de cima do cadafalso
sem pestanejar; no terceiro, foi atenazado, na frente, nos mamilos e na parte dianteira do braço; no quarto, foi igualmente
atenazado nos braços por trás e nas nádegas; e assim consecutivamente, esse homem foi martirizado pelo espaço de
dezoito dias. [No último, foi posto na roda e atado. Ao fim de seis horas ainda pedia água, que não lhe deram]. Finalmente
pediram ao magistrado que autorizasse liquidá-lo por estrangulamento para que sua alma não desesperasse e se
perdesse.(40)
Não há dúvida de que a existência dos suplícios se ligava a alguma coisa bem diferente dessa organização interna.
Rusche e Kirchheimer têm razão de ver aí o efeito de um regime e produção em que as forças de trabalho, e portanto o
corpo humano, não têm a utilidade nem o valor de mercado que lhes serão conferidos numa sociedade de tipo industrial. É
certo também que o "desprezo" pelo corpo se refere a uma atitude geral em relação à morte; e nessa atitude, poder-se-ia
tanto os valores próprios ao cristianismo quanto uma situação demográfica e de certo modo biológica: as devastações da
doença e da fome, os morticínios periódicos das epidemias, a enorme mortalidade infantil, a
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precariedade dos equilíbrios bioeconômicos - tudo isso tornava a morte familiar e provocava em torno dela rituais para
integrá-la, torná-la aceitável e dar sentido à sua agressão permanente. Seria necessário também, para analisar esse longo
período de legalidade dos suplícios, referir-se a fatos de conjuntura; não devemos esquecer que a ordenação de 1670, que
regulou a justiça criminal até às vésperas da Revolução, agravara ainda em certos pontos o rigor dos antigos éditos:
Pussort, que, entre os comissários encarregados de preparar os textos, representava as intenções do rei, a impusera dessa
maneira, apesar de certos magistrados como Lamoignon: a multiplicidade das sublevações ainda no meio da era clássica,
a ameaça de iminentes guerras civis, a vontade do rei de fazer valer seu poder em prejuízo dos parlamentos explicam em
grande parte a persistência de um regime penal "duro".
Para explicar o emprego do suplício como penalidade, não faltam razões gerais e de algum modo externas, que
esclarecem a possibilidade e a longa persistência das penas físicas, a fraqueza e o caráter bastante isolado dos protestos
feitos. Mas, sobre esse fundo, é preciso fazer aparecer sua função precisa. O suplício se inseriu tão fortemente na prática
judicial, porque é revelador da verdade e agente do poder. Ele promove a articulação do escrito com o oral, do secreto
com o público, do processo de inquérito com a operação de confissão; permite que o crime seja reproduzido e voltado
contra o corpo visível do criminoso; faz com que o crime, no mesmo horror, se manifeste e se anule. Faz também do
corpo do condenado o local de aplicação da vindita soberana, o ponto sobre o qual se manifesta o poder, a ocasião de
afirmar a dissimetria das forças. Veremos mais adiante que a relação verdade-poder é essencial a todos os mecanismos de
punição, e se encontra nas práticas contemporâneas da penalidade — mas com uma forma totalmente diversa e com
efeitos muito diferentes. O iluminismo logo há de desqualificar os suplícios reprovando-lhes a "atrocidade". Termo pelo
qual os suplícios eram muitas vezes caracterizados sem intenção críticapelos próprios juristas. Talvez a noção de
"atrocidade" seja uma das que melhor designam a economia do suplício na antiga prática penal. A atrocidade é em
primeiro lugar um caráter próprio a certos grandes crimes: ela se refere ao número de leis naturais e positivas, divinas ou
humanas que eles violam, à ostentação escandalosa ou ao contrário à esperteza secreta com que foram cometidos, ao nível
social e ao status dos que são seus autores e vítimas, à desordem que implicam ou ocasionam, ao horror que suscitam.
Mas, na medida em que a punição põe em cena, aos olhos de todos, o crime em toda a sua severidade, deve assumir essa
atrocidade: deve trazê-la à luz por meio de confissões, discursos, inscrições que a tornem pública; deve reproduzi-la em
cerimônias que a apliquem ao corpo do culpado sob forma de humilhação e de sofrimento. A atrocidade é essa parte do
crime que o castigo torna em suplício para fazer brilhar em plena luz: figura inerente
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ao mecanismo que produz, no próprio coração da punição, a verdade visível do crime. O suplício faz parte do
procedimento que estabelece a realidade do que é punido. Mas não é só: a atrocidade de um crime é também a violência
do desafio lançado ao soberano: é o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa
atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso que a anula. A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha portanto
um duplo papel: sendo princípio da comunicação do crime com a pena, ela é por outro lado a exasperação do castigo em
relação ao crime. Realiza ao mesmo tempo a ostentação da verdade e do poder; é o ritual do inquérito que termina e da
cerimônia onde triunfa o soberano. E ela os une no corpo supliciado. A prática punitiva do século XIX procurará pôr o
máximo de distância possível entre a pesquisa "serena" da verdade e a violência que não se pode eliminar inteiramente da
punição. Será feito o possível para marcar a heterogeneidade que separa o crime que deve ser sancionado e o castigo
imposto pelo poder público. Entre a verdade e a punição só deverá haver agora uma relação de conseqüência legítima.
Que o poder que sanciona não se macule mais por um crime maior que o que ele quis castigar. Que fique inocente da pena
que inflige. "Tratemos de proscrever tais suplícios. Eram dignos só dos monstros coroados que governaram os
romanos".(41) Mas de acordo com a prática penal da época anterior, a proximidade do crime e do soberano no crime, a
mistura que se fazia entre a "demonstração" e o castigo, não provinham de uma confusão bárbara: o que então se realizava
era o mecanismo da atrocidade e suas ligações necessárias. A atrocidade da expiação organizava a redução ritual da
infâmia pelo todo-poderoso.
Que o erro e a punição se intercomuniquem e se liguem sob a forma de atrocidade, não era a conseqüência de uma
lei de talião obscuramente admitida. Era o efeito, nos ritos punitivos, de uma certa mecânica do poder: de um poder que
não só não se furta a se exercer diretamente sobre os corpos, mas se exalta e se reforça por suas manifestações físicas; de
um poder que se afirma como poder armado, e cujas funções de ordem não são inteiramente desligadas das funções de
guerra; de um poder que faz valer as regras e as obrigações como laços pessoais cuja ruptura constitui uma ofensa e exige
vingança; de um poder para o qual a desobediência é um ato de hostilidade, um começo de sublevação, que não é em seu
princípio muito diferente da guerra civil; de um poder que não precisa demonstrar por que aplica suas leis, mas quem são
seus inimigos, e que forças descontroladas os ameaçam; de um poder que, na falta de uma vigilância ininterrupta, procura
a renovação de seu efeito no brilho de suas manifestações singulares; de um poder que se retempera ostentando
ritualmente sua realidade de superpoder.
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Ora, entre todas as razões pelas quais os castigos que reivindicarão a honra ser "humanos" substituirão as penas que
não tinham vergonha de ser "atrozes", há uma que devemos analisar imediatamente, pois é inerente ao próprio suplício: ao
mesmo tempo elemento de seu funcionamento e princípio de sua perpétua desordem.
Nas cerimónias do suplício, o personagem principal é o povo, cuja presença real e imediata é requerida para sua
realização. Um suplício que tivesse sido conhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido.
Procurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas
provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado:
Em matéria criminal, o ponto mais difícil é a imposição da pena: é o objetivo e o fim do processo, e o único fruto,
pelo exemplo e pelo terror, quando é bem aplicada ao culpado.(42)
Mas nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo. Ele é chamado como espectador: é convocado para assistir às
exposições, às confissões públicas; os pelourinhos, as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beira
dos caminhos; os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem em evidência perto do local de seus crimes.
As pessoas não só têm que saber, mas também ver com seus próprios olhos. Porque é necessário que tenham medo; mas
também porque devem ser testemunhas e garantias da punição, e porque até certo ponto devem tomar parte nela. Ser
testemunhas é um direito que eles têm e reivindicam; um suplício escondido é um suplício de privilegiado, e muitas vezes
suspeita-se que não se realize em toda a sua severidade. Todos protestam quando no último instante se retira a vítima aos
olhares dos espectadores. O caixa-geral do correio, exposto porque matara a mulher, é em seguida subtraído à multidão;
fazem-no subir numa carruagem de praça; se não estivesse bem escoltado, teria sido difícil defendê-lo dos maus
tratos da populaça que queria justiçá-lo.(43)
Quando a mulher Lescombat é enforcada, tiveram a cautela de lhe esconder o rosto com uma "espécie de coifa"; ela
leva um "lenço sobre o colo e a cabeça, o que faz o público murmurar muito e dizer que não era a Lescombat". O povo
reivindica seu direito de constatar o suplício e quem é supliciado.(45) Tem direito também de tomar parte. O condenado,
depois de ter andado muito tempo, exposto, humilhado, várias vezes lembrado do horror de seu crime, é oferecido aos
insultos, às vezes aos ataques dos espectadores. Na vingança do soberano, a do povo era chamada a se insinuar. Não que
esta seja o fundamento daquela e que o rei deva à sua maneira traduzir a vindita do povo; é antes o povo que deve trazer
sua participação ao rei quando este vai se "vingar de seus inimigos", até e principalmente quando esses inimigos estão no
meio do povo. Há um tal qual "serviço de cadafalso" que o povo deve à vingança do rei.
49 ▲
"Serviço" que fora previsto pelas velhas ordenações; o edito de 1347 sobre os blasfemadores previa que seriam
expostos no pelourinho
desde a primeira hora da manhã até à da morte. E se poderá lhes jogar nos olhos lama e outras sujeiras, sem pedra ou
outra coisa que fira... Na segunda vez, em caso de reincidência, queremos que seja posto no pelourinho em dia de
mercado solene, e que o lábio superior seja fendido e que apareçam os dentes.
Sem dúvida, na época clássica, essa forma de participação ao suplício já não é mais que uma tolerância, que se
procura limitar: por causa das barbaridades que provoca e da usurpação que faz do poder de punir. Mas ela pertencia
muito intimamente à economia geral dos suplícios e não podia por isso ser totalmente reprimida. Ainda se vêem no século
XVIII cenas como a do suplício de Montigny; enquanto o carrasco executava o condenado, as peixeiras de La Halle
andavam com um boneco ao qual decepavam a cabeça.(46) E várias vezes foi preciso "proteger" da multidão os
criminosos que eram obrigados a desfilar lentamente no meio dela - ao mesmo tempo para escarmento e alvo, ameaça
eventual e presa prometida e ao mesmo tempo proibida. O soberano, ao chamar a multidão para a manifestação de seu
poder, tolerava um instante as violências que ele permitia como sinal de fidelidade, mas às quais opunha imediatamente
os limites de seus próprios privilégios.
Ora é nesse ponto que o povo, atraído a um espetáculo feito para aterrorizá-lo, pode precipitar sua recusa do poder
punitivo, e às vezes sua revolta. Impedir uma execução que se considera injusta, arrancar um condenado às mãos do
carrasco, obter à força seu perdão, eventualmente perseguir e assaltar os executores, de qualquer maneira maldizer os
juizes e fazer tumulto contra a sentença, isso tudo faz parte das práticas populares que contrariam, perturbam e
desorganizam muitas vezes o ritual dos suplícios. Claro, isto sucede com freqüência, quando as condenações sancionam
revoltas; foi o que sucedeu aos seqüestros de crianças quando a multidão queria impedir a execução de três supostos
amotinados, condenados à forca no cemitério Saint-Jean "porque há menos saídas e desfiladeiros para guardar(47); o
carrasco amedrontado soltou um dos condenados; os arqueiros atiraram. Foi o caso depois da sublevação dos trigos em
1775; ou ainda em 1786, quando os trabalhadores diaristas, depois de ter marchado sobre Versalhes, começaram a libertar
os seus que tinham sido presos. Mas fora desses casos, em que o processo de agitação é provocado anteriormente e por
razões que não se referem a uma medida de justiça penal, encontramos muitos exemplos em que a agitação é provocada
diretamente por um veredicto e uma execução. Pequenas mas inúmeras "emoções de cadafalso".
Em suas formas mais elementares, essas agitações começam com os encorajamentos, as aclamações às vezes, que
acompanham o condenado até a execução. Durante toda a sua longa caminhada, ele é sustentado pela "compaixão dos que
têm coração sensível, e os aplausos, a admiração, a inveja dos que são cruéis e duros.(48) Se a multidão se comprime em
torno do cadafalso, não é
50 ▲
simplesmente para assistir ao sofimento do condenado ou excitar a raiva do carrasco: é também para ouvir aquele que não
tem mais nada a perder maldizer os juizes, as leis, o poder, a religião. O suplício permite ao condenado essas saturnais de
um instante, em que nada mais é proibido nem punível. Ao abrigo da morte que vai chegar, o criminoso pode dizer tudo, e
os assistentes aclamá-lo.
Se houvesse anais para registrar escrupulosamente as últimas palavras dos supliciados, e se tivesse a coragem de
percorrê-los, se se perguntasse a essa vil população reunida por uma curiosidade cruel em torno dos cadafalsos, ela
responderia que não há culpado amarrado à roda que não morra acusando o céu da miséria que o levou ao crime,
reprovando a barbárie de seus juizes, maldizendo o ministério dos altares que os acompanha e blasfemando contra Deus
de que ele é o instrumento.(49)
Há nessas acusações, que só deveriam mostrar o poder aterrorizante do príncipe, todo um aspecto de carnaval em
que os papéis são invertidos, os poderes ridicularizados e os criminosos transformados em heróis. A infâmia se transforma
no contrário; a coragem deles, seus gritos e lamentos só podem preocupar a lei. Fielding observa com pesar:
Quando se vê tremer um condenado, não se pensa na vergonha. E menos ainda se ele é arrogante.(50)
Para o povo que aí está e olha, sempre existe, mesmo na mais extremada vingança do soberano, pretexto para uma
revanche.
Ainda mais se a condenação é considerada injusta. E se vê levar à morte um homem do povo, por um crime que
teria custado, a alguém mais bem nascido ou mais rico, uma pena relativamente leve. Parece que certas práticas da justiça
penal não eram mais suportadas no século XVIII - e talvez desde há muito tempo - pelas camadas profundas da
população. O que facilmente dava lugar pelo menos a começos de agitação. Já que os mais pobres - observa um
magistrado - não têm possibilidade de ser ouvidos na justiça (51), eles podem intervir fisicamente, onde quer que ela se
manifeste publicamente, onde quer que eles sejam chamados como testemunhas e quase coadjutores dessa justiça,
entrando violentamente no mecanismo punitivo e redistribuindo os efeitos dele; repetindo em outro sentido a violência
dos rituais punitivos. Agitação contra a diferença das penas segundo as classes sociais: em 1781, o cura de Champré foi
morto pelo senhor do local, que muitos querem fazer passar por louco;
os camponeses furiosos, porque eram extremamente ligados ao seu pastor, pareceram primeiro dispostos a ir aos
últimos excessos contra seu senhor, cujo castelo ameaçaram incendiar... Todo mundo reclamava com razão contra a
indulgência do ministério que retirava à justiça os meios de punir um crime tão abominável. (52)
Agitação também contra as penas excessivamente pesadas para os delitos frequentes e considerados pouco graves
(latrocínio com arrombamento); ou contra castigos que punem certas infrações ligadas a condições sociais, como o furto
doméstico; a pena de morte para esse crime provocava muito descontentamento, porque os criados eram numerosos, e era
difícil para eles, nesse assunto, provar sua inocência, podiam ser facilmente vítimas da maldade dos
51 ▲
patrões e a indulgência de certos senhores que fechavam os olhos tornava mais iníqua a sorte dos servidores acusados,
condenados e enforcados. A execução desses criados muitas vezes dava lugar a protestos.33 Houve uma pequena revolta
em Paris em 1761 por causa de uma criada que roubara um pedaço de tecido do patrão. Apesar da restituição, apesar das
súplicas, este não quis retirar a queixa: no dia da execução, o pessoal do bairro impede o enforcamento, invade a loja do
comerciante, e a saqueia; a empregada é finalmente perdoada; mas uma mulher, que quase picotara a agulhadas o mau
patrão, é banida por três anos.(54)
No século XVIII recordam-se os grandes casos judiciais em que a opinião das pessoas esclarecidas intervém junto
com a dos filósofos e certos magistrados: Calas, Sirven, o cavaleiro de La Barre. Mas fala-se menos de todas essas
agitações populares em torno da prática punitiva. Raramente com efeito elas ultrapassaram o âmbito de uma cidade, às
vezes de um bairro. Tiveram entretanto real importância. Porque esses movimentos, partindo de baixo, se propagaram,
chamaram a atenção de gente mais bem colocada, que, ao chamar a atenção para eles, lhes deram uma nova dimensão
(assim, nos anos que precederam a Revolução, os casos de Catherine Espinas falsamente acusada de parricídio em 1785;
os três condenados à roda de Chaumont para quem Dupaty, em 1786, escrevera sua famosa memória, ou daquela Marie
Françoise Salmon que o parlamento de Rouen em 1782 condenara à fogueira, como envenenadora, mas que em 1786
continuava sem ser executada). E também porque essas agitações conservaram em torno da justiça penal e de suas
manifestações, que deveriam ter sido exemplares, uma inquietação permanente. Quantas vezes, para manter a calma em
volta dos cadafalsos, foi necessário tomar providências "penosas para o povo" t precauções "humilhantes para a
autoridade"?(55) Via-se bem que o grande espetáculo das penas corria o risco de retornar através dos mesmos a quem se
dirigia. O pavor dos suplícios na realidade acendia focos de ilegalismo: nos dias de execução, o trabalho era interrompido,
as tabernas ficavam cheias, lançavam-se injúrias ou pedras ao carrasco, aos policiais e aos soldados; procurava-se apossar
do condenado, para salvá-lo ou para melhor matá-lo; brigava-se, e os ladrões não tinham ocasião melhor que o aperto e a
curiosidade em torno do cadafalso.(56) Mas principalmente - e aí é que esses inconvenientes se tornavam um perigo
político - em nenhuma outra ocasião do que nesses rituais, organizados para mostrar o crime abominável e o poder
invencível, o povo se sentia mais próximo dos que sofriam a pena; em nenhuma outra ocasião ele se sentia mais
ameaçado, como eles, por uma violência legal sem proporção nem medida. A solidariedade de toda uma camada da
população com os que chamaríamos pequenos delinqüentes - vagabundos, falsos mendigos, maus pobres, batedores de
carteira, receptadores, passadores - se manifestou com muita continuidade; atestam esse fato a resistência ao
policiamento, a caça aos denunciantes, os ataques contra as sentinelas ou os inspetores.(57) E era a ruptura dessa
solidariedade que visava sempre mais a repressão penal e policial. Muito mais do que o poder soberano podia essa
solidariedade sair
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reforçada da cerimônia dos suplícios, dessa festa incerta onde a violência era instantaneamente reversível. E os
reformadores do século XVIII e XIX não esquecerão que as execuções, no fim das contas, simplesmente não assustavam
o povo. Um de seus primeiros apelos foi exigir a suspensão delas.
Para definir o problema político trazido pela intervenção popular na ação do suplício, basta citar duas cenas. Uma
data do fim do século XVII: situa-se em Avignon. Aí encontramos os principais elementos do teatro do tormento:
confrontação física do carrasco e do condenado, a inversão da justa: o executor perseguido pelo povo, o condenado salvo
pêlos revoltosos e a violenta reviravolta da maquinaria penal. Ia ser enforcado um assassino chamado Pierre du Fort:
várias vezes ele "prendeu os pés nos degraus" e não pôde ficar suspenso no vazio.
Vendo isso o carrasco lhe cobriu o rosto com seu gibão e lhe batia por baixo do joelho, sobre o estômago e a barriga.
Vendo o povo que ele o fazia sofrer demais e pensando mesmo que o degolava com uma baioneta - tomado de compaixão
pelo paciente e de fúria contra o carrasco, jogou pedras contra ele; enquanto isto, o carrasco abriu as duas escadas e jogou
a vítima para baixo, saltando-lhe sobre os ombros e pisando-a enquanto a mulher do dito carrasco o puxava pêlos pés por
baixo da forca. Fizeram-lhe sair sangue da boca. Mas a chuva de pedras contra ele aumentou, houve até algumas que
atingiram o enforcado na testa, o que obrigou o carrasco a subir a escada, de onde desceu com tanta precipitação que caiu
no meio dela, e deu com a cabeça no chão. E a multidão se lançou sobre ele. Este se levantou com uma baioneta na mão,
ameaçando matar quem se aproximasse; mas, depois de cair e se levantar várias vezes, apanhou muito do povo que o
emporcalhou e o afogou no riacho, arrastando-o em seguida com grande paixão e fúria até à Universidade e de lá até o
cemitério dos Cordeliers. Seu criado, igualmente surrado, com a cabeça e o corpo machucados, foi levado ao hospital
onde morreu alguns dias depois. Entretanto alguns forasteiros e desconhecidos subiram a escada e cortaram a corda do
enforcado, enquanto outros o recebiam por baixo depois de ter ficado pendurado o tempo maior que um grande Miserere.
E, ao mesmo tempo, quebraram a forca, e o povo fez em pedaços a escada do carrasco... As crianças atiraram a forca com
grande precipitação no Ródano. [Quanto ao supliciado, foi transportado para um cemitério] para não ser apanhado pela
justiça e de lá para a Igreja de Saint-Antoine. [O arcebispo lhe concedeu o perdão, mandou transportá-lo para o hospital e
recomendou aos oficiais que tomassem com ele um cuidado todo especial. Enfim, acrescenta o redator da ata], mandamos
fazer uma roupa nova, dois pares de meias, sapatos, vestimo-lo de novo da cabeça aos pés. Os nossos confrades lhe deram
camisas, calções, luvas, e uma peruca.(58)
A outra cena se situa em Paris, um século mais tarde. Foi em 1775, logo depois da revolta sobre os trigos. A tensão,
muito forte no povo, faz com que se deseje uma execução "limpa". Entre o cadafalso e o público, cuidadosamente
mantido à distância, uma dupla fileira de soldados vigia, de um lado a execução iminente, de outro a revolta possível. O
contato está rompido: suplício público, mas onde a parte do espetáculo é neutralizada, ou melhor, reduzida à intimidação
abstraia. Ao abrigo das armas, numa praça vazia, a justiça sobriamente executa. Se ela mostra a morte que dá, é de cima e
de longe:
Só às três horas da tarde tinham sido colocadas as duas forcas, de 18 pés de altura e sem dúvida para maior exemplo.
Desde as duas horas, a praça de Greve e todos os arredores tinham sigo guarnecidos por destacamentos das diferentes
tropas, tanto a pé quanto a cavalo; os suíços e as guardas francesas continuavam suas patrulhas nas ruas adjacentes. Não
foi permitida a entrada de
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ninguém na Greve durante a execução, e em toda a volta se via uma dupla fileira de soldados, com a baioneta no fuzil,
enfileirados de costas uns para os outros, de maneira que uns olhassem o exterior e outros o interior da praça; os dois
infelizes... gritavam ao longo do caminho que eram inocentes, e continuavam a protestar da mesma maneira subindo na
escada.(59)
No abandono da liturgia dos suplícios, que papel tiveram os sentimentos de humanidade para com os condenados?
Houve de todo modo, de parte do poder, um medo político diante do efeito desses rituais ambíguos.
Tal equívoco aparece claramente no que se poderia chamar "discurso de cadafalso". O rito da execução previa que o
próprio condenado proclamasse sua culpa reconhecendo-a publicamente de viva voz, pelo cartaz que levava, e também
pelas declarações que sem dúvida era obrigado a fazer. No momento da execução parece que lhe deixavam além disso
tomar a palavra, não para clamar sua inocência, mas para atestar seu crime e a justiça de sua condenação. As crônicas
reportam um bom número de discursos desse gênero. Discursos reais? Sem dúvida, num certo número de casos. Discursos
fictícios que em seguida se faziam circular para exemplo e exortação? Foi sem dúvida ainda o caso mais freqüente. Que
crédito dar ao que se conta, por exemplo, da morte de Marion Lê Goff, famosa chefe de quadrilha na Bretanha em meados
do século XVIII? Ela teria gritado do alto do cadafalso:
Pai e mãe que me ouvem, guardai e ensinai bem vossos filhos; fui em minha infância mentirosa e preguiçosa;
comecei roubando uma faquinha de seis réis... depois assaltei mascates, mercadores de gado; enfim comandei uma
quadrilha de ladrões e por isso estou aqui. Dizei isso a vossos filhos e que ao menos lhes sirva de exemplo.(60)
Tal discurso se parece demais, até nos termos, da moral tradicionalmente encontrada nos folhetins, nos pasquins e
na literatura popular, para que não seja apócrifo. Mas a existência do gênero "últimas palavras de um condenado" é em si
mesma significativa. A justiça precisava que sua vítima autenticasse de algum modo o suplício que sofria. Pedia-se ao
criminoso que consagrasse ele mesmo sua própria punição proclamando o horror de seus crimes; faziam-no dizer, como
Jean-Dominique Langlade, três vezes assassino: .
Escutai todos minha ação horrível, infame e lamentável, cometida na cidade de Avignon, onde minha lembrança é
execrável, ao violar sem humanidade os direitos sagrados da amizade.(61)
De um certo ponto de vista, o folhetim e o canto do morto são a continuação do processo; ou, antes, eles continuam
o mecanismo pelo qual o suplício fazia passar a verdade secreta e escrita do processo para o corpo, para o gesto e as
palavras do criminoso. A justiça precisava desses apócrifos para se fundamentar na verdade. Suas decisões eram assim
cercadas de todas essas "provas" póstumas. Acontecia também que eram publicadas narrativas de crimes e de vidas
infames, a título de pura propaganda, antes da qualquer processo e para forçar a mão de uma justiça que se suspeitava de
ser excessivamente tolerante. Afim de desacreditar os contrabandistas, a "Compagnie dês Fermes" publicava
54 ▲
"boletins" contando os crimes deles: em 1768, contra um certo Montagne que estava à frente de um bando, ela distribui
folhetins de que diz o próprio redator:
Foram-lhe atribuídos alguns roubos cuja verdade é bastante incerta...; representaram Montagne como uma besta
fera, uma segunda hiena que tinha que ser caçada; como as cabeças no Auvergne andavam quentes, a ideia pegou.(62)
Mas o efeito e o uso dessa literatura eram equívocos. O condenado se tornava herói pela enormidade de seus crimes
largamente propalados, e às vezes pela afirmação de seu arrependimento tardio. Contra a lei, contra os ricos, os
poderosos, os magistrados, a polícia montada ou a patrulha, contra o fisco e seus agentes, ele aparecia como alguém que
tivesse travado um combate em que todos se reconheciam facilmente. Os crimes proclamados elevavam à epopéia lutas
minúsculas que as trevas acobertavam todos os dias. Se o condenado era mostrado arrependido, aceitando o veredicto,
pedindo perdão a Deus e aos homens por seus crimes, era visto purificado; morria, à sua maneira, como um santo. Mas
até sua irredutibilidade lhe dava grandeza: não cedendo aos suplícios, mostrava uma força que nenhum poder conseguia
dobrar:
No dia da execução, poucos acreditarão nisto: viram-me sem emoção afazer confissão pública, sentei-me enfim
sobre a cruz sem mostrar nenhum temor.(63)
Herói negro ou criminoso reconciliado, defensor do verdadeiro direito ou força indomável, o criminoso dos
folhetins, das novelas, dos almanaques, das bibliotecas azuis(64), representa sob a moral aparente do exemplo que não
deve ser seguido toda uma memória de lutas e confrontos. Já houve condenado que, depois da morte, se tornaram uma
espécie de santos, de memória venerada e túmulo respeitado.(65) Alguns passaram quase inteiramente para o lado do
herói positivo. Para outros a glória e a abominação não estavam dissociadas, mas coexistiam muito tempo ainda, numa
figura reversível. Em toda essa literatura de crimes, que prolifera em torno de algumas grandes silhuetas(66), não se deve
ver certamente nem uma "expressão popular" em estado puro, nem tampouco uma ação combinada de moralização e
propaganda, vinda de cima; era um lugar em que se encontravam dois investimentos da prática penal - uma espécie de
frente de luta em torno do crime, de sua punição e lembrança. Se esses relatos podem ser impressos e postos em
circulação, é certamente porque se esperam deles efeitos de controle ideológico', fábulas verídicas da pequena história.
Mas se são recebidos com tanta atenção, se fazem parte das leituras de base das classes populares, é porque elas aí
encontram não só lembranças mas pontos de apoio; o interesse de "curiosidade" é também um interesse político. De modo
que esses textos podem ser lidos como discursos com duas faces nos fatos que contam, na divulgação que dão a eles e na
glória que conferem a esses criminosos designados como "ilustres", e sem dúvida nas próprias palavras que empregam
(seria preciso estudar o uso de categorias como as de "desgraça", "abominações", ou os qualificativos de "famoso",
"lamentável", em relatos como "História da vida, grandes roubos e espertezas de Guilleri e seus companheiros e seu fim
lamentável e desgraçado. (68)
55 ▲
É preciso sem dúvida aproximar dessa literatura as "emoções de cadafalso" onde se defrontavam através do corpo
do supliciado o poder que condenava e o povo que era testemunha, participante, a vítima eventual e "eminente" daquela
execução. A seqüência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder que pretendia ritualizar. Foi invadido
por uma massa de discursos, que continuava o mesmo confronto; a proclamação póstuma dos crimes justificava a justiça,
mas também glorificava o criminoso. Por isso os reformadores do sistema penal logo pediram a supressão desses
folhetins.(69) Por isso houve, no meio do povo, um tão grande interesse por aquilo que desempenhava um pouco o papel
da epopéia menor e cotidiana das ilegalidades. Por isso eles perderam importância à medida que se modificou a função
política da ilegalidade popular.
E desapareceram à medida que se desenvolveu uma literatura do crime totalmente diferente: uma literatura em que o
crime é glorificado, mas porque é uma das belas-artes, porque só pode ser obra de seres de exceção, porque revela a
monstruosidade dos fortes e dos poderosos, porque a perversidade é ainda uma maneira de ser privilegiado: do romance
negro a Quincey, ou do Châreau d'Otrante a Baudelaire, há toda uma reescrita estética do crime, que é também a
apropriação da criminalidade sob formas aceitáveis. É, aparentemente, a descoberta da beleza e da grandeza do crime; na
realidade é a afirmação de que a grandeza também tem direito ao crime e se torna mesmo privilégio dos que são
realmente grandes. Os belos assassinatos não são para os pobres coitados de ilegalidade. Quanto à literatura policial, a
partir de Gaboriau, ela dá seqüência a esse primeiro deslocamento: por suas astúcias, sutilezas e extrema vivacidade de
sua inteligência, o criminoso tornou-se insuspeitável; e a luta entre dois puros espíritos - o de assassino e o detetive -
constituirá a forma essencial do confronto. Estamos muito longe daqueles relatos que detalhavam a vida e as más ações do
criminoso, que o faziam confessar ele mesmo seus crimes e que contavam com minúcias o suplício sofrido: passou-se da
exposição dos fatos ou da confissão ao lento processo da descoberta; do momento do suplício à fase do inquérito; do
confronto físico com o poder à luta intelectual entre o criminoso e o inquisidor. Não são simplesmente os folhetins que
desaparecem ao nascer a literatura policial; é a glória do malfeitor rústico, e é a sombria heroicização pelo suplício. O
homem do povo agora é simples demais para ser protagonista das verdades sutis. Nesse novo gênero, não há mais heróis
populares nem grandes execuções; os criminosos são maus, mas inteligentes; e se há punição, não há sofrimento. A
literatura policial transpõe para outra classe social aquele brilho de que o criminoso fora cercado. São os jornais que trarão
à luz nas colunas dos crimes e ocorrências diárias a mornidão sem epopéia dos delitos e punições. Está feita a divisão: que
o povo se despoje do antigo orgulho de seus crimes: os grandes assassinatos tornaram-se o jogo silencioso dos sábios.
56 ▲
NOTAS
CAPITULO I
1. Pièces originales et procédures du procès fait à Robert-François Damiens, 1757, t. Ill, p. 372-374.
2. Gazette d'Amsterdam, l abr. 1757.
3. Citado in A.L. Zevaes, Damiens lê rcgicide, 1937, p. 201-214.
4. L. Faucher, De Ia reforme dês prisions, 1838, p. 274-282.
5. Robert Vaux, Notices, citado in N.K. Teeters, They were in prison, 1937, p. 24.
6. Archives parlamentaires, 2a série, t. LXXII, l dez. 1831.
7. C. de Beccaria, Traité dês délits et dês peines, 1764, p. 101 da edição dada por F. Hélie em 1856 e que será citada aqui.
8. B. Rush, diante da Society for promoting política! enquiries, in N.K. Teeters, The Cradle of the Penitentiary, 1935, p.
30.
9. Annales de Ia Charité, vol. II, 1847, p. 529-530.
10. Texto anónimo, publicado em 1701.
11. Suplício dos traidores descrito por W. Blackstone, Commentaire sur lê Code criminei anglais (trad.), 1776, vol. I, p.
105. Como a tradução se destinava a valorizar a humanidade da legislação inglesa em oposição à velha Ordenação de
1760, o comentador acrescenta: "Nesse suplício aterrorizante como espetáculo o culpado não sofre muito, nem por muito
tempo".
12. Cf. Ch. Hibbert, The Roots of Evil, ed. de 1866, p. 85-86.
13. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI, 3 jun. 1791, p. 720.
14. A. Louis, Relatório sobre a guilhotina, citado por Saint-Edme, Dictionnaire de pénalité, 1825, t. IV, p. 161.
15. Tema frequente na época: um criminoso, na medida em que é monstruoso, deve ser privado de luz: não ver, não ser
visto. Para o parricida se devia "fabricar uma jaula de ferro ou cavar uma masmorra impenelrável que lhe servisse de
retiro eterno". De Molène, De l'humanité dês lois criminelles, 1830, p. 275-277.
16. Gazette dês tribunaux, 30 ago. 1832.
17. G de Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, 1789, t. IX, p. 326.
18. E. Durkheim, "Deux lois de 1'évolution penale", in Année sociologique, IV, 1899-1900.
19. De qualquer modo, ser-me-ia impossível medir por referências ou citações o que este livro deve a G. Deleuze e ao
trabalho feito por ele com F. Guattari. Eu deveria igualmente citar muitas páginas do "psicanalismo" de R. Castel e dizer o
quanto devo a P. Nora.
20. G. Rusche e O. Kirchheimer, Punishment and Social Structures, 1939.
21. V.E. Lê Roy-Ladurie, "L'histoire immobile", in Annales, mai.-jun. 1974.
22. E. Kantorowitz, The King's Two Bodies, 1959.
23. Só estudarei o nascimento da prisão no sistema penal francês. As diferenças entre os desenvolvimentos históricos e as
instituições tornariam muito pesada a tarefa de entrar em detalhes e excessivamente esquemático o trabalho de fornecer o
fenómeno de conjunto.
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CAPÍTULO II
1. J.A. Soulatges, Traité dês crimes, 1762, I, p. 169-171.
2. Cf. artigo de P. Petrovitch, in Crime et criminalité en France XVIIe-XVIIe siècles, 1971, p. 226s.
3. P. Dautricourt, La criminalité et Ia répression au Parlement de Flandre, 1721-1790 (1912).
4. É o que indicava Choiseul a respeito da declaração de 3 de agosto de 1764 sobre os vagabundos (Mémoire expositif,
B.N. ms. 8129 fl. 128-129).
5. Encyclopédie, verbete suplício.
6. A expressão é de Olyffe, An Essay to Prevent Capital Crimes, 1731.
7. Até o século XVIII, longas discussões para se saber se, no decorrer das interrogações capciosas, era lícito ao juiz usar
falsas promessas, mentiras, palavras de duplo sentido. Toda uma casuística da má-fé judiciária.
8. P. Ayrault, UOrdre, formalité et Instruction Judiciaire, 1576, L. III, cap. LXXII e LXXIX.
9. D. Jousse, Traité de Ia justice criminelle, 1771, vol. I, p. 660.
10. P.F. Muyart de Vouglans, Institutes au droit criminei, 1757, p. 345-347.
11. Poullain du Pare, Príncipes du droit français selon lês coutumes de Bretagne, 1767, 1771, t. XI, p. 112-113. V.A.
Esmein, Histoire de Ia procédure criminelle en France, 1882, p. 260-283; K.J. Mittermaier, Traité de Ia preuve, trad.
1848, p. 15-19.
12. G. Seigneux de Correvon, Essai sur 1'usage, 1'abus et lês inconvénients de Ia torture, 1768, p. 63.
13. P. Ayrault, L'Ordre, formalité et instruction Judiciaire, L.I. cap. 14.
14. Nos catálogos das provas judiciárias, a confissão aparece pelo século XIII-XIV. Não é encontrada em Bernard de
Pavie, mas em Hostiemis. Aliás a fórmula de Crater é característica: "Aut legitime convictus aut sponte confessus". No
direito medieval a confissão só era válida se feita por um maior e diante do adversário, V.J. Ph. Lévy, La Hiérarchie dês
preuves dans lê droit savant du Moyen Age, 1939.
15. A mais famosa dessas críticas é a de Nicolas: Si Ia torture est um moyen à verifier lês crimes, 1682.
16. Cl. Ferrière, Dictionnaire de pratique, 1740, t. II, p. 612.
17. Em 1729, Aguesseau mandou fazer uma pesquisa sobre os meios e as regras de tortura aplicados na França. Foi
resumida por Joly de Fleury, B.N. Fonds Joly de Fleury, 258, vols. 322-328.
18. O primeiro grau do suplício era o espetáculo desses instrumentos. As crianças e os velhos demais de setenta anos não
tinham acesso a outro espetáculo além deste.
19. G. du Rousseaud de Ia Combe, Traité dês matières criminelles, 1741, p. 503.
20. S.P. Hardy, Mês loisirs, B.N., ms. 6680-87, t. IV, p. 80, 1778.
21. S.P. Hardy, Mês loisirs, 1.1, p. 327 (só o tomo l está impresso).
22. Arquivos municipais de Nantes, F.F. 124. V.P. Parfouru, Mémoires de Ia société archéologique d'Ille-et-Vilaine,
1896, t. XXV.
23. Citado in P. Dautricourt, op. cit., p. 269-270.
24. S.P. Hardy, Mês loisirs, 1.1, p. 13; t. IV, p. 42; t. V, p. 134.
25. P. Risi, Observations sur lês matières de jurisprudence criminelle, 1768, p. 9, com referência a Cocceius,
Dissertationes ad Grotium, XII, § 545.
26. P.F. Muyart de Vouglans, Lês Lois criminelles de France, 1780, p. XXXIV.
27. D. Jousse, Traité de Ia justice criminelle, 1777, p. VII.
28. P.F. Muyart de Vouglans, Lês Lois criminelles de France, 1780, p. XXXIV.
29. Ibid.
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30. Citado in A. Corre, Documents pour servir à Phistoire de Ia torture judiciaire en Bretagne, 1896, p. 7.
31. A. Bruneau, Observations et maximes sur lês matières criminelles, 1715, p. 259.
32. J. de Damhoudère, Pratique judiciaire és causes civiles, 1572, p. 219.
33. A Gazette dês tribunaux de 6 de julho de 1837 descreve, segundo o Journal de Gloucester, o comportamento "atroz e
asqueroso" de um executor que, depois de ter enforcado um condenado, "tomou o cadáver pêlos ombros, fê-lo voltar-se
sobre si mesmo com violência e lhe bateu várias veses, dizendo: "Palhaço, está morto que chega?" Depois, voltando-se
para a multidão, disse em tom de troça as frases mais indecentes".
34. Cena anotada por T.S. Gueulette, quando a execução do policial Montigny em 1737. Cf. R. Anchel, Crimes et
chátiments au XVIIIe siècle, 1983, p. 62-69.
35. Cf. L. Duhamel, Lês exécutions capitales à Avignon, 1890, p. 25.
36. Na Borgonha, por exemplo, cf. Chassanée, Consuetudo Burgundi, fl. 55.
37. F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. III, p. 1100, Blackstone: "É evidente que se um criminoso condenado a ser
enforcado até que sobrevenha a morte escapa a esta por inabilidade do executor em algum ponto, o xerife tem que renovar
a execução porque a sentença não foi executada; e que se as pessoas se deixassem levar por essa falsa compaixão, abrirse-
ia a porta a uma infinidade de tramóias" (Commentaire sur lê Code criminei d'Angleterre, trad. francesa, 1776, p. 201).
38. Ch. Loyseau, Cinq livres du droit dês offices, ed. de 1616, p. 80-81.
39. V.S.P. Hardy, 30 jan. 1769, p. 125 do volume impresso; 14 dez. 1779, p. 229; R. Anchel, Crimes et chátiments au
XVIII6 siècle, p. 162-163, conta a história de Antoine Bulleteix que já está ao pé do cadafalso, quando chega um
cavaleiro trazendo o famoso pergaminho. Gritam "viva o Rei"; levam Bulleteix para a taverna, enquanto o escrivão
recolhe dinheiro para ele no chapéu.
40. Brantôme, Mémoires La vie dês hommes illustres, ed. de 1722, t. II, p. 191-192.
41. C.E. de Pastoret, a respeito da pena dos regicidas, Dês lois pénales, 1790, vol. II, p. 61.
42. A. Bruneau, Observations et maximes sur lês affaires criminelles, 1715. Prefácio não paginado da primeira parte.
43. S.P. Hardy, Mês loisirs, vol. I, impresso, p. 328.
44. T.S. Gueulette, citado por R. Anchel, Crimes et chátiments au XVIIIe siècle, p. 70-71.
45. Na primeira vez em que a guilhotina foi utilizada, a Chronique de Paris conta que o povo se queixava porque não via
nada e cantava; "Queremos nossas forcas de volta" (V.J. Laurence, A History of Capital Punishment, 1432, p. 71s).
46. T.S. Gueulette, citado por R. Anchel, p. 63. A cena se passa em 1737.
47. Marquês de Argenson, Journal etmémoires, vol. VI, p. 241. Cf. o Journal de Barbier, t. IV, p. 455.Um dos primeiros
episódios desse caso é aliás muito característico da agitação popular no século XVIII em torno da justiça penal. O tenentegeral
de polícia, Berryer, mandara recolher "as crianças libertinas e vadias"; os policiais só consentem em devolvê-las aos
pais "à força de dinheiro"; murmura-se que é para servir aos prazeres do rei. A multidão, que apanhou um denunciante, o
massacra "com uma desumanidade até o último excesso", e o "arrasta depois de morto, com acorda no pescoço, até a
porta do senhor Berryer". Ora, esse denunciante era um ladrão que deveria ter sido posto na roda com seu companheiro
Baffiat, se não tivesse aceito o papel de denunciante da polícia; o conhecimento que tinha dos fios de todas as intrigas
tornavam-no apreciado pela polícia; e ele era "muito estimado" em sua nova profissão. Temos aí um exemplo muito
carregado: um movimento de revolta, provocado por um meio de repressão relativamente novo, e que não é a justiça
penal, mas a polícia; um caso dessa colaboração técnica entre delinquentes e policiais, que se torna sistemática a partir do
século XVIII, um motim em que o povo se encarrega de supliciar um condenado que escapou indevidamente ao
cadafalso.
48. H. Fielding, An Inquiry, in The Causes of the Late Increase of Robbers, 1751, p. 61.
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49. A. Boucher d'Argis, Observations sur lês lois criminelles, 1781, p. 128-129. Boucher d'Argis era conselheiro no
Châtelet.
50. H. Fielding, loc. cit., p. 41.
51. C. Dupaty, Mémoire pour trois hommes condamnés à Ia roue, 1786, p. 247.
52. S.P. Hardy, Mês loisírs, 14 de janeiro de 1781, t. IV, p. 394.
53. Sobre o descontentamento provocado por esse tipo de condenação, v. Hardy, Mês loisirs, 1.1, p. 319; t. III, p. 227-
228; t. IV, p. 180.
54. Transmitido por R. Anchel, Crimes et chátiments, au XVIII6 siècles, 1937, p. 226.
55. Marquês de Argenson, Jounal et Mémoires, t. VI, p. 241.
56. Hardy relata numerosos casos desses: assim como o roubo considerável cometido na própria casa onde o tenente
encarregado do setor criminal estava instalado para assistir a uma execução. Mês loisirs, t. IV, p. 56.
57. V.D. Richet, La France moderne, 1974, p. 118-119.
58. L. Duhamel, Lês Exécutions capitales à Avignon au XVIII6 siècle, 1890, p. 5-6. Cenas desse género ainda se
passaram no século XIX; J. Laurence cita algumas em A History of Capital Punishment, 1932, p. 195-198 e p. 56.
59. S.P. Hardy, Mês loisirs, t. III, 11 de maio de 1775, p. 67.
60. Corre, Documents de criminologie rétrospective, 1896, p. 257.
61. Citado in L. Duhamel, p. 32.
62. Arquivos do Puy-de-Dôme. Citado ín M. Juillard, Brigandage et contrabande en haute Auvergne au XVIHesiècle,
1937, p. 24.
63. Queixa de J.D. Langlade, executado em Avignon a 12 de abril de 1768.
64. "Biblioteca azul" era uma coleção de livros populares de capa azul, geralmente adaptações de romances, medievais de
cavalaria (N.T.).
65. Foi o caso de Tanguy executado na Bretanha por volta de 1940. É verdade que antes de ser condenado ele começara
urna longa penitência ordenada pelo confessor. Conflito entre a justiça civil c a penitência religiosa: Vide sobre o assunto
A. Corre, Documents de criminologie rétrospective, 1895, p. 21. Corre se refere a Trevedy, Une promenade à Ia
montagne de justice et à Ia tombe Tanguy.
66. Aqueles que R. Mandrou chama os dois grandes: Cartouche e Mandrin, a quem se deve acrescentar Guilleri (De Ia
culture populaire aux XVIIe et XVIIIe siècles, 1964, p. 112). Na Inglaterra, Jonathan Wild, Jack Sheppard, Claude Duval
tinham um papel bastante semelhante.
67. A impressão e a difusão dos almanaques, folhetins, etc., estava em princípio sob rígido controle.
68. Encontramos esse título tanto na Biblioteca Azul da Normandia quanto na de Troyes (v. R. Helot La Bibliothèque
bleue en Normandie, 1928).
69. V. por ex. Lacrecelle: "Para satisfazer essa necessidade de emoções fortes que nos atormenta, para aprofundar a
impressão de um grande exemplo, deixam-se circular essas histórias horrorosas; então os poetas do povo delas se
apoderam divulgando-as por toda parte. Alguma família um dia ouve cantar à sua porta o crime e o suplício de seus
filhos" (Discours sur lês peines infamantes, 1784, p. 106).
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Segunda Parte
PUNIÇÃO
CAPÍTULO I
A PUNIÇÃO GENERALIZADA
Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos, que a de morte só seja imputada contra os culpados
assassinos, e sejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade.(1)
O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e
teóricos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de doléances(2) e entre os legisladores das
assembléias. É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito
frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco. O suplício
tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de
vingança e o "cruel prazer de punir".(3) Vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da
qual ainda se espera que bendiga "o céu e seus juizes por quem parece abandonada".(4) Perigoso de qualquer modo, pelo
apoio que nele encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do povo. Como se o poder soberano não visse, nessa
emulação de atrocidades, um desafio que ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia: acostumado a "ver correr
sangue", o povo aprende rápido que "só pode se vingar com sangue".(5) Nessas cerimônias que são objeto de tantas
investidas adversas, percebem-se o choque e a desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado. Nessa
relação Joseph de Maistre reconhecerá um dos mecanismos fundamentais do poder absoluto: o carrasco forma a
engrenagem entre o príncipe e o povo; a morte que ele leva é como a dos camponeses escravizados que construíram São
Petersburgo por cima dos pântanos e das pestes: ela é princípio de universalidade; da vontade singular do déspota, ela faz
uma lei para todos, e de cada um desses corpos destruídos, uma pedra para o Estado; que importa que atinja inocentes!
Nessa mesma violência, ritual e dependente do caso, os reformadores do século XVIII denunciaram, ao contrário, o que
excede, de um lado e de outro, o exercício legítimo do poder: a tirania, segundo eles, se opõe à revolta; elas se reclamam
reciprocamente. Duplo perigo. É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar.
Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza
indignada: no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua "humanidade".
Chegará o dia, no século XIX, em que esse "homem", descoberto no criminoso, se
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tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e transformar, o domínio de uma série de ciências e
de práticas estranhas -"penitenciárias", "criminológicas". Mas, nessa época das Luzes, não é como tema de um saber
positivo que o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios, mas como limite de direito, como fronteira
legítima do poder de punir. Não o que ela tem de atingir se quiser modificá-lo, mas o que ela deve deixar intacto para
estar em condições de respeitá-lo. Noli me tangere. Marca o ponto de parada imposto à vingança do soberano. O
"homem" que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não
das coisas, mas do poder.
O problema, portanto, é: como esse homem-1 imite serviu de objeção à prática tradicional dos castigos? De que
maneira ele se tornou a grande justificação moral do movimento de reforma? Por que esse horror tão unânime pêlos
suplícios e tal insistência lírica por castigos que fossem "humanos"? Ou. o que dá no mesmo, como se articulam um sobre
o outro, numa única estratégia, esses dois elementos sempre presentes na reivindicação de uma penalidade suavizada:
"medida" e "humanidade"? São esses elementos, tão necessários e no entanto tão incertos, tão confusos e ainda tão
associados na mesma relação duvidosa, que encontramos hoje, sempre que abordamos o problema de uma economia dos
castigos. Tem-se a impressão de que o século XVIII abriu a crise dessa economia e propôs para resolvê-la a lei
fundamental de que o castigo deve ter a "humanidade" como "medida", sem poder dar um sentido definitivo considerado
entretanto incontornável. É preciso então contar o nascimento e a primeira história dessa enigmática "suavidade".
Glorificam-se os grandes "reformadores" - Beccaria, Servan, Dupaty ou Lacretelle, Duport, Pastoret, Target,
Bergasse; os redatores dos Cahiers e os Constituintes - por terem imposto essa suavidade a um aparato judiciário e a
teóricos "clássicos" que, já no fim do século XVIII, a recusavam, e com um rigor argumentado.(6)
Temos entretanto que recolocar essa reforma num processo que os historiadores isolaram recentemente ao estudar os
arquivos judiciários: o afrouxamento da penalidade no decorrer do século XVIII, ou, de maneira mais precisa, o duplo
movimento pelo qual, durante esse período, os crimes parecem perder violência, enquanto as punições, reciprocamente,
reduzem em parte sua intensidade, mas à custa de múltiplas intervenções. Desde o fim do século XVII, com efeito, notase
uma diminuição considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas; os delitos contra a
propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice sobre os assassinatos,
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os ferimentos e golpes; a delinqüência difusa, ocasional, mas freqüente das classes mais pobres é substituída por uma
delinqüência limitada e "hábil"; os criminosos do século XVII são "homens prostrados, mal alimentados, levados pêlos
impulsos e pela cólera, criminosos de verão"; os do XVIII, "velhacos, espertos, matreiros que calculam", criminalidade de
"marginais(7)"; modifica-se enfim a organização interna da delinqüência: os grandes bandos de malfeitores (assaltantes
formados em pequenas unidades armadas, tropas de contrabandistas que faziam fogo contra os agentes do Fisco, soldados
licenciados ou desertores que vagabundeiam juntos) tendem a se dissociar; mais bem caçados, sem dúvida, obrigados a se
fazer menores para passar despercebidos - não mais que um punhado de homens, muitas vezes - contentam-se com
operações mais furtivas, com menor demonstração de forças e menores riscos de massacres.
A liquidação física ou o deslocamento institucional de grandes quadrilhas... deixa, depois de 1755, o campo livre
para uma delinqüência antipropríedade que agora se mostra individualista ou passa a ser exercida por grupos bem
pequenos, compostos de ladrões de capote ou batedores de carteira: em número não superior a quatro pessoas.(8)
Um movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens; e
da "criminalidade de massa" para um "criminalidade das bordas e margens", reservada por um lado aos profissionais.
Tudo se passa como se tivesse havido uma baixa progressiva do nível das águas - "um desarmamento das tensões que
reinam nas relações humanas... um melhor controle dos impulsos violentos"(9) - e como se as práticas ilegais tivessem
afrouxado o cerco sobre o corpo e se tivessem dirigido a outros alvos. Suavização dos crimes antes da suavização das leis.
Ora, essa transformação não pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base; e em primeiro lugar, como
nota(10). Chaunu, de uma modificação no jogo das pressões econômicas, de uma elevação geral do nível de vida, de um
forte crescimento demográfico, de uma multiplicação das riquezas e das propriedades e "da necessidade de segurança que
é uma conseqüência disso"(11). "Além disso constata-se, no decorrer do século XVIII, que a justiça se torna de certo
modo mais pesada, e seus textos, em vários pontos, agravam a severidade: na Inglaterra, dos 223 crimes capitais que se
encontravam definidos no começo do século XIX, 156 haviam sido durante os últimos cem anos"; na França a legislação
sobre a vadiagem fora renovada e agravada várias vezes desde o século XVII; um exercício mais apertado e mais
meticuloso da justiça tende a levar em conta toda uma pequena delinqüência que antigamente ela deixava mais facilmente
escapar:
Ela torna-se no século XVIII mais lenta, mais pesada, mais severa com o roubo, cuja freqüência relativa aumentou,
e contra o qual toma agora ares burgueses de justiça de classe(12);
o crescimento na França principalmente, mas mais ainda em Paris, de um aparelho policial que impedia o
desenvolvimento de uma criminalidade orga-
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nizada e a céu aberto, desloca-a para formas mais discretas. E a esse conjunto de precauções deve-se acrescentar a crença,
bastante generalizada, num aumento incessante e perigoso dos crimes. Enquanto os historiadores de hoje constatam uma
diminuição das grandes quadrilhas de malfeitores, Lê Trosne, por sua vez, os via abater-se, como nuvens de gafanhotos,
sobre todo o campo francês: "São insetos vorazes que devastam diariamente a subsistência dos agricultores. São, para
falar claramente, tropas inimigas espalhadas pela superfície do território que nele vivem à vontade, como num país
conquistado, e retiram verdadeiras contribuições a título de esmola": custariam, para os camponeses mais pobres, mais
que o imposto direto (taille): pelo menos um terço onde o tributo é mais alto. A maior parte dos observadores sustenta que
a delinqüência aumenta; é claro que os partidários de maior rigor é que o afirmam; afirmam-no também os que pensam
que uma justiça mais comedida em suas violências seria mais eficaz, menos disposta a recuar por si mesma diante de suas
próprias conseqüências ; afirmam-no os magistrados que pretendem que o número de processos é excessivo: "a miséria do
povo e a corrupção dos costumes multiplicaram os crimes e os culpados(13); mostra-o em todo caso a prática real dos
tribunais.
Já é mesmo a era revolucionária e imperial que é anunciada pêlos últimos anos do Antigo Regime. Chamará a
atenção, nos processos de 1782-1789, o aumento dos perigos. Severidade em relação aos pobres, recusa combinada de
testemunho, aumento recíproco das desconfianças, dos ódios e medos.(16)
Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um
mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e
moral maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da
população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é
correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas.
Será uma transformação geral de atitude, uma "mudança que pertence ao campo do espírito e da subconsciência"?
Talvez. Com maior certeza e mais imediatamente, porém, significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que
enquadram a existência dos indivíduos: significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar
o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade, atividade, gestos aparentemente sem importância; significa uma
outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa. O que se vai definindo não
é tanto um respeito novo pela humanidade dos condenados - os suplícios ainda são freqüentes, mesmo para os crimes
leves - quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância penal mais
atenta do corpo social. De acordo com um processo circular quando se eleva o
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limiar da passagem para os crimes violentos, também aumenta a intolerância aos delitos econômicos, os controles ficam
mais rígidos, as intervenções penais se antecipam mais e tornam-se mais numerosas.
Ora, se confrontamos esse processo com o discurso crítico dos reformadores, vemos uma notável coincidência
estratégica. Realmente, o que eles atacam na justiça tradicional, antes de estabelecer os princípios de uma nova
penalidade, é mesmo o excesso de castigo, mas um excesso que está ainda mais ligado a uma irregularidade que a um
abuso do poder de punir. A 24 de março de 1790, Thouret abre na Constituinte a discussão sobre a nova organização do
poder judiciário. Poder que, em sua opinião, está "desnaturado" de três maneiras na França. Por uma apropriação privada:
vendem-se os ofícios do juiz; transmitem-se por herança; têm valor comercial e a justiça feita é, por isso, onerosa. Por
uma confusão entre dois tipos de poder: o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria
lei. Enfim pela existência de toda uma série de privilégios que tornam incerto o exercício da justiça: há tribunais,
processos, partes litigantes, até delitos que são "privilegiados" e se situam fora do direito comum.18 Isso não passa de
uma das inúmeras formulações de críticas velhas de pelo menos meio século e que denunciam, todas, nessa desnaturação,
o princípio de uma justiça irregular. A justiça penal é irregular em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que
estão encarregadas de realizá-la, sem nunca constituir uma pirâmide única e contínua.(19) Mesmo deixando de lado as
jurisdições religiosas, é necessário considerar as descontinuidades, as sobreposições e os conflitos entre as diferentes
justiças: as dos senhores que são ainda importantes para a repressão dos pequenos delitos; as do rei que são elas mesmas
numerosas e mal coordenadas (as cortes soberanas estão em constante conflito com os bailados [bailliages] e
principalmente com os tribunais presidiais [présidiaux] recentemente criados como instâncias intermediárias); as que, de
direito ou de fato, estão a cargo de instâncias administrativas (como os intendentes) ou policiais (como os prebostes e os
chefes de polícia); a que se deveria ainda acrescentar o direito que tem o rei ou seus representantes de tomar decisões de
internamento ou de exílio fora de qualquer procedimento regular. Essas instâncias múltiplas, por sua própria
superabundância, se neutralizam e são incapazes de cobrir o corpo social em toda a sua extensão. A confusão torna essa
justiça penal paradoxalmente lacunosa. Lacunosa devido às diferenças de costumes e de procedimentos, apesar da
Ordenação Geral de 1670; lacunosa pêlos conflitos internos de competência; lacunosa pêlos interesses particulares -
políticos ou econômicos - que a cada instante é levada a defender; lacunosa enfim devido às intervenções do poder real
que pode impedir o curso regular e austero da justiça, pêlos perdões, comutações, evocações em conselho ou pressões
diretas sobre os magistrados.
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A má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos reformadores. Poder
excessivo nas jurisdições inferiores que podem - ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados -negligenciar as
apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à
qual são dados quase sem limite meios de prosseguir, enquanto que o acusado está desarmado diante dela, o que leva os
juizes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação, indulgentes demais; poder excessivo para os juizes que podem
se contentar com provas fúteis se são "legais" e que dispõem de uma liberdade bastante grande na escolha da pena; poder
excessivo dado à "gente do rei", não só em relação aos acusados, mas também aos outros magistrados; poder excessivo
enfim exercido pelo rei, pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados,
revogá-los ou exilá-los, substituí-los por juizes por comissão real. A paralisia da justiça está ligada menos a um
enfraquecimento que a uma distribuição mal regulada do poder, a sua concentração em um certo número de pontos e aos
conflitos e descontinuidades que daí resultam.
Ora, essa disfunção do poder provém de um excesso central: o que se poderia chamar o "superpoder" monárquico
que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano. Identificação teórica que faz do rei afonsjustitiae; mas
cujas conseqüências práticas são verificáveis até no que parece se opor a ele e limitar seu absolutismo. É porque o rei, por
razões de tesouraria, se arroga o direito de vender ofícios de justiça que lhe "pertencem" que ele tem diante de si
magistrados, proprietários de seus cargos, não só indóceis, mas ignorantes, interesseiros, prontos ao compromisso. É
porque cria constantemente novos ofícios que ele multiplica os conflitos de poder e de atribuição. É porque exerce um
poder muito rigoroso sobre sua "gente" e lhes confere um poder quase discricionário que ele intensifica os conflitos na
magistratura. É por ter posto a justiça em concorrência com um excesso de procedimentos de urgência (jurisdições dos
prebostes ou dos chefes de polícia) ou com medidas administrativas, que ele paralisa a justiça regular, que a torna às vezes
indulgente e incerta, mas às vezes precipitada e severa(20).
Não são tanto, ou não são só os privilégios da justiça, sua arbitrariedade, sua arrogância arcaica, seus direitos sem
controle que são criticados; mas antes a mistura entre suas fraquezas e seus excessos, entre seus exageros e suas lacunas, e
sobretudo o próprio princípio dessa mistura, o superpoder monárquico. O verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde
suas formulações mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais eqüitativos; mas
estabelecer uma nova "economia" do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique
concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais entre instâncias
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que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de maneira contínua
e até o mais fino grão do corpo social.(21) A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o
remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades que o tornam mais regular, mais eficaz, mais constante e
mais bem detalhado em seus efeitos; enfim, que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico (ou seja,
dissociando-o do sistema da propriedade, das compras e vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias
decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário do poder monárquico). A nova teoria jurídica da penalidade
engloba na realidade uma nova "economia política" do poder de punir. Compreende-se então por que essa "reforma" não
teve um ponto de origem único. Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça, nem os filósofos inimigos
do despotismo e amigos da humanidade, não foram nem os grupos sociais opostos aos parlamentares que suscitaram a
reforma. Ou antes, não foram só eles; no mesmo projeto global de uma nova distribuição do poder de punir e de uma nova
repartição de seus efeitos, vêm encontrar seu lugar muitos interesses diferentes. A reforma não foi preparada fora do
aparato judiciário e contra todos os seus representantes; foi preparada, e no essencial, de dentro, por um grande número de
magistrados e a partir de objetivos que lhes eram comuns e dos conflitos de poder que os opunham uns aos outros. Os
reformadores não eram a maioria, entre os magistrados, naturalmente: mas foram legistas que idearam os princípios gerais
da reforma: um poder de julgar sobre o qual não pesasse o exercício imediato da soberania do príncipe; que fosse
independente da pretensão de legislar; que não tivesse ligação com as relações de propriedade; e que, tendo apenas as
funções de julgar, exerceria plenamente esse poder. Em uma palavra, fazer com que o poder de julgar não dependesse
mais de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórias da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente
distribuídos do poder público. Esse princípio geral define uma estratégia de conjunto que deu ensejo a muitos combates
diferentes. Os de filósofos como Voltaire e de publicistas como Brissot ou Marat; mas também os de magistrados cujos
interesses eram entretanto bem diversos: Lê Trosne, conselheiro no tribunal presidial de Orléans, e Lacretelle, advogado
geral no parlamento; Target que, com os parlamentos, se opõe à reforma de Maupeou; mas também J.N. Moreau que
sustenta o poder real contra os parlamentares; Servan e Dupaty, magistrados um como o outro, mas em conflito com os
colegas, etc.
Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das
instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. E a "reforma" propriamente dita,
tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa
estratégia, com seus objetivos
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primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir
menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e
necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.
A conjuntura que viu nascer a reforma não é portanto a de uma nova sensibilidade; mas a de outra política em
relação às ilegalidades.
Podemos dizer esquematicamente que, no Antigo Regime, os diferentes estratos sociais tinham cada um sua margem
de ilegalidade tolerada: a não-aplicação da regra, a inobservância de inúmeros éditos ou ordenações eram condição do
funcionamento político e econômico da sociedade. Traço que não é particular ao Antigo Regime? Sem dúvida. Mas essa
ilegalidade era tão profundamente enraizada e tão necessária à vida de cada camada social, que tinha de certo modo sua
coerência e economia próprias. Ora se revestia de uma forma absolutamente estatutária — que fazia dela não tanto uma
ilegalidade quanto uma isenção regular: eram os privilégios concedidos aos indivíduos e às comunidades. Ora tinha a
forma de uma inobservância maciça e geral que fazia com que durante dezenas de anos, séculos às vezes, ordenações
podiam ser publicadas e renovadas constantemente sem nunca chegar à aplicação. Ora se tratava de desuso progressivo
que dava lugar às vezes a súbitas reativações. Ora de um consentimento mudo do poder, de uma negligência ou
simplesmente da impossibilidade efetiva de impor a lei e reprimir os infratores. As camadas mais desfavorecidas da
população não tinham privilégios, em princípio: mas gozavam, no que lhes impunham as leis e os costumes, de margens
de tolerância, conquistadas pela força ou pela obstinação; e essas margens eram para elas condição tão indispensável de
existência que muitas vezes estavam prontas a se sublevar para defendê-las; as tentativas periodicamente feitas para
reduzi-las, alegando velhas regras ou subutilizando os processos de repressão, provocavam sempre agitações populares,
do mesmo modo que as tentativas para reduzir certos privilégios agitavam a nobreza, o clero e a burguesia.
Ora, essa ilegalidade necessária e de que cada camada social exercia formas específicas estava envolvida numa série
de paradoxos. Em suas regiões inferiores, encontrava-se com a criminalidade, de que era difícil distingui-la juridicamente,
senão moralmente: da ilegalidade fiscal à ilegalidade aduaneira, ao contrabando, ao saque, à luta armada contra os agentes
do fisco depois contra os próprios soldados, à revolta enfim, havia uma continuidade, onde as fronteiras eram difíceis de
marcar; ou ainda a vadiagem (severamente punida nos termos de ordenações quase nunca aplicadas) com tudo o que
comportava de rapinas, de roubos qualificados, de assassinatos às vezes, servia como meio
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favorável para os desempregados, os operários que haviam deixado irregularmente os patrões, os criados que tinham
alguma razão para fugir do emprego, os aprendizes maltratados, os soldados desertores, todos os que queriam escapar ao
alistamento forçado. De modo que a criminalidade se fundamentava numa ilegalidade mais vasta, à qual as camadas
populares estavam ligadas como a condições de existência; e inversamente, essa ilegalidade era um fator perpétuo de
aumento da criminalidade. Daí uma ambigüidade nas atitudes populares: por um lado o criminoso - principalmente
quando se tratava de um contrabandista ou de um camponês perseguido pelas extorsões de um senhor - gozava de uma
valorização espontânea: reencontrava-se, em suas violências, o fio de velhas lutas; mas por outro lado aquele que, ao
abrigo de uma ilegalidade aceita pela população, cometia crimes à custa desta, o mendigo vagabundo, por exemplo, que
roubava e assassinava, tornava-se facilmente objeto de um ódio particular: ele voltara contra os mais desfavorecidos uma
ilegalidade que estava integrada em suas condições de existência. Assim se associavam aos crimes a glorificação e o
anátema; a ajuda efetiva e o medo alternavam-se em relação a essa população movediça, da qual todos se sentiam tão
próximos e temerosos de que dela podia nascer o crime. A ilegalidade popular envolvia o núcleo da criminalidade que era
ao mesmo tempo sua forma extrema e o perigo interno.
Ora, entre essa ilegalidade de baixo e as das outras castas sociais, não havia exatamente convergência, nem oposição
fundamental. De maneira geral as diversas ilegalidades próprias a cada grupo tinham umas com as outras relações que
eram ao mesmo tempo de rivalidade, de concorrência, de conflitos de interesse, e de apoio recíproco, de cumplicidade: a
recusa por parte dos camponeses em pagar certos foros estatais ou eclesiásticos não era obrigatoriamente mal vista pêlos
proprietários de terras: a não aplicação pêlos artesãos dos regulamentos de fábrica era muitas vezes encorajada pêlos
novos empresários; o contrabando - prova-o a história de Mandrin, recebido por toda a população, acolhido nos castelos e
protegido pêlos parlamentares - tinha amplo apoio. Enfim, no século XVII as diferentes rejeições do fisco fizeram as
camadas da população entre si afastadas se coligarem em graves revoltas. Em suma, o jogo recíproco das ilegalidades
fazia parte da vida política e econômica da sociedade. Mais ainda: na brecha diariamente alargada pela ilegalidade
popular ocorrera um certo número de transformações (por exemplo, o desuso dos regulamentos de Colbert, as
inobservâncias das barreiras alfandegárias no reino, o deslocamento das práticas corporativas); ora, dessas transformações
a burguesia tivera necessidade; e sobre elas fundamentara uma parte do crescimento econômico. A tolerância tomava-se
então estímulo.
Mas na segunda metade do século XVIII o processo tende a se inverter. Primeiro com o aumento geral da riqueza,
mas também com o grande crescimento demográfico, o alvo principal da ilegalidade popular tende a ser não mais
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em primeira linha os direitos, mas os bens: a pilhagem, o roubo, tendem a substituir o contrabando e a luta armada contra
os agentes do fisco. E nessa medida os camponeses, os colonos, os artesãos são muitas vezes a vítima principal. Lê Trosne
sem dúvida exagerava apenas uma tendência real quando descrevia os camponeses que sofriam com as extorsões dos
vagabundos, mais ainda que antigamente com as exigências dos feudais: os ladrões agora se teriam abatido sobre eles
como uma nuvem de insetos nocivos, devorando as colheitas, arrasando os celeiros.(22) Podemos dizer que se abriu
progressivamente no século XVIII uma crise da ilegalidade popular; e nem os movimentos do início da Revolução (em
torno da recusa dos direitos senhoriais), nem aqueles mais tardios aos quais acresciam a luta contra os direitos dos
proprietários, o protesto político e religioso, a recusa do recrutamento na realidade não o restabeleceram em sua forma
antiga e acolhedora. Além do mais, se uma boa parte da burguesia aceitou, sem muitos problemas, a ilegalidade dos
direitos, ela a suportava mal quando se tratava do que considerava seus direitos de propriedade. Nada mais característico a
esse respeito que o problema da delinqüência no campo no fim do século XVIII e principalmente a partir da Revolução."3
A passagem a uma agricultura intensiva exerce sobre os direitos de uso, sobre as tolerâncias, sobre as pequenas
ilegalidades aceitas, uma pressão cada vez mais cerrada. Além do mais, adquirida em parte pela burguesia, despojada dos
encargos feudais que sobre ela pesavam, a propriedade da terra tornou-se uma propriedade absoluta: todas as tolerâncias
que o campesinato adquirira ou conservara (abandono de antigas obrigações ou consolidação de práticas irregulares:
direito de pasto livre(24), de recolher lenha, etc.) são agora perseguidas pêlos novos proprietários que lhes dão a posição
de infração pura e simples (provocando dessa forma, na população, uma série de reações em cadeia, cada vez mais ilegais,
ou, se quisermos, cada vez mais criminosas: quebra de cercas, roubo ou massacre de gado, incêndios, violências,
assassinatos.(23) A ilegalidade dos direitos, que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados, tende,
com o novo estatuto da propriedade, a tornar-se uma ilegalidade de bens. Será então necessário puni-la.
E essa ilegalidade, se é mal suportada pela burguesia na propriedade imobiliária, é intolerável na propriedade
comercial e industrial: o desenvolvimento dos portos, o aparecimento de grandes armazéns onde se acumulam
mercadorias, a organização de oficinas de grandes dimensões (com uma massa considerável de matéria-prima, de
ferramentas, de objetos fabricados, que pertencem ao empresário e são difíceis de vigiar) exigem também uma repressão
rigorosa da ilegalidade. A maneira pela qual a riqueza tende a investir, segundo escalas quantitativas totalmente novas,
nas mercadorias e nas máquinas supõe uma intolerância sistemática e armada à ilegalidade. O fenômeno é evidentemente
muito sensível onde o desenvolvimento é mais intenso. Dessa
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urgência em reprimir as inúmeras práticas de ilegalidade, Colquhoun procurara dar provas em números só para a cidade
de Londres: segundo as estimativas dos empresários e seguradoras, o roubo de produtos importados da América e
depositados às margens do Tamisa subia, em média, a 250.000 libras; ao todo, roubavam-se cerca de 500.000 cada ano só
no porto de Londres (e isso sem levar em conta os arsenais); a que se deviam acrescentar 700.000 libras para a própria
cidade. E nessa pilhagem permanente, três fenômenos, segundo Colquhoun, deviam ser considerados: a cumplicidade e
muitas vezes a participação ativa dos empregados, dos vigias, dos contramestres e dos trabalhadores: "todas as vezes que
estiver reunida no mesmo lugar uma grande quantidade de trabalhadores, haverá necessariamente muitos maus
elementos"; a existência de toda uma organização de comércio ilícito; que começa nas oficinas ou nas docas, passa em
seguida pêlos receptadores - receptadores por atacado especializados num certo tipo de mercadorias e receptadores de
varejo, cujas vitrines só oferecem "uma miserável exposição de velhos ferros, trapos, roupas em mau estado", enquanto o
depósito da loja esconde "munições navais de grande valor, cavilhas e pregos de cobre, pedaços de ferro fundido e de
metais preciosos, de produção das índias Ocidentais, móveis e bagagens comprados de trabalhadores de todo tipo" -
depois por revendedores e mascates que espalham longe, no campo, o produto dos roubos(26); enfim a fabricação de
dinheiro falso (haveria, disseminadas por toda a Inglaterra, 40 a 50 fábricas de dinheiro falso trabalhando
permanentemente). Mas o que facilita essa imensa empresa de depredação e ao mesmo tempo de concorrência é todo um
conjunto de tolerâncias: algumas valem como espécies de direitos adquiridos (direito, por exemplo, de recolher em torno
do navio os pedaços de ferro e as pontas de corda ou de revender as varreduras de açúcar); outras são da ordem da
aceitação moral: a analogia que essa pilhagem mantém, no espírito de seus autores, com o contrabando os "familiariza
com essa espécie de delitos cuja enormidade não sentem".(27)
É portanto necessário controlar e codificar todas essas práticas ilícitas. É preciso que as infrações sejam bem
definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua
com ostentação sem igual seja determinado o que é infração intolerável, e que lhe seja infligido um castigo de que ela não
poderá escapar. Com as novas formas de acumulação de capital, de relações de produção e de estatuto jurídico da
propriedade, todas as práticas populares que se classificavam, seja numa forma silenciosa, cotidiana, tolerada, seja numa
forma violenta, na ilegalidade dos direitos, são desviadas à força para a ilegalidade dos bens. O roubo tende a tornar-se a
primeira das grandes escapatórias à legalidade, nesse movimento que vai de uma sociedade da apropriação jurídicopolítica
a uma sociedade da apropriação dos meios e produtos do trabalho. Ou para dizer as coisas de outra
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maneira: a economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista. A ilegalidade dos
bens foi separada da ilegalidade dos direitos. Divisão que corresponde a uma oposição de classes, pois, de um lado, a
ilegalidade mais acessível às classes populares será a dos bens - transferência violentadas propriedades; de outro a
burguesia, então, se reservará a ilegalidade dos direitos: a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas
próprias leis; de fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por um jogo que se desenrola nas margens
da legislação - margens previstas por seus silêncios, ou liberadas por uma tolerância de fato. E essa grande redistribuição
das ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários; para as ilegalidades de bens - para o
roubo - os tribunais ordinários e os castigos; para as ilegalidades de direitos - fraudes, evasões fiscais, operações
comerciais irregulares -jurisdições especiais com transações, acomodações, multas atenuadas, etc. A burguesia se
reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos. E ao mesmo tempo em que essa separação se realiza, afirma-se a
necessidade de uma vigilância constante que se faça essencialmente sobre essa ilegalidade dos bens. Afirma-se a
necessidade de se desfazer da antiga economia do poder de punir que tinha como princípios a multiplicidade confusa e
lacunosa das instâncias, uma repartição e uma concentração de poder correlatas com uma inércia de fato e uma inevitável
tolerância, castigos ostensivos em suas manifestações e incertos em sua aplicação. Afirma-se a necessidade de definir uma
estratégia e técnicas de punição em que uma economia da continuidade e da permanência substituirá a da despesa e do
excesso. Em suma, a reforma penal nasceu no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra
o infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas. E se foi outra coisa que o resultado provisório de um encontro de
pura circunstância, é porque entre esse superpoder e esse infrapoder se estendia uma rede de relações. A forma da
soberania monárquica, ao mesmo tempo que colocava do lado do soberano a sobrecarga de um poder brilhante, ilimitado,
pessoal, irregular e descontínuo, deixava do lado dos súditos lugar livre para uma ilegalidade constante; esta era como a
correlata daquele tipo de poder. Se bem que atacar-se às diversas prerrogativas do soberano era atacar ao mesmo tempo o
funcionamento das ilegalidades. Os dois objetivos estavam em continuidade. E, segundo as circunstâncias ou as táticas
particulares, os reformadores faziam passar um na frente do outro. Lê Trosne, o fisiocrata que foi conselheiro no tribunal
presidial de Orléans, pode servir de exemplo aqui. Em 1764, ele publica uma memória sobre a vadiagem: viveiro de
ladrões e assassinos "que vivem no meio da sociedade sem serem seus membros", que fazem "uma verdadeira guerra
contra todos os cidadãos", que estão entre nós "naquele estado que se supõe ter existido antes do estabelecimento da
sociedade civil". Contra eles, pede as mais severas penas (e
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estranha, significativamente, que se tenha mais indulgência para com eles que para com os contrabandistas); quer que a
polícia seja reforçada, que a cavalaria os persiga ajudada pela população vítima de seus roubos; pede que essas pessoas
inúteis e perigosas "sejam adquiridas pelo Estado e lhe pertençam como escravos a seus senhores"; e, se for o caso, que se
organizem batidas coletivas nos bosques para desentocá-los, sendo dado um salário a cada um que fizer uma captura:
"Pois dá-se uma recompensa de 10 libras por uma cabeça de lobo. Um vagabundo é infinitamente mais perigoso para a
sociedade".(28) Em 1777, em Vues sur Ia justice criminelle, o mesmo Lê Trosne pede que sejam reduzidas as
prerrogativas da parte pública, que os acusados sejam considerados inocentes até a eventual condenação, que o juiz seja
um justo árbitro entre eles e a sociedade, que as leis sejam "fixas, constantes, determinadas da maneira mais precisa", de
modo que os súditos saibam "a que se expõem" e que os magistrados não sejam mais que o "órgão da lei".(29) Para Lê
Trosne, como para tantos outros na mesma época, a luta pela delimitação do poder de punir se articula diretamente com a
exigência de submeter a ilegalidade popular a um controle mais estrito e mais constante. Compreende-se que a crítica dos
suplícios tenha tido tanta importância na reforma penal: pois era uma figura onde se uniam, de modo visível, o poder
ilimitado do soberano e a ilegalidade sempre desperta do povo. A humanidade das penas é a regra que se dá a um regime
de punições que deve fixar limites a um e à outra. O "homem" que se pretende fazer respeitar na pena à a forma jurídica e
moral que se dá a essa dupla delimitação.
Mas se é verdade que a reforma, como teoria penal e como estratégia do poder de punir, foi ideada no ponto de
coincidência desses dois objetivos, sua estabilidade futura se deveu ao fato de que o segundo ocupou, por muito tempo,
um lugar prioritário. Foi porque a pressão sobre as ilegalidades populares se tomou na época da Revolução, depois no
Império, finalmente durante todo o século XIX, um imperativo essencial, que a reforma pôde passar da condição de
projeto à de instituição e conjunto prático. Quer dizer que se, aparentemente, a nova legislação criminal se caracteriza por
uma suavização das penas, uma codificação mais nítida, uma considerável diminuição do arbitrário, um consenso mais
bem estabelecido a respeito do poder de punir (na falta de uma partilha mais real de seu exercício), ela é apoiada
basicamente por uma profunda alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção para manter seu
novo ajustamento. Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as
ilegalidades, não para suprimi-las a todas.
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Deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas para atingir um alvo que agora é mais ténue mas
também mais largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos
adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar. Homogeneizar seu exercício.
Diminuir seu custo econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos. Em resumo, constituir
uma nova economia e uma nova tecnologia do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma
penal no século XVIII.
Ao nível dos princípios, essa nova estratégia é facilmente formulada na teoria geral do contrato. Supõe-se que o
cidadão tenha aceito de uma vez por todas, com as leis da sociedade, também aquela que poderá puni-lo. O criminoso
aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o pacto, é portanto inimigo da sociedade inteira, mas
participa da punição que se exerce sobre ele. O menor crime ataca toda a sociedade; e toda a sociedade - inclusive o
criminoso - está presente na menor punição. O castigo penal é então uma função generalizada, coextensiva ao corpo social
e a cada um de seus elementos. Coloca-se então o problema da "medida" e da economia do poder de punir.
Efetivamente a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social; a sociedade tem o direito de se levantar em
peso contra ele, para puni-lo. Luta desigual: de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos. E tem mesmo
que ser assim, pois aí está representada a defesa de cada um. Constitui-se assim um formidável direito de punir, pois o
infrator torna-se o inimigo comum. Até mesmo pior que um inimigo, é um traidor pois ele desfere seus golpes dentro da
sociedade. Um "monstro". Sobre ele, como não teria a sociedade um direito absoluto? Como deixaria ela de pedir sua
supressão pura e simples? E se é verdade que o princípio dos castigos deve estar subscrito no pacto, não é necessário,
logicamente, que cada cidadão aceite a pena extrema para aqueles dentre eles que os atacam como organização?
Todo malfeitor, atacando o direito social, torna-se, por seus crimes, rebelde e traidor da pátria; a conservação do
Estado é então incompatível com a sua; um dos dois tem que perecer, e, quando se faz perecer o culpado, é menos como
cidadão que como inimigo.(30)
O direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade. Mas ele se encontra então
recomposto com elementos tão fortes, que se torna quase mais temível. O malfeitor foi arrancado a uma ameaça, por
natureza, excessiva, mas é exposto a uma pena que não se vê o que pudesse limitar. Volta de um terrível superpoder. E
necessidade de colocar um princípio de moderação ao poder do castigo.
Quem não tem arrepios de horror ao ver na história tantos tormentos horríveis e inúteis, inventados e usados
friamente por monstros que se davam o nome de sábios?(31) [Ou ainda]: As leis me chamam para o castigo do maior dos
crimes. Vou com todo o furor que ele me inspirou. Mas
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como? Meu furor ainda o ultrapassa... Deus que imprimistes em nossos corações a aversão à dor por nós mesmos e nossos
semelhantes, são então esses seres que criastes tão fracos e sensíveis que inventaram suplícios tão bárbaros, tão
refinados?(32)
O princípio da moderação das penas, mesmo quando se trata de castigar o inimigo do corpo social, se articula em
primeiro lugar como um discurso do coração. Melhor, ele jorra como um grito do corpo que se revolta ao ver ou ao
imaginar crueldades demais. A formulação do princípio de que a penalidade deve permanecer "humana" é feita, entre os
reformadores, na primeira pessoa. Como se se exprimisse imediatamente a sensibilidade daquele que fala; como se o
corpo do filósofo ou do teórico viesse, entre a fúria do carrasco e do supliciado, afirmar sua própria lei e impô-la
finalmente a toda a economia das penas. Lirismo que manifesta a impotência em encontrar o fundamento racional de um
cálculo penal? Entre o princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a imagem do monstro
"vomitado" pela natureza, onde encontrar um limite, senão na natureza humana que se manifesta - não no rigor da lei, não
na ferocidade do delinqüente - mas na sensibilidade do homem razoável que faz a lei e não comete crimes.
Mas esse recurso à "sensibilidade" não traduz exatamente uma impossibilidade teórica. Ele traz em si, na realidade,
um princípio de cálculo. O corpo, a imaginação, o sofrimento, o coração a respeitar não são, na verdade, os do criminoso
que deve ser punido, mas os dos homens que, tendo subscrito o pacto, têm o direito de exercer contra ele o poder de se
unir. O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juizes ou dos espectadores com tudo o que
pode acarretar de endurecimento, de ferocidade trazida pelo hábito, ou ao contrário de piedade indevida, de indulgência
sem fundamento:
Misericórdia para essas almas doces e sensíveis sobre quem esses horríveis suplícios exercem uma espécie de
tortura.(33)
O que se precisa moderar e calcular, são os efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder que ela
pretende exercer.
Aí está a raiz do princípio de que se deve aplicar só punições "humanas", sempre, a um criminoso que pode muito
bem ser um traidor e um monstro, entretanto. Se a lei agora deve tratar "humanamente" aquele que está "fora da natureza"
(enquanto que a justiça de antigamente tratava de maneira desumana o "fora-da-lei), a razão não se encontra numa
humanidade profunda que o criminoso esconda em si, mas no controle necessário dos efeitos de poder. Essa racionalidade
"econômica" é que deve medir a pena e prescrever as técnicas ajustadas. "Humanidade" é o nome respeitoso dado a essa
economia e a seus cálculos minuciosos. "Em matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado pela
política".(34)
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Para compreendermos essa tecnopolítica da punição, tomemos o caso-limite, o último dos crimes: um delito
hediondo, enorme, que violasse ao mesmo tempo todas as leis mais respeitadas. Aconteceria em circunstâncias tão
extraordinárias, dentro de um segredo tão profundo, tão desmedidamente, e como que no limite tão extremo de qualquer
possibilidade, que só poderia ser o único e em todo caso o último de sua espécie: ninguém nunca poderia imitá-lo:
ninguém poderia segui-lo como exemplo, nem mesmo se escandalizar por que tivesse sido cometido. Seria fadado a
desaparecer sem deixar vestígio. Esse apólogo^5 da "extremidade do crime" é um pouco, na nova penalidade, o que era a
falta original na antiga: a forma pura em que aparece a razão das penas.
Um crime como esse deveria ser punido? De acordo com que medida? Que utilidade poderia ter seu castigo na
economia do poder de punir? Seria útil na medida em que poderia reparar o "mal feito à sociedade".''6 Ora se deixarmos
de lado o dano propriamente material - que embora irreparável como num assassinato é de pouca extensão na escala de
uma sociedade inteira - o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que
suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo.
Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conseqüências do crime, entendidas como a série de desordens que este é
capaz de abrir.
A proporção entre a pena e a qualidade do delito é determinada pela influência que o pacto violado tem sobre a
ordem social.(37)
Ora, essa influência de um crime não está forçosamente em proporção direta com sua atrocidade; um crime que
apavora a consciência tem muitas vezes um efeito menor que um delito que todo mundo tolera e se sente capaz de imitar
por sua conta. Raridade dos grandes crimes; perigo, em compensação, dos pequenos delitos familiares que se multiplicam.
Não procurar conseqüentemente uma relação qualitativa, entre o crime e sua punição, uma equivalência de horror:
Podem os gritos de um infeliz entre tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já
cometida?(38)
Calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada mas à
desordem futura. Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter
imitadores.(39) Punir será então uma arte dos efeitos; mais que opor a enormidade da pena à enormidade da falta, é
preciso ajustar uma à outra as duas séries que seguem o crime: seus próprios efeitos e os da pena. Um crime sem dinastia
não clama castigo. Tampouco - segundo outra versão do mesmo apólogo - às vésperas de se dissolver e desaparecer, urna
sociedade não teria o direito de erguer cadafalsos. O último dos crimes só pode ficar sem punição.
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Velha concepção. Não era preciso esperar a reforma do século XVIII para definir essa função exemplar do castigo.
Que a punição olhe para o futuro, e que uma de suas funções mais importantes seja prevenir, era, há séculos, uma das
justificações correntes do direito de punir. Mas a diferença é que a prevenção que se esperava como um efeito do castigo e
de seu brilho - portanto de seu descomedimento — tende a tornar-se agora o princípio de sua economia, e a medida de
suas justas proporções. É preciso punir exatamente o suficiente para impedir. Deslocamento então na mecânica do
exemplo: numa penalidade de suplício, o exemplo era a réplica do crime; devia, por uma espécie de manifestação
geminada, mostrá-lo e mostrar ao mesmo tempo o poder soberano que o dominava; numa penalidade calculada pêlos seus
próprios efeitos, o exemplo deve-se referir ao crime, mas da maneira mais discreta possível; indicar a intervenção do
poder mas com a máxima economia, e no caso ideal impedir qualquer reaparecimento posterior de um e outro. O exemplo
não é mais um ritual que manifesta, é um sinal que cria obstáculo. Através dessa técnica dos sinais punitivos, que tende a
inverter todo o campo temporal da ação penal, os reformadores pensam dar ao poder de punir um instrumento econômico,
eficaz, generalizável por todo o corpo social, que possa codificar todos os comportamentos e conseqüentemente reduzir
todo o domínio difuso das ilegalidades. A semiotécnica com que se procura armar o poder de punir repousa sobre cinco
ou seis regras mais importantes.
Regra da quantidade mínima: Um crime é cometido porque traz vantagens. Se à idéia do crime fosse ligada a idéia
de uma desvantagem um pouco maior, ele deixaria de ser desejável.
Para que o castigo produza o efeito que se deve esperar dele, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o
culpado retirou do crime.(40)
Podemos, é preciso admitir uma proximidade da pena e do crime; mas não mais na antiga forma, em que o suplício
devia equivaler ao crime em intensidade, com um suplemento que marcava o "mais-poder" do soberano que realizava sua
vingança legítima; é uma quase-equivalência ao nível dos interesses: um pouco mais de interesse em evitar a pena que em
arriscar o crime.
Regra da idealidade suficiente: Se o motivo de um crime é a vantagem que se representa com ele, a eficácia da pena
está na desvantagem que se espera dela. O que ocasiona a "pena" na essência da punição não é a sensação do sofrimento,
mas a idéia de uma dor, de um desprazer, de um inconveniente - a "pena" da idéia da "pena". A punição não precisa
portanto utilizar o corpo, mas a representação. Ou antes, se ela tem que utilizar o corpo, isto o será na medida em que ele
não é tanto o sujeito de um sofrimento, quanto o objeto de uma representação: a lembrança de uma dor pode impedir a
reincidência, do mesmo modo que o espetáculo, mesmo artificial, de uma pena física pode prevenir o
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contágio do crime. Mas não é a dor em si que será instrumento da técnica punitiva. Portanto, de nada adianta fazer
ostentação dos patíbulos, por tempo o mais prolongado possível, e exceto nos casos em que se trate de suscitar uma
representação eficaz. Eliminação do corpo como sujeito da pena, mas não forçosamente como elemento num espetáculo.
A recusa aos suplícios que, no limiar da teoria, só encontrara uma formulação lírica, encontra aqui a possibilidade de se
articular racionalmente. É a representação da pena que deve ser maximizada, e não sua realidade corpórea.
Regra dos efeitos laterais: A pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta; em suma, se
pudéssemos ter certeza de que o culpado não poderia recomeçar, bastaria convencer os outros de que ele fora punido.
Intensificação centrífuga dos efeitos que conduz ao paradoxo de que, no cálculo das penas, o elemento menos interessante
ainda é o culpado (exceto se é passível de reincidência). Esse paradoxo Beccaria ilustrou no castigo que propunha no
lugar da pena de morte: escravidão perpétua. Pena fisicamente mais cruel que a morte? Absolutamente, dizia ele: pois a
dor da escravidão, para o condenado, está dividida em tantas parcelas quantos instantes de vida lhe restam; pena
indefinidamente divisível, pena eleática, muito menos severa que o castigo capital, que logo se equipara ao suplício. Em
compensação, para os que vêem ou se representam esses escravos, o sofrimento que suportam se resume numa só idéia;
todos os instantes da escravidão se contraem numa representação que se torna então mais assustadora que a idéia da
morte. É a pena economicamente ideal: é mínima para o que a sofre (e que, reduzido à escravidão, não poderá reincidir) e
máxima para os que a imaginam.
Entre as penas e na maneira de aplicá-las em proporção com os delitos, devemos escolher os meios que causarão no
espírito do povo a impressão mais eficaz e mais durável, e ao mesmo tempo a menos cruel sobre o corpo do culpado.(41)
Regra da certeza perfeita: E preciso que, à idéia de cada crime e das vantagens que se esperam dele, esteja associada
a idéia de um determinado castigo, com as desvantagens precisas que dele resultam; é preciso que, de um a outro, o laço
seja considerado necessário e nada possa rompê-lo. Esse elemento geral de certeza que deve dar eficácia ao sistema
punitivo implica num certo número de medidas precisas. Que as leis que definem os crimes e prescrevem as penas sejam
perfeitamente claras, "a fim de que cada membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações
virtuosas".(42) Que essas leis sejam publicadas, e cada qual possa ter acesso a elas; que se acabem as tradições orais e os
costumes, mas se elabore uma legislação escrita, que seja "o monumento estável do pacto social", que se imprimam textos
para conhecimento de todos: "Só a imprensa pode tornar todo o público e não alguns particulares depositários do código
sagrado das leis".41 Que o monarca renuncie
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a seu direito de misericórdia, para que a força que está presente na ideia da pena não seja atenuada pela esperança dessa
intervenção:
Se deixamos ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo não é sua continuação necessária,
nutrimos neles a esperança da impunidade... que as leis sejam inexoráveis, os executores inflexíveis.(44)
E principalmente que nenhum crime cometido escape ao olhar dos que têm que fazer justiça; nada torna mais frágil
o instrumento das leis que a esperança de impunidade; como se poderia estabelecer no espírito dos jurisdicionados um
laço estreito entre um delito e uma pena, se viesse afetá-lo um certo coeficiente de improbabilidade? Não seria preciso
tornar a pena tanto mais temível por sua violência quanto ela deixa menos a temer por sua pouca certeza? Mais que imitar
assim o antigo sistema e ser "mais severo, é preciso ser mais vigilante".(45) Daí a idéia de que o instrumento de justiça
seja acompanhado por um órgão de vigilância que lhe seja diretamente ordenado, e permita impedir os crimes, ou, se não
cometidos, prender seus autores; polícia e justiça devem andar juntas como duas ações complementares de um mesmo
processo - a polícia assegurando "a ação da sociedade sobre cada indivíduo", a justiça, "os direitos dos indivíduos contra a
sociedade(46); assim cada crime virá à luz do dia, e será punido com toda certeza. Mas é preciso além disso que os
processos não fiquem secretos, que sejam conhecidas por todos as razões pelas quais um acusado foi condenado ou
absolvido, e que cada um possa reconhecer as razões de punir:
Que o magistrado pronuncie em alta voz sua opinião, que seja obrigado a reproduzir em seu julgamento o texto da
lei que condena o culpado... que os processos que se ocultam misteriosamente na escuridão dos cartórios sejam abertos a
todos os cidadãos que se interessam pelo destino dos condenados.(47)
Regra da verdade comum. Sob esse princípio de grande banalidade esconde-se uma transformação de importância.
O antigo sistema das provas legais, o uso da tortura, a extorsão da confissão, a utilização do suplício, do corpo e do
espetáculo para a reprodução da verdade haviam durante muito tempo isolado a prática penal das formas comuns da
demonstração: as meias-provas faziam meias-verdades e meios-culpados, frases arrancadas pelo sofrimento tinham valor
de autentificação, uma presunção acarretava um grau de pena. Sistema cuja heterogeneidade em relação ao regime
ordinário da prova só constituiu realmente um escândalo no dia em que o poder de punir teve necessidade, para sua
própria economia, de um clima de certeza irrefutável. Como ligar de maneira absoluta no espírito dos homens a idéia do
crime e a do castigo, se a realidade do castigo não acompanha, em todos os casos, a realidade do delito? Estabelecer esta
última, com toda evidência, e de acordo com meios válidos para todos, torna-se uma tarefa primeira. A verificação do
crime deve obedecer aos critérios gerais de qualquer verdade. O julgamento judiciário, nos argumentos que utiliza, nas
provas que traz, deve ser homogêneo ao julgamento
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puro e simples. Abandono, então, das provas legais; rejeição da tortura, necessidade de uma demonstração completa para
fazer uma verdade justa, retirada de qualquer correlação entre os graus da suspeita e os da pena. Como uma verdade
matemática, a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez inteiramente comprovada. Segue-se que, até à
demonstração final de seu crime, o acusado deve ser reputado inocente; e que, para fazer a demonstração, o juiz deve usar
não formas rituais, mas instrumentos comuns, essa razão de todo mundo, que é também a dos filósofos e cientistas:
Em teoria, considero o magistrado como um filósofo que se propõe a descobrir uma verdade interessante... Sua
sagacidade o fará compreender todas as circunstâncias e relações, aproximar ou separar o que deve sê-lo para julgar
sadiamente.(48)
O inquérito, exercício da razão comum, despoja-se do antigo modelo inquisitória! para acolher o outro muito mais
flexível (e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum) da pesquisa empírica. O juiz será como um "piloto que
navega entre os rochedos":
Quais serão as provas ou de que indícios poder-nos-emos contentar? É o que nem eu nem ninguém ainda ousou
determinar em geral; estando as circunstâncias sujeitas a variar ao infinito, devendo as provas e os indícios se deduzir
dessas circunstâncias, é necessário que os indícios e as provas mais claros variem proporcionalmente.(49)
Agora a prática penal vai-se encontrar submetida a um regime comum da verdade, ou antes a um regime complexo
em que se misturam para formar a "íntima convicção" do juiz elementos heterogêneos de demonstração científica, de
evidências sensíveis e de senso comum. A justiça penal, se conserva formas que garantem sua equidade, pode-se abrir
agora às verdades de todos os ventos, desde que sejam evidentes, bem estabelecidas, aceitáveis por todos. O ritual
judiciário não é mais em si mesmo formador de uma verdade partilhada. É recolocado no campo de referência das provas
comuns. Estabelece-se então, com a multiplicidade dos discursos científicos, uma relação difícil e infinita, que a justiça
penal hoje ainda não está apta a controlar. O senhor de justiça não é mais senhor de sua verdade.
Regra da especificação ideal: Para que a semiótica penal recubra bem todo o campo das ilegalidades que se quer
reduzir, todas as infrações têm que ser qualificadas; têm que ser classificadas e reunidas em espécies que não deixem
escapar nenhuma ilegalidade. É então necessário um código, e que seja suficientemente preciso para que cada tipo de
infração possa estar claramente presente nele. A esperança da impunidade não pode se precipitar no silêncio da lei. É
necessário um código exaustivo e explícito, que defina os crimes, fixando as penas.(50)
Mas o mesmo imperativo de cobertura integral pelo efeitos-sinais da punição obriga a ir mais longe. A idéia de um
mesmo castigo não tem a mesma força para todo mundo; a multa não é temível para o rico, nem a infâmia a quem já está
exposto. A nocividade de um delito e seu valor de indução não
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são os mesmos, de acordo com o status do infrator; o crime de um nobre é mais nocivo para a sociedade que o de um
homem do povo.(51) Enfim, já que o castigo quer impedir a reincidência, ele tem que levar bem em conta o que é o
criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade:
De dois homens que cometeram o mesmo crime, em que proporção é menos culpado aquele que mal tinha o
necessário com relação àquele a quem sobrava o supérfluo? De dois perjuros, em que medida é mais criminoso aquele em
que se procurou, desde a infância, imprimir sentimentos de honra com relação àquele que, abandonado à natureza, nunca
recebeu educação?(52)
Vemos aí ao mesmo tempo a necessidade de uma classificação paralela dos crimes e dos castigos e a necessidade de
uma individualização das penas, em conformidade com as características singulares de cada criminoso. Essa
individualização vai representar um peso muito grande em toda a história do direito penal moderno; aí está sua
fundamentação; sem dúvida em termos de teoria do direito e do acordo com as exigências da prática cotidiana, ela está em
oposição radical com o princípio da codificação; mas do ponto de vista de uma economia do poder de punir, e das
técnicas através das quais se pretende pôr em circulação, em todo o corpo social, sinais de punição exatamente ajustados,
sem excessos nem lacunas, sem "gasto" inútil de poder mas sem timidez, vê-se bem que a codificação do sistema delitoscastigos
e a modulação do par criminoso-punição vão a par e se chamam um ao outro. A individualização aparece como o
objetivo derradeiro de um código bem adaptado.
Ora, essa individualização é muito diferente, em natureza, das modulações da pena que se encontravam na
jurisprudência antiga. Esta — e nesse ponto ela estava de acordo com a prática penitenciária cristã — usava duas séries de
variáveis para ajustar o castigo, as da "circunstância" e as da "intenção". Ou seja, elementos que permitiam classificar o
ato em si mesmo. A modulação da pena provinha de uma "casuística" em sentido lato.(53) Mas o que começa a se esboçar
agora é uma modulação que se refere ao próprio infrator, à sua natureza, a seu modo de vida e de pensar, a seu passado, à
"qualidade" e não mais à intenção de sua vontade. Percebe-se, mas como um lugar ainda deixado vazio, o local onde, na
prática penal, o saber psicológico virá substituir a jurisprudência casuística. Claro que no fim do século XVIII esse
momento ainda está longe. Procura-se a ligação código-individualização nos modelos científicos da época. A história
natural oferecia sem dúvida o esquema mais adequado: a taxinomia das espécies segundo uma gradação ininterrupta.
Procura-se constituir um Einné dos crimes e das penas, de maneira a que cada infração particular, e cada indivíduo
punível possa, sem nenhuma margem de arbítrio, ser atingido por uma lei geral.
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Deve-se compor uma tabela de todos os gêneros de crimes que se notam nas diferentes regiões. De acordo com o
inventário dos crimes, dever-se-á fazer uma divisão em espécies. A melhor regra para essa divisão é, parece-me, separar
os crimes pelas diferenças de objetos. Essa divisão deve ser tal que cada espécie seja bem distinta da outra e cada crime
particular, considerado em todas as suas relações, seja colocado entre aquele que deve precedê-lo e aquele que deve seguilo,
e na mais justa gradação; esta tabela, enfim, deve ser de tal modo que possa se aproximar de outra tabela que será feita
para as penas, e de maneira a que elas possam corresponder exatamente uma à outra.(54)
Em teoria, ou antes, em sonho, a dupla taxinomia dos castigos e dos crimes pode resolver o problema: como aplicar
leis fixas a indivíduos singulares?
Mas longe desse modelo especulativo, formas de individualização antropológica estavam, na mesma época, se
constituindo de maneira ainda muito rudimentar. Em primeiro lugar com a noção de reincidência. Não que esta fosse
desconhecida nas antigas leis criminais.(55) Mas tende a tornar-se uma qualificação do próprio delinqüente, susceptível
de modificar a pena pronunciada: de acordo com a legislação de 1791, os reincidentes, em quase todos os casos, eram
passíveis de ter a pena dobrada: segundo a lei de Floreai ano X, deviam ser marcados com a letra R; e o Código Penal de
1810 indicava-lhes ou o máximo da pena, ou a pena imediatamente superior. Mas, através da reincidência, não se visa o
autor de um ato definido pela lei, mas o sujeito delinqüente, uma certa vontade que manifesta seu caráter intrinsecamente
criminoso. Pouco a pouco, à medida que, no lugar do crime, a criminalidade se torna o objeto da intervenção penal, a
oposição entre primário e reincidente tenderá a tornar-se mais importante. E a partir dessa oposição, reforçando-a em
muitos pontos, vemos na mesma época formar-se a noção de crime "passional" - crime involuntário, irrefletido, ligado a
circunstâncias extraordinárias, que não tem por certo a desculpa da loucura, mas promete nunca ser um crime habitual. Lê
Peletier já observava, em 1791, que a sutil gradação das penas que ele apresentava à Constituinte podia desviar do crime
"o maldoso que, de sangue-frio, medita uma ação má", e pode ser retido pelo temor da pena; que, em compensação, ela é
impotente contra os crimes devidos às "paixões violentas que não calculam"; mas que isso tem pouca importância, pois
tais crimes não mostram da parte de seus autores "nenhuma maldade calculada".(56)
Sob a humanização das penas, o que se encontra são todas essas regras que autorizam, melhor, que exigem a
"suavidade", como uma economia calculada do poder de punir. Mas elas exigem também um deslocamento no ponto de
aplicação desse poder: que não seja mais o corpo, com o jogo ritual dos sofrimentos excessivos, das marcas ostensivas no
ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente mas
com necessidade e evidência no espírito de todos. Não mais o corpo, mas a alma, dizia Mably. E vemos bem o que se
deve entender por esse termo: o correlato de uma técnica de poder. Dispensam-se as velhas "anato-
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mias" punitivas. Mas teremos entrado por isso, verdadeiramente, na era dos castigos incorpóreos?
No ponto de partida, podemos então colocar o projeto político de classificar exatamente as ilegalidades, de
generalizar a função punitiva, e de delimitar, para controlá-lo, o poder de punir. Ora, daí se definem duas linhas de
objetivação do crime e do criminoso. De um lado, o criminoso designado como inimigo de todos, que têm interesse em
perseguir, sai do pacto, desqualifica-se como cidadão e surge trazendo em si como que um fragmento selvagem de
natureza; aparece como o celerado, o monstro, o louco talvez, o doente e logo o "anormal". É a esse título que ele se
encontrará um dia sob uma objetivação científica, e o "tratamento" que lhe é correlato. De outro lado, a necessidade de
medir, de dentro, os efeitos do poder punitivo prescreve táticas de intervenção sobre todos os criminosos, atuais ou
eventuais: a organização de um campo de prevenção, o cálculo dos interesses, a entrada em circulação de representações e
sinais, a constituição de um horizonte de certeza e verdade, o ajustamento das penas a variáveis cada vez mais sutis, tudo
isso leva igualmente a uma objetivação dos crimes e dos criminosos. Nos dois casos, vemos que a relação de poder que
fundamenta o exercício da punição começa a ser acompanhada por uma relação de objeto na qual se encontram incluídos
não só o crime como fato a estabelecer segundo normas comuns, mas o criminoso como indivíduo a conhecer segundo
critérios específicos. Vemos também que essa relação de objeto não vêm se sobrepor, de fora, à prática punitiva, como
faria uma proibição imposta à fúria dos suplícios pêlos limites da sensibilidade, ou como faria uma interrogação, racional
ou "científica" sobre o que é o homem que se pune. Os processos de objetivação nascem nas próprias táticas do poder e na
distribuição de seu exercício.
Entretanto, esses dois tipos de objetivação que se definem com os projetos de reforma penal são muito diferentes
entre si, por sua cronologia e por seus efeitos. A objetivação do criminoso fora da lei, como homem da natureza, não
passa ainda de uma virtualidade, uma linha de fuga, onde se entrecruzam os temas da crítica política e as figuras do
imaginário. Será necessário esperar muito tempo para que o homo criminalis se torne um objeto definido num campo de
conhecimento. A outra objetivação, ao contrário, teve efeitos muito mais rápidos e decisivos na medida em que estava
mais diretamente ligada à reorganização do poder de punir; codificação, definição dos papéis, tarifação das penas, regras
de procedimento, definição do papel dos magistrados. E também porque se apoiava sobre o discurso já constituído dos
Ideólogos. Este fornecia com efeito, pela teoria dos interesses, das representações e dos sinais,
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pelas séries e gêneses que reconstituía, uma espécie de receita geral para o exercício do poder sobre os homens: o
"espírito" como superfície de inscrição para o poder, com a semiologia por instrumento; a submissão dos corpos pelo
controle das idéias; a análise das representações como princípio, numa política dos corpos bem mais eficaz que a
anatomia ritual dos suplícios. O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do indivíduo e da sociedade;
desenvolveu-se como uma tecnologia dos poderes sutis, eficazes e econômicos, em oposição aos gastos santuários do
poder dos soberanos. Ouçamos mais uma vez Servan: as idéias de crime e de castigo têm que estar fortemente ligadas e
se suceder sem intervalo...Quando tiverdes conseguido formar assim a cadeia das idéias na cabeça de vossos
cidadãos, podereis então vos gabar de conduzi-los e de ser seus senhores. Um déspota imbecil pode coagir escravos com
correntes de ferro; mas um verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas próprias idéias; é
no plano fixo da razão que ele ata a primeira ponta; laço tanto mais forte quanto ignoramos sua tessitura e pensamos que é
obra nossa; o desespero e o tempo roem os laços de ferro e de aço, mas são impotentes contra a união habitual das idéias,
apenas conseguem estreitá-la ainda mais; e sobre as fibras moles do cérebro funda-se a base inabalável dos mais sólidos
impérios.(57)
Essa semiotécnica das punições, esse "poder ideológico" é que, pelo menos em parte, vai ficar em suspenso e será
substituído por uma nova anatomia política em que o corpo novamente, mas numa forma inédita, será o personagem
principal. E essa nova anatomia política permitirá recruzar as duas linhas divergentes de objetivação que vemos formar-se
no século XVIII: a que rejeita o criminoso para "o outro lado" - o lado de uma natureza contra a natureza; e a que procura
controlar a delinqüência por uma anatomia calculada das punições. Um exame da nova arte de punir mostra bem a
substituição da semiotécnica punitiva por uma nova política do corpo.
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CAPÍTULO II
A MITIGAÇÃO DAS PENAS
A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação. A empresa só pode ser bem
sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural.
Semelhante à gravitação dos corpos, uma força secreta nos empurra sempre para nosso bem-estar. Esse impulso só é
afetado pêlos obstáculos que as leis lhe opõem. Todas as várias ações do homem são efeitos dessa tendência interior.
Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja idéia seja tal que torne
definitivamente sem atração a idéia de um delito. É uma arte das energias que se combatem, arte das imagens que se
associam, fabricação de ligações estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de valores
opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão, estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que
possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder.
Que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o arrasta para
o crime.(1)
Esses sinais-obstáculos devem constituir o novo arsenal das penas, como as marcas-vinditas organizavam os antigos
suplícios. Mas, para funcionar, têm que obedecer a várias condições:
1) Ser tão pouco arbitrários quanto possível. É verdade que é a sociedade que define, em função de seus interesses
próprios, o que deve ser considerado como crime: este, portanto, não é natural. Mas se queremos que a punição possa sem
dificuldade apresentar-se ao espírito assim que se pensa no crime, é preciso que, de um ao outro, a ligação seja a mais
imediata possível: de semelhança, de analogia, de proximidade. É preciso dar
à pena toda a conformidade possível com a natureza de delito, a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito
do caminho por onde era levado na perspectiva de um crime vantajoso.(2)
A punição ideal será transparente ao crime que sanciona; assim, para quem a contempla, ela será infalivelmente o
sinal do crime que castiga; e para quem sonha com o crime, a simples idéia do delito despertará o sinal punitivo.
Vantagem para a estabilidade da ligação, vantagem para o cálculo das proporções entre crime e castigo e para a leitura
quantitativa dos interesses; pois tomando a forma de uma conseqüência natural, a punição não aparece como o efeito
arbitrário de um poder humano.
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Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar a punição ao crime. Se é isso o triunfo da justiça, é
também o triunfo da liberdade, pois então, não vindo mais as penas da vontade do legislador, mas da natureza das coisas,
não se vê mais o homem fazer violência ao homem.(3)
Na punição analógica, o poder que pune se esconde.
Os reformadores apresentaram uma série inteira das penas naturais por instituição, e das que retomam em sua forma
o conteúdo do crime. Vermeil, por exemplo: os que abusam da liberdade pública serão privados da sua; serão retirados os
direitos civis dos que abusarem das vantagens da lei e dos privilégios das funções públicas; a multa punirá o peculato e a
usura; a confiscação punirá o roubo; a humilhação, os delitos de "vanglória"; a morte, o assassinato; a fogueira, o
incêndio. Quanto ao envenenador, o carrasco lhe apresentará uma taça cujo conteúdo lhe jogará no rosto, para esmagá-lo
com o horror de seu crime ao fazê-lo ver sua imagem, e o meterá em seguida numa caldeira de água fervente.(4)
Simples sonho? Talvez. Mas o princípio de uma comunicação simbólica é de novo claramente formulado por Lê
Peletier, quando apresenta em 1791 a nova legislação criminal:
Tem que haver relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição; aquele que foi feroz em seu crime
sofrerá dores físicas; aquele que tiver sido preguiçoso será obrigado a um trabalho penoso; aquele que foi abjeto sofrerá
uma pena de infâmia.(5)
Apesar de crueldades que lembram muito o Antigo Regime, é um mecanismo bem diverso que funciona nessas
penas analógicas. Não se opõem mais o atroz ao atroz numa justa de poder; não é mais a simetria da vingança, é a
transparência do sinal ao que ele significa; pretende-se, no teatro dos castigos, estabelecer uma relação imediatamente
inteligível aos sentidos e que possa dar lugar a um cálculo simples. Uma espécie de estética razoável da pena.
Não é só nas belas-artes que se deve seguir fielmente a natureza; as instituições políticas, pelo menos as que têm um
caráter de sabedoria e elementos de duração, se fundamentam na natureza.(6)
Que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se
sob a força suave da natureza.
2) Esse jogo de sinais deve corresponder à mecânica das forças: diminuir o desejo que torna o crime atraente,
aumentar o interesse que torna a pena temível; inverter a relação das intensidades, fazer que a representação da pena e de
suas desvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres. Toda uma mecânica, portanto, do interesse de seu
movimento, da maneira como é representado e da vivacidade dessa representação.
O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que possam contribuir
para a solidez do edifício e amortecer todas as que poderiam arruiná-lo.(7)
Várias meios. "Ir direto à fonte do mal.8 Quebrar a mola que anima a representação do crime. Tornar sem força o
interesse que a fez nascer. Atrás dos delitos de vadiagem, há a preguiça; é esta que se deve combater.
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Não teremos sucesso trancando os mendigos em prisões infectas que são antes cloacas [será preciso obrigá-los ao
trabalho]. Empregá-los é a melhor maneira de puni-los.(9)
Contra uma paixão má, um bom hábito; contra uma força, outra força; mas o importante é a força da sensibilidade e
da paixão, não as do poder com suas armas.
Não devemos deduzir todas as penas desse princípio tão simples, tão feliz e já conhecido de escolhê-las no que há de
mais deprimente para a paixão que levou ao crime cometido?(10)
Fazer funcionar contra ela mesma a força que levou ao delito. Dividir o interesse, servir-se dele para tornar temível a
pena. Que o castigo o irrite e o estimule mais do que o erro que encorajara. Se o orgulho fez cometer um crime, que seja
ferido, que se revolte com a punição. A eficácia das penas infamantes é se apoiarem sobre a vaidade que estava na raiz do
crime. Os fanáticos se glorificam tanto de suas opiniões quanto dos suplícios que suportam por elas. Que se faça então
funcionar contra o fanatismo a teimosia orgulhosa que o sustenta: "Comprimi-lo pelo ridículo e pela vergonha; se
humilharmos a orgulhosa vaidade dos fanáticos diante de uma grande multidão de espectadores, devemos esperar efeitos
felizes dessa pena". De nada serviria, ao contrário, impor-lhes dores físicas.(11)
Reanimar um interesse útil e virtuoso, cujo enfraquecimento é provado pelo crime. O sentimento de respeito pela
propriedade - a de riquezas mas também a de honra, de liberdade, de vida - o malfeitor o perde quando rouba, calunia,
seqüestra ou mata. É preciso então que lhe seja reensinado. E começaremos a ensiná-lo nele mesmo: ele sentirá o que é
perder a livre disposição de seus bens, de sua honra, de seu tempo e de seu corpo, para, por sua vez, respeitá-lo nos
outros.(12) A pena que forma sinais estáveis e facilmente legíveis deve assim recompor a economia dos interesses e a
dinâmica das paixões.
3) Conseqüentemente, utilidade de uma modulação temporal. A pena transforma, modifica, estabelece sinais,
organiza obstáculos. Qual seria sua utilidade se se tornasse definitiva? Uma pena que não tivesse termo seria
contraditória: todas as restrições por ela impostas ao condenado e que, voltando a ser virtuoso, ele nunca poderia
aproveitar, não passariam de suplícios; e o esforço feito para reformá-lo seria pena e custo perdidos, pelo lado da
sociedade. Se há incorrigíveis, temos que nos resolver a eliminá-los. Mas para todos os outros as penas só podem
funcionar se terminam. Análise aceita pêlos Constituintes: o Código de 1791 prevê a morte para os traidores e os
assassinos; todas as outras penas devem ter um termo (o máximo é de vinte anos).
Mas, principalmente, o papel da duração deve estar integrado à economia da pena. Os suplícios, em sua violência,
corriam o risco de ter esse resultado: quanto mais grave o crime, menos longo era seu castigo. A duração intervinha, sem
dúvida, no antigo sistema das penas: dias de pelourinho, anos de banimen-
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to, horas passadas a expirar na roda. Mas era um tempo de prova, não de transformação concertada. A duração deve agora
permitir a ação própria do castigo:
Uma série prolongada de privações penosas, poupando à humanidade o horror das torturas, afeta muito mais o culpado
que um instante passageiro de dor... Ela renova sem cessar aos olhos do povo que serve de testemunha a lembrança das
leis vingadoras e faz a todos os momentos reviver um terror salutar.(13)
O tempo, operador da pena.
Ora, a frágil mecânica das paixões não permite que as pressionemos da mesma maneira nem com a mesma
insistência à medida que elas se reaprumam; é bom que a pena se atenue com os efeitos que produz. Pode naturalmente
ser fixa, no sentido de que é determinada para todos, da mesma maneira, pela lei; seu mecanismo interno deve ser
variável. Em seu projeto à Constituinte, Lê Peletier propunha penas de intensidade regressiva: um condenado à pena mais
grave só irá para a masmorra (corrente nos pés e nas mãos, escuridão, solidão, pão e água) durante uma primeira fase; terá
a possibilidade de trabalhar dois, depois três dias por semana. Depois dos dois primeiros terços da pena, poderá passar ao
regime da "limitação" (masmorra iluminada, corrente em torno da cintura, trabalho solitário durante cinco dias na semana,
mas em comum os outros dois dias; esse trabalho será pago e lhe permitirá melhorar seu passadio). Enfim, quando se
aproximar do fim da pena, poderá passar ao regime da prisão:
Poderá se reunir com os outros prisioneiros todos os dias para um trabalho comum. Se preferir, poderá trabalhar
sozinho. Sua comida será o que lhe render seu trabalho.(14)
4) Pelo lado do condenado, a pena é uma mecânica dos sinais, dos interesses e da duração. Mas o culpado é apenas
um dos alvos do castigo. Este interessa principalmente aos outros: todos os culpados possíveis. Que esses sinaisobstáculos
que são pouco a pouco gravados na representação do condenado circulem então rápida e largamente; que
sejam aceitos e redistribuídos por todos; que formem o discurso que cada um faz a todo mundo e com o qual todos se
proíbem o crime - a boa moeda que, nos espíritos, toma o lugar do falso proveito do crime.
Para isso, é preciso que o castigo seja achado não só natural, mas interessante; é preciso que cada um possa ler nele
sua própria vantagem. Que não haja mais essas penas ostensivas, mas inúteis. Que também cessem as penas secretas; mas
que os castigos possam ser vistos como uma retribuição que o culpado faz a cada um de seus concidadãos pelo crime com
que lesou a todos, como penas "continuamente apresentadas aos olhos dos cidadãos", e "evidenciem a utilidade pública
dos movimentos comuns e particulares".(15) O ideal seria que o condenado fosse considerado como uma espécie de
propriedade rentável: um escravo posto a serviço de todos. Por que haveria a sociedade de suprimir uma
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vida e um corpo de que ela poderia se apropriar? Seria mais útil fazer "servir ao Estado numa escravidão mais ou menos
longa de acordo com a natureza de seu crime"; a França tem muitas estradas intransitáveis que prejudicam o comércio; os
ladrões que também criam obstáculo à livre circulação das mercadorias terão que reconstruir as estradas. Seria mais
eloqüente do que a morte "o exemplo de um homem que conservamos sempre sob os olhos, cuja liberdade foi retirada e é
obrigado a usar o resto da vida a reparar a perda que causou à sociedade".(16)
No antigo sistema, o corpo dos condenados se tornava coisa do rei, sobre a qual o soberano imprimia sua marca e
deixava cair os efeitos de seu poder. Agora, ele será antes um bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil. Daí o
fato de que os reformadores tenham quase sempre proposto as obras públicas como uma das melhores penas possíveis; os
Cahiers de doléances, aliás, os acompanharam:
Que os condenados a alguma pena abaixo da morte sejam condenados às obras públicas do país, por um tempo
proporcional a seu crime.(17)
Obra pública quer dizer duas coisas: interesse coletivo na pena do condenado e caráter visível, controlável do
castigo. O culpado, assim, paga duas vezes: pelo trabalho que ele fornece e pêlos sinais que produz. No centro da
sociedade, nas praças públicas ou nas grandes estrada, o condenado irradia lucros e significações. Ele serve visivelmente a
cada um; mas, ao mesmo tempo, introduz no espírito de todos o sinal crime-castigo: utilidade secundária, puramente
moral esta, mas tanto mais real.
5) Daí resulta uma sábia economia da publicidade. No suplício corporal, o terror era o suporte do exemplo: medo
físico, pavor coletivo, imagens que devem ser gravadas na memória dos espectadores, como a marca na face ou no ombro
do condenado. O suporte do exemplo, agora, é a lição, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da
moralidade pública. Não é mais a restauração aterrorizante da soberania que vai sustentar a cerimônia do castigo, é a
reativação do Código, o reforço coletivo da ligação entre a idéia do crime e a idéia da pena. Na punição, mais que a visão
da presença do soberano, haverá a leitura das próprias leis. Estas haviam associado a tal crime tal castigo. Assim que o
crime for cometido, e sem perda de tempo, virá a punição, traduzindo em ações o discurso da lei e mostrando que o
Código, que liga as idéias, liga também as realidades. A junção, imediata no texto, deve sê-lo nos atos.
Considerai os primeiros momentos, quando a notícia de alguma ação atroz se espalha em nossas cidades e campos;
os cidadãos parecem homens que vêem cair um raio perto de si; cada um está penetrado de indignação e de horror... Este
é o movimento de castigar o crime: não o deixeis escapar; apressai-vos em convencê-lo e julgá-lo. Levantai cadafalsos,
fogueiras, arrastai o culpado pelas praças públicas, chamai o povo em altas vozes; ouvi-lo-eis então aplaudir a
proclamação de
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vossos julgamentos, como a de paz e de liberdade; vê-lo-eis socorrer a esses terríveis espetáculos como ao triunfo das
leis.(18)
A punição pública é a cerimônia da recodificação imediata.
A lei se reforma, vem retomar um lugar ao lado do crime que a violara. O malfeitor, em compensação, é separado da
sociedade. Deixa-a. Mas não naquelas festas ambíguas do Antigo Regime, em que o povo fatalmente tomava partido do
crime ou da execução, mas numa cerimônia de luto. A sociedade que recuperou suas leis perdeu o cidadão que as violara.
A punição pública deve manifestar essa dupla aflição: que se possa ter ignorado a lei e que um cidadão tenha que ser
isolado.
Ligai ao suplício o mais lúgubre e mais tocante aparelho; que esse dia terrível seja para a pátria um dia de luto; que a
dor geral seja estampada em toda parte em grandes caracteres... Que o magistrado coberto com o crepe fúnebre anuncie ao
povo o atentado e a triste necessidade de uma vingança legal. Que as diversas cenas desta tragédia atinjam todos os
sentidos, mexam com todas as afeições suaves e honestas.(19)
Luto cujo sentido deve ser claro para todos; cada elemento de seu ritual deve falar, dizer o crime, lembrar a lei,
mostrar a necessidade da punição, justificar sua medida. Cartazes, placas, sinais, símbolos devem ser multiplicados, para
que cada um possa apreender seus significados. A publicidade da punição não deve espalhar um efeito físico de terror;
deve abrir um livro de leitura. Lê Peletier propunha que o povo, uma vez por mês, pudesse visitar os condenados
em seu doloroso reduto: lerá traçado em grandes caracteres, acima da porta da masmorra, o nome do culpado, o
crime e o julgamento.(20)
E no estilo ingênuo e militar das cerimônias imperiais, Bexon imaginará alguns anos mais tarde todo um quadro
heráldico penal:
O condenado à morte será conduzido ao cadafalso num carro "tingido ou pintado de preto entremeado de vermelho";
se traiu, terá uma camisa vermelha sobre a qual estará escrita, na frente e atrás, a palavra "traidor"; se for parricida, terá a
cabeça coberta com um véu negro e em sua camisa serão bordados punhais ou os instrumentos de morte de que se tiver
servido; se envenenou, sua camisa vermelha será ornamentada com serpentes e outros animais venenosos.(21)
Essa lição legível, essa recodificação ritual, devem ser repetidas com toda a freqüência possível; que os castigos
sejam uma escola mais que uma festa; um livro sempre aberto mais que uma cerimônia. A duração que torna o castigo
eficaz para o culpado também é útil para os espectadores. Estes devem poder consultar a cada instante o léxico
permanente do crime e do castigo. Pena secreta, pena perdida pela metade. Seria necessário que as crianças pudessem vir
aos lugares onde é executada; lá fariam suas aulas cívicas. E os homens feitos lá reaprenderiam periodicamente as leis.
Concebamos os lugares de castigos como um Jardim de Leis que as famílias visitariam aos domingos.
92 ▲
Eu gostaria que de vez em quando, depois de preparar os espíritos com um discurso fundamentado sobre a
conservação da ordem social, sobre a utilidade dos castigos, se levassem os jovens, mesmo os homens, às minas, às obras,
para contemplar o horrível destino dos proscritos. Essas peregrinações seriam mais úteis que as que os turcos fazem a
Meca.(22)
E Lê Peletier considerava que essa visibilidade dos castigos era um dos princípios fundamentais do novo Código
Penal:
Frequentemente e em momentos marcados, a presença do povo deve levar a vergonha à cabeça do culpado; e a
presença do culpado no estado penoso a que foi reduzido por seu crime deve dar à alma do povo uma útil instrução.(23)
Bem antes de ser concebido como objeto de ciência, pensa-se no criminoso como elemento de instrução. Depois da
visita de caridade para partilhar do sofrimento dos prisioneiros - o século XVII a inventara ou restabelecera -pensou-se
nessas visitas de crianças que viriam aprender como a justiça da lei vem se aplicar ao crime: lição viva no museu da
ordem.
6) Então se poderá inverter na sociedade o tradicional discurso do crime. Grave preocupação para os fazedores de
leis no século XVIII: como apagar a glória duvidosa dos criminosos? Como fazer calar-se a epopéia dos grandes
malfeitores cantada pêlos almanaques, folhetins, as narrativas populares? Se a recodificação for bem feita, se a cerimônia
de luto se desenrolar como deve, o crime só poderá aparecer então como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a
quem se reensina a vida social. Em lugar dessas louvações que tornam o criminoso um herói, só se propagarão então no
discurso dos homens esses sinais-obstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo. A
mecânica positiva funcionará totalmente na linguagem de todos os dias, e esta a fortalecerá sem cessar com novas
narrativas. O discurso se tornará o veículo da lei: princípio constante da recodificação universal. Os poetas do povo se
juntarão enfim aos que se chamam a si mesmos "missionários da razão eterna"; tornar-se-ão moralistas.
Pleno dessas imagens terríveis e dessas idéias salutares, cada cidadão virá espalhá-las em sua família, e aí, com
longas narrativas feitas com tanto calor quanto avidamente ouvidas, seus filhos em torno dele abrirão suas jovens
memórias para receber, em traços inalteráveis, a idéia do crime e do castigo, o amor pelas leis e pela pátria, o respeito e a
confiança na magistratura. Os habitantes do campo, testemunhas também desses exemplos, os semearão em torno de suas
cabanas, o gosto pela virtude criará raízes nessas almas grosseiras, enquanto que o mau, consternado pela alegria pública,
assustado de ver tantos inimigos, talvez venha a renunciar a seus projetos cujo resultado é tão rápido quanto funesto.(24)
Eis então como devemos imaginar a cidade punitiva. Nas encruzilhadas, nos jardins, à beira das estradas que são
refeitas ou das pontes que são construídas, em oficinas abertas a todos, no fundo de minas que serão visitadas, mil
pequenos teatros de castigos. Para cada crime, sua lei; para cada criminoso, sua pena. Pena visível, pena loquaz, que diz
tudo, que explica, se justifica,
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convence: placas, bonés, cartazes, tabuletas, símbolos, textos lidos ou impressos, isso tudo repete incansavelmente o
Código. Cenários, perspectivas, efeitos de ótica, fachadas às vezes ampliam a cena, tornam-na mais temível, mas também
mais clara. Do lugar onde está colocado o público, poder-se-ia acreditar em certas crueldades que, na realidade, não
acontecem. Mas o essencial, para essas severidades reais ou ampliadas, é que, segundo uma economia estrita, todas elas
sirvam de lição: que cada castigo seja um apólogo. E que, em contraponto a todos os exemplos diretos de virtude, se
possam a cada instante encontrar, como uma cena viva, as desgraças do vício. Em torno de cada uma dessas
"representações" morais, os escolares se comprimirão com seus professores e os adultos aprenderão que lição ensinar aos
filhos. Não mais o grande ritual aterrorizante dos suplícios, mas no correr dos dias e pelas ruas esse teatro sério, com suas
cenas múltiplas e persuasivas. E a memória popular reproduzirá em seus boatos o discurso austero da lei. Mas talvez fosse
necessário, acima desses mil espetáculos e narrativas, colocar o sinal maior da punição para o mais terrível dos crimes: o
ápice do edifício penal. Vermeil, em todo caso, imaginara a cena da punição absoluta que devia dominar todos os teatros
do castigo diário: o único caso em que se deveria procurar atingir o infinito punitivo. Um pouco o equivalente, na nova
penalidade, ao que fora o regicídio na antiga. O culpado teria os olhos furados; seria colocado numa jaula de ferro,
suspensa em pleno ar, acima de uma praça pública; estaria completamente nu; com um cinto de ferro em torno da cintura,
seria amarrado às grades; até o fim de seus dias, seria alimentado a pão e água.
Estaria assim exposto a todos os rigores das estações ora a fronte coberta de neve, ora calcinado por um sol ardente.
Seria nesse suplício enérgico, que apresenta antes o prolongamento de uma morte dolorosa que o de uma vida penosa que
se poderia realmente reconhecer um celerado votado ao horror da natureza inteira, condenado a não ver mais o céu que
ultrajou e a não habitar mais a terra que maculou.(25)
Acima da cidade punitiva, essa aranha de ferro; e o que deve ser assim crucificado pela nova lei é o parricida.
Todo um arsenal de castigos pitorescos. "Evitai infligir as mesmas punições", dizia Mably. É banida a idéia de uma
pena uniforme, modulada unicamente pela gravidade da falta. Mais precisamente: a utilização da prisão como forma geral
de castigo nunca é apresentada nesses projetos de penas específicas, visíveis e eloqüentes. Sem dúvida, a prisão é prevista,
mas entre outras penas; é então o castigo específico para certos delitos, os que atentam à liberdade dos indivíduos (como o
rapto) ou que resultam do abuso da liberdade (a desordem, a violência). É prevista também como condição para que se
possam executar
94 ▲
certas penas (o trabalho forçado, por exemplo). Mas não cobre todo o campo da penalidade com a duração como único
princípio de variação. Melhor, a idéia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores. Porque é
incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeito sobre o público. Porque é inútil à
sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios.(26) Porque é difícil
controlar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiões.
Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiá-lo na prisão é um exercício de tirania.
Exigis que haja entre vós monstros; e esses homens odiosos, se existissem, o legislador deveria talvez tratá-los como
assassinos.(27)
A prisão em seu todo é incompatível com toda essa técnica da pena-efeito, da pena-representação, da pena-função
geral, da pena-sinal e discurso. Ela é a escuridão, a violência e a suspeita.
É um lugar de trevas onde o olho do cidadão não pode contar as vitimas, onde conseqüentemente seu número está
perdido para o exemplo... Enquanto que se, sem multiplicar os crimes, pudermos multiplicar o exemplo dos castigos,
conseguimos enfim torná-los menos necessários; aliás a escuridão das prisões torna-se assunto de desconfiança para os
cidadãos; supõem facilmente que lá se cometem grandes injustiças... Há certamente alguma coisa que vai mal, quando a
lei, que é feita para o bem da multidão, em vez de excitar seu reconhecimento, excita continuamente seus murmúrios.(28)
Que a reclusão pudesse como hoje, entre a morte e as penas leves, cobrir todo o espaço médio da punição, é uma
idéia que os reformadores não podiam ter imediatamente.
Ora, eis o problema: depois de bem pouco tempo, a detenção se tornou a forma essencial de castigo. No Código
Penal de 1810, entre a morte e as multas, ela ocupa, sob um certo número de formas, quase todo o campo das punições
possíveis.
Que é o sistema de penalidades admitido pela nova lei? É o encarceramento sob todas as suas formas. Comparai
com efeito as quatro penas principais que restam no Código Penal. Os trabalhos forçados são uma forma de
encarceramento. O local desse castigo é uma prisão ao ar livre. A detenção, a reclusão, o encarceramento correcional não
passam, de certo modo, de nomes diversos de um único e mesmo castigo.(29)
E esse encarceramento, pedido pela lei, o Império resolvera transcrevê-lo logo para a realidade, segundo uma
hierarquia penal, administrativa, geográfica: no grau mais baixo, associada a cada justiça de paz, delegacia municipal; em
cada distrito, prisões; em todos os departamentos, uma casa de correção; no cume, várias casas centrais para os
condenados criminosos ou os correcionais que são condenados a mais de um ano; enfim, em alguns portos, prisão com
trabalhos forçados. É programado um grande edifício carceral, cujos níveis diversos devem-se ajustar exatamente aos
andares da centralização adminis95

trativa. O cadafalso onde o corpo do supliciado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o teatro punitivo
onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social, são substituídos por uma grande
arquitetura fechada, complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado. Uma materialidade
totalmente diferente, uma física do poder totalmente diferente, uma maneira de investir o corpo do homem totalmente
diferente. A partir da Restauração e sob a monarquia de julho, encontraremos, por pequenas diferenças, entre 40 e 43.000
detentos nas prisões francesas (mais ou menos um prisioneiro para cada 600 habitantes). O muro alto, não mais aquele
que cerca e protege, não mais aquele que manifesta, por seu prestígio, o poder e a riqueza, mas o muro cuidadosamente
trancado, intransponível num sentido e no outro, e fechado sobre o trabalho agora misterioso da punição, será bem perto e
às vezes mesmo no meio das cidades do século XIX, a figura monótona, ao mesmo tempo material e simbólica, do poder
de punir. Já sob o Consulado, o ministro do interior fora encarregado de investigar sobre os diversos lugares de segurança
que já funcionavam ou que podiam ser utilizados nas diversas cidades. Alguns anos mais tarde, haviam sido previstos
créditos para construir, à altura do poder que deviam representar e servir, esses novos castelos da ordem civil. O Império
os utilizou, na realidade, para uma outra guerra.(30) Uma economia menos suntuária mas mais obstinada acabou
construindo-os, pouco a pouco, no século XIX.
Em todo caso em menos de vinte anos, o princípio tão claramente formulado na Constituinte, de penas específicas,
ajustadas, eficazes, que formassem, em cada caso, lição para todos, tornou-se a lei de detenção para qualquer infração
pouco importante, se ela ao menos não merecer a morte. Esse teatro punitivo, com que se sonhava no século XVIII, e que
teria agido essencialmente sobre o espírito dos cidadãos, foi substituído pelo grande aparelho uniforme das prisões cuja
rede de imensos edifícios se estenderá por toda a França e a Europa. Mas dar vinte anos como cronologia para esse passe
de mágica é talvez ainda excessivo. Pode-se dizer que foi quase instantâneo. Basta examinar com atenção o projeto de
Código Criminal apresentado por Lê Peletier à Constituinte. O princípio formulado no início é que são necessárias
"relações exalas entre a natureza do delito e a natureza da punição": dores para os que foram ferozes, trabalho para os que
foram preguiçosos, infâmia para aqueles cuja alma está degradada. Ora, as penas aflitivas efetivamente propostas são três
formas de detenção: a masmorra onde a pena de encarceramento é agravada por diversas medidas (referentes à solidão, à
privação de luz, às restrições de comida); a "limitação", em que essas medidas anexas são atenuadas, enfim a prisão
propriamente dita, que se reduz ao encarceramento puro e simples. A diversidade, tão solenemente prometida, reduz-se
finalmente a essa penalidade uniforme e melancólica. Houve, aliás, no momento, deputados que se espanta-
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ram de que, em vez de estabelecer uma relação entre delitos e penas, se houvesse seguido um plano totalmente diferente:
De maneira que se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos os delitos imagináveis são punidos
da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio.(31)
Pronta substituição que não foi privilégio da França. Encontramo-la, igual em tudo, nos países estrangeiros. Quando
Catarina II, nos anos que se seguiram imediatamente ao tratado "Dos delitos e das penas", manda redigir um projeto para
um "novo código das leis", a lição de Beccaria sobre a especificidade e a variedade das penas não foi esquecida; é
repetida quase palavra por palavra:
É o triunfo da liberdade civil, quando as leis criminais tiram cada pena da natureza particular de cada crime. Então
cessa qualquer arbitrariedade; a pena não depende em nada do capricho do legislador, mas da natureza da coisa; não é de
modo algum o homem que faz violência ao homem, mas a própria ação do homem.(32)
Alguns anos mais tarde os princípios gerais de Beccaria ainda fundamentam o novo código toscano e o que José II
deu à Áustria; e no entanto essas duas legislações fazem do encarceramento - modulado segundo a duração e agravado em
certos casos pelo ferrete ou pelas algemas, uma pena quase uniforme; trinta anos pelo menos de detenção por atentado
contra o soberano, por falsificação de moeda e por assassinato complicado com roubo; de quinze a trinta anos por
homicídio voluntário ou por roubo a mão armada; de um mês a cinco anos por roubo simples, etc.(33)
Mas se essa colonização da penalidade pela prisão é de surpreender, é porque esta não era, como se imagina, um
castigo que já estivesse solidamente instalado no sistema penal, logo abaixo da pena de morte, e que teria naturalmente
ocupado o lugar deixado vago pelo desaparecimento dos suplícios. Na realidade a prisão - e muitos países, nesse ponto,
estavam na mesma situação da França - tinha apenas uma posição restrita e marginal no sistema das penas. Os textos o
provam. A ordenação de 1670, entre as penas aflitivas, não cita a detenção. A prisão perpétua ou temporária havia, sem
dúvida, figurado entre as penas em certos costumes.(34) Mas pretende-se que ela está caindo em desuso como outros
suplícios:
Havia antigamente penas que nào se praticam mais na França, como escrever na testa ou rosto de um condenado sua
pena, e a prisão perpétua, assim como não se deve condenar um criminoso a ser exposto às feras nem às minas.(35)
De fato, é certo que a prisão subsistira de maneira tenaz, para sancionar as faltas sem gravidade, e isto segundo os
costumes ou hábitos locais. Nesse sentido Soulatges fala das "penas leves" que a ordenação de 1670 não mencionara: o
anátema, a admoestação, a abstenção de lugar, a satisfação à pessoa ofendida e a prisão temporária. Em certas regiões,
principalmente as que
97 ▲
haviam melhor conservado seu particularismo judiciário, a pena de prisão tinha ainda uma grande extensão, mas a coisa
tinha suas dificuldades, como no Roussillon, recentemente anexado.
Mas através dessas divergências os juristas defendem firmemente o princípio de que a "prisão não é vista como uma
pena em nosso direito civil.(36) Seu papel é de ser uma garantia sobre a pessoa e sobre seu corpo: ad continendos
homines, non adpuniendos, diz o adágio: nesse sentido, o encarceramento de um suspeito tem um pouco o mesmo papel
que o de um devedor. A prisão assegura que temos alguém, não o pune.(37) É este o princípio geral. E se às vezes a prisão
desempenha o papel de pena mesmo, e em casos importantes é essencialmente a título do substituto: substitui as galés
para aqueles - mulheres, crianças, inválidos - que nelas não podem servir:
A condenação a ser encarcerado temporária ou definitivamente numa casa de força é equivalente à das galés.(38)
Nessa equivalência, vemos bem esboçar-se uma possível substituição. Mas, para que ela se realizasse, foi preciso
que a prisão mudasse de estatuto jurídico.
Foi preciso também superar um segundo obstáculo que, para a França pelo menos, era considerável. Com efeito, a
prisão era ainda mais desqualificada porque estava, na prática, diretamente ligada ao arbítrio real e aos excessos do poder
soberano. As "casas de força", os hospitais gerais, as "ordens do rei" ou as do chefe de polícia, as cartas timbradas obtidas
pêlos notáveis ou pelas famílias haviam constituído toda uma prática repressiva, justaposta à "justiça regular" e ainda
mais frequentemente oposta a ela. E esse encarceramento extrajudiciário era rejeitado tanto pêlos juristas clássicos quanto
pêlos reformadores. Prisões, feito do príncipe, dizia um tradicionalista como Serpillon que se abrigava por trás da
autoridade do presidente Bouhier:
Embora os príncipes por razões de Estado cheguem às vezes a infligir esta pena, a justiça ordinária não utiliza esses
tipos de condenação.(39)
Detenção, figura e instrumento privilegiado do despotismo, dizem os reformadores, em inúmeras declarações:
Que se dirá dessas prisões secretas imaginadas pelo espírito fatal do monarquismo, reservadas principalmente ou
para os filósofos em cujas mãos a natureza colocou seu facho e que ousam iluminar seu século, ou para essas almas
orgulhosas e independentes que não têm a covardia de calar os males de sua pátria: prisões cujas portas funestas são
abertas por misteriosas cartas, para aí sepultar para sempre suas infelizes vítimas? Que se dirá mesmo dessas cartas, obraprima
de uma misteriosa tirania, que invertem o privilégio que tem qualquer cidadão de ser ouvido antes de ser julgado, e
que são mil vezes mais perigosas para os homens que a invenção das Phalaris...(40)
Sem dúvida que esses protestos vindos de horizontes tão diversos se referem não ao encarceramento como pena
legal, mas à utilização "fora da lei"
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da detenção arbitrária e indeterminada. Nem por isso a prisão deixava de aparecer, de uma maneira geral, como marcada
pêlos abusos do poder. E muitos rejeitam-na por incompatível com uma boa justiça. Quer em nome dos princípios
jurídicos clássicos:
As prisões, na intenção da lei, sendo destinadas não a punir mas a garantir a presença das pessoas...(41)
Quer em nome dos efeitos da prisão que já pune os que ainda não estão condenados, que comunica e generaliza o
mal que deveria prevenir e que vai contra o princípio da individualização da pena, sancionando toda uma família; diz-se
que
a prisão é uma pena. A humanidade se levanta contra esse horrível pensamento de que não é uma punição privar um
cidadão do mais precioso dos bens, mergulhá-lo ignominiosamente no mundo do crime, arrancá-lo a tudo o que lhe é
caro, precipitá-lo talvez na ruína e retirar-lhe, não só a ele mas à sua infeliz família todos os meios de subsistência.(42)
E os cahiers, por várias vezes, pedem a supressão dessas casas de internação:
Pensamos que as cadeias devem ser arrasadas...(43)
E realmente o decreto de 13 de março de 1790 ordena que se ponha em liberdade todas as pessoas detidas nos
castelos, nas casas religiosas, cadeias, delegacias ou quaisquer outras prisões por cartas de prego ou por ordem dos
agentes do poder executivo.
Como pôde a detenção, tão visivelmente ligada a esse ilegalismo que é denunciado até no poder do príncipe, em tão
pouco tempo tornar-se uma das formas mais gerais dos castigos legais?
A explicação mais freqüente é a formação durante a época clássica de alguns grandes modelos de encarceramento
punitivo. Seu prestígio, ainda maior dado o fato de que os mais recentes vinham da Inglaterra e principalmente da
América, teria permitido superar o duplo obstáculo constituído pelas regras seculares do direito e o funcionamento
despótico da prisão. Muito rapidamente, teriam afastado as maravilhas punitivas imaginadas pêlos reformadores, e
imposto a realidade séria da detenção. A importância desses modelos foi grande, não se deve duvidar. Mas são justamente
eles que antes de fornecer a solução trazem problemas: o de sua existência e o de sua difusão. Como puderam nascer e
principalmente como puderam ser aceitos de maneira tão geral? Pois é fácil mostrar que, se apresentam um certo número
de pontos em comum com os princípios gerais da reforma penal, em muitos pontos são inteiramente heterogêneos a ela, e
às vezes mesmo incompatíveis.
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O mais antigo desses modelos, o que passa por ter, de perto ou de longe, inspirado todos os outros, é o Rasphuis de
Amsterdam, aberto em 1596.(44) Destinava-se em princípio a mendigos ou a jovens malfeitores. Seu funcionamento
obedecia a três grandes princípios: a duração das penas podia, pelo menos dentro de certos limites, ser determinada pela
própria administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro (essa latitude podia, aliás, ser prevista pela
sentença: em 1597 um detento era condenado a doze anos de prisão, que podiam se reduzir a oito, se seu comportamento
fosse satisfatório). O trabalho era obrigatório, feito em comum (aliás a cela individual só era utilizada a título de punição
suplementar; os detentos dormiam 2 ou 3 em cada cama, em celas que continham 4 a 12 pessoas); e pelo trabalho feito, os
prisioneiros recebiam um salário. Enfim um horário estrito, um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância
contínua, exortações, leituras espirituais, todo um jogo de meios para "atrair para o bem" e "desviar do mal", enquadrava
os detentos no dia-a-dia. Pode-se tomar o Rasphuis de Amsterdam como exemplo básico. Historicamente, faz a ligação
entre a teoria, característica do século XVI, de uma transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por um
exercício contínuo, e as técnicas penitenciárias imaginadas na segunda metade do século XVIII. E deu às três instituições
que são então implantadas os princípios fundamentais que cada uma desenvolverá numa direção particular.
A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno principalmente de imperativos econômicos. A razão dada é
que a ociosidade é a causa geral da maior parte dos crimes. Um levantamento - um dos primeiros sem dúvida -feito sobre
os condenados na jurisdição de Alost, em 1749, mostra que os malfeitores não eram
artesões ou lavradores (os operários só pensam no trabalho que os alimenta), mas vagabundos que se dedicavam à
mendicância.(45)
Daí a idéia de uma casa que realizasse de uma certa maneira a pedagogia universal do trabalho para aqueles que se
mostrassem refratários. Quatro vantagens: diminuir o número de processos criminais que custam caro ao Estado (poderse-
iam assim economizar mais de 100.000 libras em Flandres); não ser mais necessário adiar os impostos para os
proprietários dos bosques arruinados pêlos vagabundos; formar uma quantidade de novos operários, o que "contribuiria,
pela concorrência, a diminuir a mão-de-obra"; enfim permitir aos verdadeiros pobres ter os benefícios, sem divisão, da
caridade necessária. Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por
força num sistema de interesses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça, formará em torno dele uma
pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima: quem quer viver tem que
trabalhar. Obrigação do trabalho, mas
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também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante e depois da detenção.
O homem que não encontra sua subsistência deve absolutamente ser levado ao desejo de procurá-la pelo trabalho;
ela lhe é oferecida pela polícia e pela disciplina; de alguma maneira, ele é obrigado a se entregar; a atração do ganho o
excita, em seguida: corrigido em seus hábitos, acostumado a trabalhar, alimentado sem inquietação com alguns lucros que
reserva para a saída [ele aprendeu uma profissão] que lhe garante uma subsistência sem perigo.(47)
Reconstrução do Homo oeconomicus, que exclui a utilização de penas muito breves - o que impediria a aquisição
das técnicas e do gosto pelo trabalho, ou definitivas - o que tomaria inútil qualquer aprendizagem.
O prazo de seis meses é curto demais para corrigir os criminosos, e levá-los ao espírito de trabalho; [em
compensação] o prazo perpétuo os desespera; ficam indiferentes à correção dos hábitos e ao espírito de trabalho; só se
ocupam com projetos de evasão e de revolta; e já que não foram julgados quanto a serem privados da vida, por que
procurar torná-la insuportável?(48)
A duração da pena só tem sentido em relação a uma possível correção, e a uma utilização econômica dos criminosos
corrigidos.
Ao princípio do trabalho, o modelo inglês acrescenta, como condição essencial para a correção, o isolamento. O
esquema fora dado em 1775, por Hanway, que o justificava em primeiro lugar por razões negativas: a promiscuidade na
prisão dá maus exemplos e possibilidades de evasão no imediato, de chantagem ou de cumplicidade para o futuro. A
prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando-se os detentos trabalhar em comum. As razões positivas em
seguida: o isolamento constitui "um choque terrível", a partir do qual o condenado, escapando às más influências, pode
fazer meia-volta e redescobrir no fundo de sua consciência a voz do bem; o trabalho solitário se tornará então tanto um
exercício de conversão quanto de aprendizado; não reformará simplesmente o jogo de interesses próprios ao homo
oeconomicus, mas também os imperativos do indivíduo moral. A cela, esta técnica do monarquismo cristão e que só
subsistia em países católicos, torna-se nessa sociedade protestante o instrumento através do qual se podem reconstituir ao
mesmo tempo o homo oeconomicus e a consciência religiosa. Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão
constituirá um "espaço entre dois mundos", um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os
indivíduos que este perdera. Aparelho para modificar os indivíduos que Hanway chama um "reformatório".(49) São esses
princípios gerais que Howard e Blackstone põem em prática em 1779 quando a independência dos Estados Unidos
impede as deportações e se prepara uma lei para modificar o sistema de penas. O encarceramento, com a finalidade de
transformação da alma e do comportamento, faz sua entrada no sistema das leis civis. O preâmbulo da lei, redigido por
Blackstone e Howard, descreve o encarceramento individual em
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sua tríplice função de exemplo temível, de instrumento de conversão e de condição para um aprendizado: submetidos
a uma detenção isolada, a um trabalho regular e à influência da instrução religiosa [certos criminosos poderiam] não
só assustar aqueles que ficassem tentados a imitá-los, mas ainda eles mesmos se corrigirem e contrair o hábito do
trabalho.(50)
Donde a decisão de construir duas penitenciárias, uma para os homens, outra para as mulheres, onde os detentos
isolados seriam obrigados "aos trabalhos mais servis e mais compatíveis com a ignorância, a negligência e a obstinação
dos criminosos": andar numa roda para movimentar uma máquina, fixar um cabrestante, polir mármore, bater cânhamo,
raspar pau-campeche, retalhar trapos, fazer cordas e sacos. Na realidade só uma penitenciária foi construída, a de
Gloucester, e que só parcialmente correspondia ao esquema inicial: confinamento total para os criminosos mais perigosos;
para os outros, trabalho em comum durante o dia e separação à noite.
Enfim, o modelo de Filadélfia. O mais famoso, sem dúvida, porque surgia ligado às inovações políticas do sistema
americano e também porque não foi votado, como os outros, ao fracasso imediato e ao abandono; foi continuamente
retomado e transformado até às grandes discussões dos anos 1830 sobre a reforma penitenciária. Em muitos pontos, a
prisão de Walnut Street, aberta em 1790, sob a influência direta dos meios quaker, retomava o modelo de Gand e de
Gloucester.(51) Trabalho obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos, custeio das despesas da prisão com
esse trabalho, mas também retribuição individual dos prisioneiros para assegurar sua reinserção moral e material no
mundo estrito da economia; os condenados são então
constantemente empregados em trabalhos produtivos para fazê-los suportares gastos da prisão, para não deixá-los na
inação e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu cativeiro.(52)
A vida é então repartida de acordo com um horário absolutamente estrito, sob uma vigilância ininterrupta: cada
instante do dia é destinado a alguma coisa, prescreve-se um tipo de atividade e implica obrigações e proibições:
Todos os prisioneiros se levantam cedo de madrugada, de maneira que depois de terem feito as camas, se terem
lavado e atendido a outras necessidades, começam o trabalho geralmente ao nascer do sol. A partir desse momento,
ninguém pode entrar nas salas ou outros lugares que não sejam as oficinas e locais designados para seus trabalhos... No
fim do dia, toca um sino que os avisa para deixar o trabalho... Eles têm meia hora para arrumar as camas, e depois disso
não lhes é mais permitido conversar alto e fazer o mínimo ruído.(53)
Como em Gloucester, o confinamento solitário não é total: é para certos condenados que em outras épocas teriam
recebido a morte, e para aqueles que no interior da prisão merecem uma punição especial:
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Lá, sem ocupação, sem nada para distraí-lo, à espera e na incerteza do momento em que será libertado [o prisioneiro
passa] longas horas ansiosas, trancado em pensamentos que se apresentam ao espírito de todos os culpados.(54)
Como em Gand, enfim, a duração do encarceramento pode variar com o comportamento do detento: os inspetores da
prisão, depois de consultar o processo, obtêm das autoridades - e isso sem dificuldades até pêlos anos 1820 - o perdão
para os detentos que se comportarem bem.
Walnut Street comporta além disso um certo número de traços que lhe são específicos, ou pelo menos que
desenvolvem o que estava virtualmente presente nos outros modelos. Em primeiro lugar o princípio da não-publicidade da
pena. Se a condenação e o que a motivou devem ser conhecidos por todos, a execução da pena, em compensação, deve ser
feita em segredo; o público não deve intervir nem como testemunha, nem como abonador da punição; a certeza de que,
atrás dos muros, o detento cumpre sua pena deve ser suficiente para constituir um exemplo: terminados aqueles
espetáculos de rua criados pela lei de 1786, quando impôs a certos condenados obras públicas a executar nas cidades ou
estradas.(55) O castigo e a correção que este deve operar são processos que se desenrolam entre o prisioneiro e aqueles
que o vigiam. Processos que impõem uma transformação do indivíduo inteiro - de seu corpo e de seus hábitos pelo
trabalho cotidiano a que é obrigado, de seu espírito e de sua vontade pêlos cuidados espirituais de que é objeto:
São fornecidas Bíblias e outros livros de religião prática; o clero das diversas obediências que se encontrar na cidade
e nos arrabaldes realiza o serviço religioso uma vez por semana e qualquer outra pessoa edificante pode ter acesso aos
prisioneiros todo o tempo.(56)
Mas a própria administração tem o papel de empreender essa transformação. A solidão e o retorno sobre si mesmo
não bastam; assim tampouco as exortações puramente religiosas. Deve ser feito com tanta freqüência quanto possível um
trabalho sobre a alma do detento. A prisão, aparelho administrativo, será ao mesmo tempo uma máquina para modificar
os espíritos. Quando o detento entra, o regulamento lhe é lido:
ao mesmo tempo, os inspetores procuram fortalecer nele as obrigações morais onde ele está; demonstram-lhe a
infração em que caiu em relação a eles, o mal que disso conseqüentemente resultou para a sociedade que o protegia e a
necessidade de fazer uma compensação por seu exemplo e ao se emendar. Fazem-no em seguida comprometer-se a
cumprir seu dever com alegria, a se comportar decentemente, prometendo-lhe, ou fazendo-o esperar, que antes da
expiração do termo da sentença poderá obter seu relaxamento, se se comportar bem... De vez em quando os inspetores,
sem falta, conversam com os criminosos um depois do outro, relativamente a seus deveres como homens e como
membros da sociedade.(57)
Mas o mais importante sem dúvida é que esse controle e essa transformação do comportamento são acompanhados -
ao mesmo tempo condição e conseqüência - da formação de um saber dos indivíduos. Ao mesmo tempo
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que o próprio condenado, a administração de Walnut Street recebe um relatório sobre seu crime, as circunstâncias em que
foi cometido, um resumo de interrogatório do culpado, notas sobre a maneira como ele se conduziu antes e depois da
sentença. Outros tantos elementos indispensáveis se queremos "determinar quais serão os cuidados necessários para
destruir seus hábitos antigos".(58) E durante todo o tempo da detenção ele será observado; seu comportamento será
anotado dia por dia, e os inspetores - doze notáveis da cidade designados em 1795 - que, dois a dois, visitam a prisão toda
semana, deverão se informar do que se passou, tomar conhecimento da conduta de cada condenado e designar aqueles
para os quais será pedida a graça. Esses conhecimentos dos indivíduos, continuamente atualizados, permitem reparti-los
na prisão menos em função de seus crimes que das disposições que demonstram. A prisão torna-se uma espécie do
observatório permanente que permite distribuir as variedades do vício ou da fraqueza. A partir de 1797, os prisioneiros
estavam divididos em quatro classes: a primeira para os que foram explicitamente condenados ao confinamento solitário,
ou que cometeram faltas graves na prisão; outra é a reservada aos que são
bem conhecidos por serem velhos delinqüentes... ou cuja moral depravada, temperamento perigoso, disposições
irregulares ou conduta desordenada [se manifestaram durante o tempo em que estavam na prisão; outra para aqueles] de
quem o caráter e as circunstâncias, antes e depois da condenação, fazem pensar que não são delinqüentes comuns.
Existe enfim uma seção especial, uma classe de prova para aqueles cujo temperamento ainda não é conhecido, ou
que, se são mais bem conhecidos, não merecem entrar na categoria anterior.(59) Organiza-se todo um saber
individualizante que toma como campo de referência não tanto o crime cometido (pelo menos em estado isolado) mas a
virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no comportamento observado cotidianamente. A prisão
funciona aí como um aparelho de saber.
Entre este aparelho punitivo proposto pêlos modelos flamengo, inglês, americano - entre esses "reformatórios" e
todos os castigos imaginados pêlos reformadores, podem-se estabelecer pontos de convergência e disparidades.
Pontos de convergência. Em primeiro lugar, o retorno temporal da punição. Os "reformatórios" se dão por função,
também eles, não apagar um crime, mas evitar que recomece. São dispositivos voltados para o futuro, e organizados para
bloquear a repetição do delito.
O objeto das penas não é a expiação do crime cuja determinação deve ser deixada ao Ser supremo; mas prevenir os
delitos da mesma espécie.(60) [E na Pensilvânia Buxton afirmava que os princípios de Montesquieu e de Beccaria deviam
ter agora] "força de axiomas", a prevenção dos crimes é o único fim do castigo.(61)
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Não se pune portanto para apagar um crime, mas para transformar um culpado (atual ou virtual); o castigo deve
levar em si uma certa técnica corretiva. Ainda nesse ponto, Rush está bem próximo dos juristas reformadores - não fora,
talvez, a metáfora que utiliza - quando diz: inventaram-se sem dúvida máquinas que facilitam o trabalho; bem mais se
deveria louvar aquele que inventasse
os métodos mais rápidos e mais eficazes para trazer de volta à virtude e à felicidade a parte mais viciosa da
humanidade e para extirpar uma parte do vício que está no mundo.(62)
Enfim os modelos anglo-saxões, como os projetos dos legisladores e dos teóricos, utilizam processos para
singularizar a pena: em sua duração, sua natureza, sua intensidade, na maneira como se desenrola, o castigo deve ser
ajustado ao caráter individual, e ao que este comporta de perigo para os outros. O sistema das penas deve estar aberto às
variáveis individuais. Em seu esquema geral, os modelos mais ou menos derivados do Rasphuis de Amsterdam não
estavam em contradição com o que propunham os reformadores. Poder-se-ia mesmo pensar, à primeira vista, que eram
apenas os desenvolvimentos - ou o esboço - dessa proposta ao nível das instituições concretas.
E no entanto a disparidade salta aos olhos desde que se trata de definir as técnicas dessa correção individualizante.
Onde se faz a diferença, é no procedimento de acesso ao indivíduo, na maneira como o poder punitivo se apossa dele, nos
instrumentos que utiliza para realizar essa transformação; é na tecnologia da pena, não em seu fundamento teórico; na
relação que ela estabelece no corpo e na alma, e não na maneira como ela se insere no interior do sistema do direito.
Vejamos o método dos reformadores. Será o ponto a que se refere a pena, aquilo com que ela tem poder sobre o
indivíduo? As representações: representação de seus interesses, representação de suas vantagens, suas desvantagens, seu
prazer, e seu desprazer; e se acontece que o castigo se aposse do corpo, lhe aplique técnicas que não tem nada a invejar
aos suplícios, é na medida em que esse corpo é - para o condenado e para os espectadores - um objeto de representação. O
instrumento com o qual se age sobre as representações? Outras representações, ou antes as duplas de idéias (crimepunição,
vantagem imaginada do crime-desvantagem percebida dos castigos); esses emparelhamentos só podem funcionar
no elemento da publicidade: cenas punitivas que os estabelecem ou os reforçam aos olhos de todos, discursos que os
fazem circular e revalorizam a cada instante o jogo dos sinais. O papel do criminoso na punição é reintroduzir, diante do
código e dos crimes, a presença real do significado -ou seja, dessa pena que, segundo os termos do código, deve estar
infalivelmente associada à infração. Produzir com abundância e com evidência esse significado, reativar desse modo o
sistema significante do código, fazer funcionar a
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idéia de crime como um sinal de punição, é com essa moeda que o malfeitor paga sua dívida à sociedade. A correção
individual deve então realizar o processo de requalificação do indivíduo como sujeito de direito, pelo reforço dos sistemas
de sinais e das representações que fazem circular.
O aparelho da penalidade corretiva age de maneira totalmente diversa. O ponto de aplicação da pena não é a
representação, é o corpo, é o tempo, são os gestos e as atividades de todos os dias; a alma, também, mas na medida em
que é sede de hábitos. O corpo e a alma, como princípios dos comportamentos, formam o elemento que agora é proposto à
intervenção punitiva. Mais que sobre uma arte de representações, ela deve repousar sobre uma manipulação refletida do
indivíduo:
Qualquer crime tem sua cura na influência física e moral: [é necessário então para determinar os castigos] conhecer
o princípio das sensações e das simpatias que se produzem no sistema nervoso.(63)
Quanto aos instrumentos utilizados, não são mais jogos de representação que são reforçados e que se faz circular;
mas formas de coerção, esquemas de limitação aplicados e repetidos. Exercícios, e não sinais: horários, distribuição do
tempo, movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em comum, silêncio, aplicação,
respeito, bons hábitos. E finalmente, o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito,
que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos,
regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, e que ele deve deixar funcionar
automaticamente nele. Duas maneiras, portanto, bem distintas de reagir à infração: reconstituir o sujeito jurídico do pacto
social - ou formar um sujeito de obediência dobrado à forma ao mesmo tempo geral e meticulosa de um poder qualquer.
Tudo isso não passaria talvez de uma diferença bem especulativa - pois no total trata-se, nos dois casos, de formar
indivíduos submissos - se a penalidade "de coerção" não trouxesse consigo algumas conseqüências capitais. O
treinamento do comportamento pelo pleno emprego do tempo, a aquisição de hábitos, as limitações do corpo implicam
entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular. Relação que não só torna simplesmente inútil a dimensão
do espetáculo: ela o exclui.(64) O agente de punição deve exercer um poder total, que nenhum terceiro pode vir perturbar;
o indivíduo a corrigir deve estar inteiramente envolvido no poder que se exerce sobre ele. Imperativo do segredo. E,
portanto, também autonomia pelo menos relativa dessa técnica de punição: ela deverá ter seu funcionamento, suas
técnicas, seu saber; ela deverá fixar suas normas, decidir de seus resultados: descontinuidade, ou em todo caso
especificidade em relação ao poder judiciário que declara a culpa e fixa os
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limites gerais da punição. Ora, essas duas conseqüências — segredo e autonomia no exercício do poder de punir - são
exorbitantes para uma teoria e uma política de penalidade que se propunha dois objetivos: fazer todos os cidadãos
participarem do castigo do inimigo social; tornar o exercício do poder de punir inteiramente adequado e transparente às
leis que o delimitam publicamente. Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se exerce
na sombra de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle - é toda a estratégia da reforma que corre o
risco de ser comprometida. Depois da sentença é constituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema.
O poder que aplica às penas ameaça ser tão arbitrário, tão despótico quanto aquele que antigamente as decidia.
No total, a divergência é a seguinte: cidade punitiva ou instituição coercitiva? De um lado, funcionamento do poder
penal repartido em todo o espaço social; presente em toda parte como cena, espetáculo, sinal, discurso; legível como um
livro aberto; que opera por uma recodificação permanente do espírito dos cidadãos; que realiza a repressão do crime por
esses obstáculos colocados à ideia do crime; que age de maneira invisível e inútil sobre as "fibras moles do cérebro",
como dizia Servan. Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede social, agiria em cada um de seus pontos, e
terminaria não sendo mais percebido como poder de alguns sobre alguns, mas como reação imediata de todos em relação
a cada um. De outro, um funcionamento compacto do poder de punir: ocupação meticulosa do corpo e do tempo do
culpado, enquadramento de seus gestos, de suas condutas por um sistema de autoridade e de saber; uma ortopedia
concertada que é aplicada aos culpados a fim de corrigi-los individualmente; gestão autônoma desse poder que se isola
tanto do corpo social quanto do poder judiciário propriamente dito. O que se engaja no aparecimento da prisão é a
institucionalização do poder de punir, ou mais precisamente: o poder de punir (com o objetivo estratégico que lhe foi dado
no fim do século XVIII, a redução dos ilegalismos populares) será mais bem realizado escondendo-se sob uma função
social geral, na "cidade punitiva", ou investindo-se numa instituição coercitiva, no local fechado do "reformatório"?
Em todo caso, pode-se dizer que os encontramos no fim do século XVIII diante de três maneiras de organizar o
poder de punir. A primeira é a que ainda estava funcionando e se apoiava no velho direito monárquico. As outras se
referem, ambas, a uma concepção preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade
inteira; mas são muito diferentes entre si, ao nível dos dispositivos que esboçam. Esquematizando muito, poderíamos
dizer que, no direito monárquico, a punição é um cerimonial de soberania; ela utiliza as marcas rituais da vingança que
aplica sobre o corpo do condenado; e estende sob os olhos dos espectadores um efeito de terror ainda mais intenso
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por ser descontínuo, irregular e sempre acima de suas próprias leis, a presença física do soberano e de seu poder. No
projeto dos juristas reformadores, a punição é um processo para requalificar os indivíduos como sujeitos de direito;
utiliza, não marcas, mas sinais, conjuntos codificados de representações, cuja circulação deve ser realizada o mais
rapidamente possível pela cena do castigo, e a aceitação deve ser a mais universal possível. Enfim no projeto de
instituição carcerária que se elabora, a punição é uma técnica de coerção dos indivíduos; ela utiliza processos de
treinamento do corpo - não sinais - com os traços que deixa, sob a forma de hábitos, no comportamento; e ela supõe a
implantação de um poder específico de gestão da pena. O soberano e sua força, o corpo social, o aparelho administrativo.
A marca, o sinal, o traço. A cerimónia, a representação, o exercício. O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de
requalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata. O corpo que é supliciado, a alma cujas representações são
manipuladas, o corpo que é treinado; temos aí três séries de elementos que caracterizam os três dispositivos que se
defrontam na última metade do século XVIII. Não podemos reduzi-los nem a teorias de direito (se bem que eles lhes
sejam paralelos) nem identificá-los a aparelhos ou a instituições (se bem que se apoiem sobre estes), nem fazê-los derivar
de escolhas morais (se bem que nelas encontrem eles suas justificações). São modalidades de acordo com as quais se
exerce o poder de punir. Três tecnologias de poder.
O problema é então o seguinte: como é possível que o terceiro se tenha finalmente imposto? Como o modelo
coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público,
coletivo? Por que o exercício físico da punição (e que não é o suplício) substituiu, com a prisão que é seu suporte
institucional, o jogo social dos sinais de castigo, e da festa bastarda que os fazia circular?
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NOTAS
CAPITULO I
1. É assim que a chancelaria em 1789 resume a posição geral dos cahiers de doléances quanto aos suplícios. V.E.
Selligman, La Justice sous Ia Révolution, t. l, 1901, e A. Desjardin, Lês Cahiers dês Etats généraux et Ia justice
criminelle, 1883, p. 13-20.
2. Cahiers de doléances, cadernos dos delegados aos Estados Gerais de 1789 em que se registravam seus pedidos (N.T.).
3. J. Petion de Villeneuve, Discurso na Constituinte. Archives parlementaires, t. XXVI, p. 641.
4. A. Boucher d'Argis, Observations sur lês lois criminelles, 1781, p. 125.
5. Lachèze, Discurso na Constituinte, 3 de junho de 1791, Archives Parlementaires, t. XXVI.
6. V. particularmente a polémica de Muyart de Vouglans contra Beccaria. Réfutation du Traité dês délits et dês peines,
1766.
7. P. Chaunu, Annales de Normandie, 1962, p. 236, e 1966, p. 107-108.
8. E. Lê Roy-Ladurie, in Contrepoint, 1973.
9. N.W. Mogensen: Aspects de Ia société augeronne aux XVIIe et XVIII* siècles, 1971. Tese datílografada, p. 326. O
autor mostra que, na região de Auge, os crimes de violência são quatro vezes menos numerosos nas vésperas da
Revolução que no fim do reinado de Luís XIV. De uma maneira geral os trabalhos dirigidos por Pierre Chaunu sobre a
criminalidade na Normandia demonstram esse aumento da fraude às custas da violência. V. Artigos de B. Boutelet, de J.
Cl. Gégot e V. Boucheron nos Annales de Normandie de 1962, 1966 e 1971. Para Paris, v. P. Petrovitch in Crime er
criminalité en France aux XVIIe et XVIIIe siècles, 1971. Mesmo fenómeno, parece, na Inglaterra; v. Ch. Hibbert, The
roots of evil, 1966, p. 72; e J. Tobias, Crime and industrial society, 1967, p. 37.
10. P. Chaunu, Annales de Normandie, 1971, p. 56.
11. Thomas Fowell Buxton, Parliamentary Debate, 1819, XXXIX.
12. E. Lê Roy-Ladurie, Contrepoint, 1973. O estudo de A. Farge, sobre o roubo de alimentos em Paris no século XVIII Lê
vol Paliments à Paris au XVIII6 siècle, 1974, confirma essa tendência: de 1750 a 1755, 5% das sentenças baseadas nisso
levam às galés, mas 15% de 1775 a 1790: "a severidade dos tribunais se acentua com o tempo... pesa uma ameaça sobre
os valores úteis à sociedade que se pretende organizada e respeitadora da propriedade" (p. 130-142).
13. G. Lê Trosne, Mémoires sur lês vagabonds, 1764, p. 4.
14. V, por exemplo, C. Dupaty, Mémoire justificatif pour trois hommes condamnés à Ia roue, 1786, p. 247.
15. Um dos presidentes da Câmara de Ia Tournelle, dirigindo-se ao rei, em 2 de agosto de 1768, citado in Arlette Farge, p.
66.
16. P. Chaunu, Anales de Normandie, 1966, p. 108.
17. A expressão é de N.W. Mogensen, loc. cit.
18. Archives parlementaires, t. XII, p. 344.
19. Sobre esse assunto pode-se consultar, entre outros, S. Linguet, Necessite d'une reforme dans 1'admi-nistrationde Ia
justice, 1764, ou A. Boucher d'Argis, Chaier d'un magistral, 1789.
20. A respeito dessa crítica sobre o "excesso de poder" e sua má distribuição no aparelho judiciário, v. particularmente C.
Dupaty, Lettres sur Ia procédure criminelle, 1788. P.L. de Lacretelle, Dissertation
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sur lê ministère public, in Discours sur lê préjugé dês peines infamantes, 1784. G. Target, L'Esprit dês cahiers presentes
aux Etats généraux, 1789.
21. Cf. N. Bergasse, a respeito do poder judiciário: "É preciso que, desprovido de qualquer atividade contra o regime
político do Estado, e não tendo nenhuma influência sobre as vontades que concorrem para formar esse regime ou para
mante-lo, ele disponha, para proteger todos os indivíduos e todos os direitos, de tal força que. todo-poderosa para
defender e socorrer, ela se torne absolutamente nula, logo que, mudando seu objetivo. se tenderá utilizá-la para oprimir"
(Rapport à Ia Constituante sur lê pouvoir judiciaire, 1789, p. 11-12).
22. Lê Trosne, Mémoire sur lês vagabonds, 1764, p. 4.
23. Y.-M. Bercé, Croquants et nupieds, 1974, p. 161.
24. Droit de vaine pâture: direito de levar o gado a pastar nos pastos naturais e não cercados dos outros, depois da
primeira colheita do feno (N.T.).
25. V.O. Festy, Lês délits ruraux et leur répression sous Ia Révolution et lê Consulat, 1956. M. Agulhon, La vie sociale en
Provence (1970).
26. P. Colquhoun, Traité sur Ia police de Londres, tradução de 1807. t. 1. Nas páginas 153-182 e 292-339, Colquhoun
expõe muito detalhadamente esses recursos.
27. Ibid., p. 297-298.
28. G. Lê Trosne, Mémoire sur lês vagabonds, 764, p. 8, 50, 54, 61-62.
29. G. Lê Trosne, Vues sur Ia justice criminelle, 1777, p. 31, 103-106.
30. J.-J. Rousseau, Contrai Social, livro II, cap. V. Deve-se notar que essas ideias de Rousseau foram usadas na
Constituinte por certos deputados que queriam manter um sistema de penas muito rigoroso. E curiosamente os princípios
do Contrat puderam servir para sustentar a velha correspondência de atrocidade entre crime e castigo. "A proteção devida
aos cidadãos exige que as penas sejam medidas de acordo com a atrocidade dos crimes e que não se sacrifique, em nome
da humanidade, a própria humanidade" (Mougins de Roquefort que cita a passagem em questão do Contrat Social,
Discurso na Constituinte, Archives Parlementaires, t. XXVI, p. 637).
31. Beccaria, Dês délits et dês peines, ed. 1856, p. 87.
32. P.L. de Lacretelle, Discours sur lê préjugé dês peines infamantes, 1784, p. 129.
33. Ibid., p. 131.
34. A. Duport, Discurso na Constituinte, 22 de dezembro de 1789, Archives parlementaires, t. X, p. 744. Poderíamos no
mesmo sentido citar os vários concursos propostos no fim do século XVIII pelas sociedades e academias científicas:
como fazer "que a suavidade das instruções e das penas se concilie com a certeza de um castigo pronto e exemplar e que a
sociedade civil encontre a maior segurança possível, para a liberdade e a humanidade" (Société économique de Berne,
1777). Marat respondeu com seu Plan de législation criminelle. Quais são os "meios de suavizar o rigor das leis penais na
França sem prejudicar a segurança pública" (Academia de Châlons-sur-Marne, 1780; os premiados foram Brissot e
Bernardi); "tenderá a extrema severidade das leis a diminuir o número e a enormidade dos crimes numa nação
depravada?" (Academia de Marselha, 1786; o premiado foi Eymar).
35. G. Target, Observations sur lê projet du Code penal, in Locré, La Législation de Ia France, t. XXIX,
p. 7-8. Encontrado numa forma invertida em Kant.
36. C.E. de Pastoret, Dês lois pénales, 1790, vol. II, p. 21.
37. G. Filangieri, La Science de Ia législation, trad. 1786, t. IV, p. 214.
38. Beccaria, Dês délits et dês peines, 1856, p. 87.
39. A. Barnave, Discurso na Constituinte: "A sociedade não vê nas punições que inflige o gozo bárbaro de fazer sofrer um
ser humano; vê nelas a precaução necessária para prevenir crimes semelhantes, para afastar da sociedade os males que
ameaçam atentar contra ela" (Archives parlementaires, t. XXVII, 6 jun. 1791, p. 9).
110 ▲
40. Beccaria, Traité dês délits et dês peines, p. 89.
41. Beccaria, Dês délits et dês peines, p. 87.
42. J.P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781, t. l, p. 24.
43. Beccaria, Dês délits et dês peines, p. 26.
44. Beccaria. ibid. V. também Brissot: "Se a misericórdia é justa, a lei é má; onde a legislação é boa, as misericórdias não
passam de crimes contra a lei" (Théorie dês lois criminelles, 1781, t. l, p. 200).
45. G. de Mably, De Ia législation, Ocuvres completes, 1789, t. IX, p. 327. V. também Vattel: "É menos a atrocidade das
penas qe a exatidão na exigência que retém todos no dever" (Lê Droit dês gens, 1768, p. 163).
46. A. Duport, Discurso na Constituinte, Archives parlementaires, p. 45, t. XXI.
47. G. de Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, 1789, t. IX, p. 348.
48. G. Seigneux de Correvon, Essai sur Pusage de Ia torture, 1768, p. 49.
49. P. Risi, Observations de jurisprudence criminelle, trad. 1758, p. 53.
50. Sobre esse tema ver, entre outros, S. Linguer, Necessite d'une reforme de l'administration de Ia justice criminelle,
1764, p. 8.
51. P.-L. de Lacretelle, Discours sur lês peines infamamantes, 1784, p. 144.
52. J.-P. Marat, Plan de législation criminelle, 1780, p. 34.
53. Sobre o caráter não individualizante da casuística, ver P. Cariou, Lês Idéalités casuistiques (tese datilografia).
54. P.L. de Lacretelle, Réflexions sur Ia législation pénale, in Discours sur lês peines infamantes, 1784, p. 351-352.
55. Contrariamente ao que disseram Carnot ou F. Helie e Chauveau, a reincidência era muito claramente sancionada em
bom número de leis no Antigo Regime. A ordenação de 1549 declara que o malfeitor que recomeça é "um ser execrável.
infame, eminentemente pernicioso, à coisa pública"; as reincidências de blasfémia, de roubo, de vadiagem, etc., eram
passíveis de penas especiais.
56. Lê Peletier de Saínt-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 321-322. No ano seguinte, Belart pronuncia o que
pode ser considerada a primeira defesa por um crime passional. É o caso Gras. v. Annales du barreau moderne, 1823, t.
III, p. 34.
57. J.M. Servan, Discours sur l'administration de Ia justice criminelle, 1767, p. 35.
CAPÍTULO II
1. Beccaria, Dês délits et dês peines, ed. de 1856, p. 119.
2. Ihid.
3. J.-P. Marat, Plan de législation criminelle, 1780, p. 33.
4. F.M. Vermeil, Essai sur lês reformes à faire dans notre législation criminelle, 1781, p. 68-145. Cf. também Ch. E.
Dufriche de Valazé, Dês lois pénales, 1784, p. 349.
5. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI. p. 321-322.
6. Beccaria, Dês délits et dês peines, 1856, p. 114.
7. Ibid., p. 135.
8. Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, vol. IX, p. 246.
9. J.-P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781, vol. I, p. 258.
10. P.L. de Lacretelle, Réflexions sur Ia législation pénale, in Discours sur lês peines infamantes, 1784, p. 361.
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11. Beccaria. Dês délits et dês peines, p. 113.
12. G.E. Pastoret, Dês lois pénales, 1790, vol. I, p. 49.
13. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI. Os autores que renunciam à pena de morte prevêem
algumas penas definitivas: J.P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781, p. 29-30. Ch. E. Dufriche de Valazé, Dês lois
pénales, 1784, p. 344: prisão perpétua para os que foram julgados "irremediavelmente maus".
14. Lê Peletier de Saint-Fargeau, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 329-330.
15. Ch. E. Dufriche de Valazé, Dês lois pénales, 1784, p. 346.
16. A. Boucher d'Argis. Observations sur lês lois criminelles, 1781, p. 139.
17. Ver L. Masson, La rcvolution pénale en 1791, p. 139. Contra o trabalho penal objetava-se entretanto que ele implicava
no recurso à violência (Lê Peletier) ou na profanação do caráter sagrado do trabalho (Duport). Rabaud Saint-Etienne
chama a atenção para a expressão "trabalhos forçados" em oposição a "trabalhos livres que pertencem exclusivamente aos
homens livres", Archives parlementaires, t. XXVI, p. 710s.
18. J.M. Servan, Discourssur 1'administration de Ia justice criminelle, 1767, p. 35-36.
19. Dufau, Discurso à Constituinte, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 688.
20. Ibid., p. 329-330.
21. S. Bexon, Code de süreté publique, 1807, 2a parte, p. 24-25. Tratava-se de um projeto apresentado ao rei da Baviera.
22. J.-P. Brissot, Thérie dês lois criminelles, 1781.
23. Archives parlementaires, t. XXVI, p. 322.
24. J.M. Servan, Discours sur 1'administration de Ia justice criminelle, 1767, p. 37.
25. F.M. Vermeil, Essai sur lês reformes àfairedans notre législation criminelle, 1781, p. 148-149.
26. Cf. Archives parlementaires, t. XXVI, p. 712.
27. G. de Mably, De Ia législation, Oeuvres completes, 1789, t. IX, p. 338.
28. Ch. E. Dufriche de Valazé, Dês lois pénales, 1784, p. 344-345.
29. C.F.M. de Rémusat, Archives parlementaires, t. LXXII, l dez., 1831, p. 185.
30. Cf. E. Deca7.es, Relatório ao Rei sobre as prisões, in Lê Moniteur, 11 abr. 1819.
31. Ch. Chabroud, Archives parlementaires, t. XXVI, p. 618.
32. Catarina II. Instructions pour Ia commission chargce de dresser lê projet du nouveau code dês lois,
art. 67.
33. Uma parte desse Código foi traduzida na introdução à P. Colquhoun, Traité sur Ia police de Londres,
tradução francesa, 1807, vol. I, p. 84.
34. Cf. por exemplo Coquillc, Coutume du Nivernais.
35. G. du Rousseaud de Ia Combe, Traité dês matières criminelles, 1741, p. 3.
36. F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. Ill, p. 1095. Encontramos entretanto em Serpillon a ideia de que o rigor da prisão
é um começo de pena.
37. É assim que se devem compreender os numerosos regulamentos referentes às prisões e que tratam do rigor dos
carcereiros, da segurança dos locais e da impossibilidade dos prisioneiros se comunicarem. Por exemplo, a decisão do
parlamento de Dijon de 21 de setembro de 1706. Cf. também F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. III, p. 601-647.
38. É o que determina a declaração de 4 de março de 1724 sobre as reincidências de roubo ou a de 18 de julho de 1724 a
respeito da vadiagem. Um rapazinho, que não tivesse idade para ir para as galés, ficava
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numa casa de detenção até o momento em que podia ser enviado para lá, às vezes para purgar a totalidade da pena. Cf.
Crime et criminalité en France sous 1'Ancien Regime, 1971, p. 266s.
39. F. Serpillon, Code criminei, 1767, t. III, p. 1095.
40. J.P. Brissot, Théorie dês lois criminelles, 1781,1.1, p. 173.
41. Paris intra muros (Nobreza) citado in A. Desjardin, Lês cahiers de doléance et Ia justice criminelle,
p. 477.
42. Langres, Trois Ordres, citado ibid., p. 483.
43. Briey, "Tiers Etat", citado ibid., p. 484. Cf. P. Goubert e M. Denis, Lês Français ont Ia parole, 1964, p. 203.
Encontram-se também nos Cahiers pedidos para a manutenção de casas de detenção que as famílias pudessem utilizar.
44. Cf. Thorsten Sellin, Pioneering in Penology, 1944, que dá um estudo exaustivo do Rasphuis e do Spinhuis de
Amsterdam. Podemos deixar de lado um outro "modelo" frequentemente citado no séeulo XVIII. É o proposto por
Mabillon nas Réflexions sur lês prisions dês ordres religieux, reeditado em 1845. Parece que esse texto foi exumado no
século XIX no momento em que os católicos disputavam com os protestantes o lugar que estes haviam tomado no
movimento da filantropia e em certas repartições. O opúsculo de Mabillon, que parece ter ficado pouco conhecido e sem
influência, mostraria que "o primeiro pensamento do sistema penitenciário americano" é um "pensamento totalmente
monástico e francês, a despeito do que se possa ter dito para lhe atribuir uma origem genebrina ou pensilvaniana" (L.
Faucher).
45. Vilan XIV, Memoire sur lês moyens de corriger lês malfaiteurs, 1773, p. 64; esta memória, que é ligada à fundação da
casa de força de Gand, permaneceu inédita até 1841. A frequência das penas de banimento acentuava ainda as relações
entre crime e vadiagem. Em 1771, os Estados de Flandres constatavam que "as penas de banimento editadas contra os
mendigos permanecem sem efeito, já que os Estados se enviam reciprocamente os indivíduos que acham perniciosos em
seu território. Resulta disso que um mendigo assim mandado de um lugar para o outro terminará sendo enforcado,
enquanto que se houvesse sido acostumado ao trabalho não chegaria a esse mau caminho" (L. Stoobant, in Annales de Ia
Société d'histoirc de Gand, t. III, 1898, p. 228. Cf. figura n° 15.
46. Vilan XIV, Memoire, p. 68.
47. Ibid., p. 107.
48. Ibid., p. 102-103.
49. J. Hanway, The Defects of Police, 1775.
50. Preâmbulo do Bill de 1779, citado por Julius, Leçonssurles prisons, trad. francesa 1831, vol. I, p. 299.
51. Os quakers com toda certeza também conheciam o Rasphuis e o Spinhuis de Amsterdam. Cf. T. Sellin, Pioneering in
Penology, p. 109-110. De qualquer modo a prisão de Walnut Street se situava na continuação da Almhouse aberta em
1767 e da legislação penal que os quakers haviam querido impor apesar da administração inglesa.
52. G. de La Rochefoucauld-Liancourt, Dês prisons de Philadelphie, 1796, p. 9.
53. J. Turnbull, Visite à Ia prison de Philadelphie, trad. francesa, 1797, p. 15-16.
54. Caleb Lownes, in N.K. Teeters, Cradle of Penitentiary, 1955, p. 49.
55. Sobre as desordens provocadas por essa lei, cf. B. Rush, An Inquiry Into the Effects of Public Punishment, 1787, p. 5-
9, e Roberts Vaux, Notices, p. 45. Deve-se notar que no relatório de J.-L. Siegel, que inspirara o Rasphuis de Amsterdam,
era previsto que as penas não seriam proclamadas publicamente, que os prisioneiros seriam levados à casa de correção à
noite, que os guardiães se comprometeriam sob juramento a não lhes revelar a identidade e não seria permitida nenhuma
visita (T. Sellin), Pioneering in Penology, p. 27-28).
56. Primeiro relatório dos inspetores de Walnut Street, citado por Teeters, p. 53-54.
57. J. Turnbull, Visite à Ia prison de Philadelphie, trad. 1797, p. 27.
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58. B. Rush, que foi um dos inspetores, nota o seguinte depois de urna visita a Walnut Street: "Cuidados morais:
pregação, leitura de bons livros, limpeza das roupas e dos quartos, banhos; fala-se em voz baixa, pouco vinho, o mínimo
de fumo, pouca conversa obscena ou profana. Trabalho constante: horta bem cuidada; está bonita: l .200 cabeças de
repolho". In N.K. Teeters, The cradle of penitentiary, 1935, p. 50.
59. Minutes of the Board, 16 de junho de 1797, citado in N.K. Teeters, op. cit., p. 59.
60. W. Blackstone, Commentaire sur lê Code criminei d'Angleterre, trad. francesa, 1776, p. 19.
61. W. Bradford, An Inquiry How Far thc Punishment of Death Is Necessary in Pennsylvania, 1793, p. 3.
62. B. Rush, An Inquiry into the Effects of Public Punishments, 1787, p. 14. Esta ideia de um aparelho para transformar já
se encontra em Hanway no projeto de um "reformatório": "A ideia de hospital e a de malfeitor são incompatíveis; mas
tentemos fazer da prisão um reformatório (reformatory) autêntico e eficaz, em vez de que seja como as outras uma escola
de vício" (Defects of Police, p. 52).
63. B. Rush, An Inquiry into thc Effects of Public Punishments, 1787, p. 13.
64. Cf. as críticas que Rush fazia aos espetáculos punitivos, particularmente aos que imaginara Dufriche de Valazé, An
Inquiry into the Effects or Public Punishments, 1787, p. 5-9.
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Terceira Parte
DISCIPLINA
CAPÍTULO I
OS CORPOS DÓCEIS
Eis como ainda no início do século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. O soldado é antes de tudo alguém
que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu
corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas -
essencialmente lutando - as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de
uma retórica corporal da honra:
Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício são a atitude viva e alerta, a cabeça direita, o estômago
levantado, os ombros largos, os braços longos, os dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas, as pernas finas e os
pés secos, pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: [tornado lanceiro, o soldado] deverá ao marchar
tomar a cadência do passos para ter o máximo de graça e gravidade que for possível, pois a Lança é uma arma honrada e
merece ser levada com um porte grave e audaz.(1)
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo
inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada
percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em
silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi "expulso o camponês" e lhe foi dada a "fisionomia de soldado".(2)
Os recrutas são habituados a
manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e
encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os
calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços
para fora, sem afastá-los do corpo... ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com
ousadia aqueles diante de quem eles passam... a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os
pés... enfim a marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para foram...(3)
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente
sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo - ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece,
responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homem-máquina foi escrito simultaneamente
em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos,
os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por
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um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou
corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de
funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. "O
Homem-máquina" de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do
adestramento, no centro dos quais reina a noção de "docilidade" que une ao corpc analisável o corpo manipulável. É dócil
um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos
autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo: eram também bonecos políticos, modelos
reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos
longos exercícios.
Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira
vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está
preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas
entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa,
grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma
coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal
sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento
ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais
sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade enfim:
implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se
exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos
que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas". Muitos processos disciplinares
existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer
dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa
relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos
de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação
constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu
"capricho". Diferentes da vassalidade que é
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uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que
sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das "disciplinas" de tipo
monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a
outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das
disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna
tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho
sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano
entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma "anatomia política", que é também
igualmente uma "mecânica do poder", está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a
eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que
ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de
sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.
A "invenção" dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma descoberta súbita. Mas como uma
multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se
repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em
convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios,
muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos
reestruturam a organização militar. Circularam às vezes muito rápido de um ponto a outro (entre o exército e as escolas
técnicas ou os colégios e liceus), às vezes lentamente e de maneira mais discreta (militarização insidiosa das grandes
oficinas). A cada vez, ou quase, impuseram-se para responder a exigências de conjuntura: aqui uma inovação industrial, lá
a recrudescência de certas doenças epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias daPrússia. O que não impede que
se inscrevam, no total, nas transformações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas.
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Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular.
Mas de localizar apenas numa série de exemplos algumas das técnicas essenciais que, de uma a outra, se generalizaram
mais facilmente. Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um
certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova "microfísica" do poder; e porque não cessaram,
desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro.
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente
suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles
entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descrevê-los implicará na
demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução;
recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto de
grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante, quanto da atenta "malevolência" que de
tudo se alimenta. A disciplina é uma anatomia política do detalhe.
Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe:
Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque
ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não
basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras.(4)
Dessa "arte de talhar pedras" haveria uma longa história a ser escrita -história da racionalização utilitária do detalhe
na contabilidade moral e no controle político. A era clássica não a inaugurou; ela a acelerou, mudou sua escala, deu-lhe
instrumentos precisos, e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição
das características mais tênues dos seres naturais. Em todo caso, o "detalhe" era já há muito tempo uma categoria da
teologia e do ascetismo: todo detalhe é importante, pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe, e
nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares. Nessa grande tradição da eminência do
detalhe viriam se localizar, sem dificuldade, todas as meticulosidades da educação cristã, da pedagogia escolar ou militar,
de todas as formas, finalmente, de treinamento. Para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum
detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer
apanhá-lo. Característico, esse hino às "pequenas coisas" e à sua eterna importância, cantado por Jean-Baptiste de La
Salle, em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs. A mística do cotidiano aí se associa à
disciplina do minúsculo.
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Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas. É um pensamento bem consolador para uma alma como a minha,
pouco indicada para as grandes ações, pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode, por um progresso insensível,
elevar-nos à mais eminente santidade: porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes... Pequenas coisas, meu Deus,
infelizmente dirá alguém, que podemos fazer de grande para Vós, criaturas fracas e mortais que somos. Pequenas coisas:
se as grandes se apresentassem, praticá-las-íamos? Não as creríamos acima de nossas forças? Pequenas coisas: e se Deus
as aceita e quer recebê-las como grandes? Pequenas coisas; acaso já as experimentamos? acaso as julgamos pela
experiência? Pequenas coisas; somos então culpados, se, vendo-as como tais, as recusamos? Pequenas coisas; são elas
entretanto que, com o tempo, formaram grandes santos! Sim, pequenas coisas mas grandes móveis, grandes sentimentos,
grande fervor, grande ardor, e em conseqüência grandes méritos, grandes tesouros, grandes recompensas.(5)
A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo
darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade
econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito. E uma História do Detalhe no século XVIII, colocada
sob o signo de Jean-Baptiste de La Salle, esbarrando em Leibniz e Buffon, passando por Frederico II, atravessando a
pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, deveria chegar ao homem que sonhara no fim do século ser um novo
Newton, não mais aquele das imensidões do céu ou das massas planetárias, mas dos "pequenos corpos", dos pequenos
movimentos, das pequenas ações; ao homem que respondeu a Monge ("Só havia um mundo a ser descoberto"):
Que ouvi eu? Mas o mundo dos detalhes, quem jamais pensou neste ou naquele? Desde meus quinze anos, eu
acreditava nele. Cuidei disso então, e essa lembrança vive em mim, como uma idéia fixa que nunca me abandonará... Esse
outro mundo é o mais importante de todos os que me orgulhei de descobrir: de pensar nisso, dói-me a alma.(6)
Ele não o descobriu; mas sabemos que empreendeu organizá-lo, e quis distribuir em torno de si um dispositivo de
poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que governava; pretendia, com a rigorosa
disciplina que fazia reinar, "abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe".(7)
Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para
controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um
corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem
do humanismo moderno.(8)
A ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES
A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. Para isso, utiliza diversas técnicas.
121 ▲
1) A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si
mesmo. Local protegido da monotonia disciplinar. Houve o grande "encarceramento" dos vagabundos e dos miseráveis;
houve outros mais discretos, mas insidiosos e eficientes.
Colégios: o modelo do convento se impõe pouco a pouco; o internato aparece como o regime de educação senão o
mais freqüente, pelo menos o mais perfeito; torna-se obrigatório em Louis-le-Grand quando, depois da partida dos
jesuítas, fez-se um colégio-modelo.(9)
Quartéis: é preciso fixar o exército, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem e as violências; acalmar os
habitantes que suportam mal as tropas de passagem; evitar os conflitos com as autoridades civis; fazer cessar as
deserções; controlar as despesas. A ordenação de 1719 prescreve a construção de várias centenas de quartéis, imitando os
já organizados no sul do país; o encarceramento neles será estrito:
O conjunto será fechado e cercado por uma muralha de dez pés de altura que rodeará os ditos pavilhões, a trinta pés
de distância de todos os lados - e isto para manter as tropas em ordem e em disciplina e que o oficial esteja em condições
de responder por ela.(10)
Em 1745, havia quartéis em 320 cidades aproximadamente; e estimava-se mais ou menos em 200.000 homens a
capacidade total dos quartéis em 1775.(11) Ao lado das oficinas espalhadas criam-se também grandes espaços para as
indústrias, homogêneos e bem delimitados: as manufaturas reunidas primeiro, depois as fábricas, na segunda metade do
século XVIII (as forjas da Chaussade ocupam toda a península de Medina, entre Nièvre e Loire; para instalar a fábrica de
Indret em 1777, Wilkinson, à custa de aterros e diques, cria uma ilha no Loire; Toufait constrói Lê Creusot no vale de La
Charbonnière que ele remodela e instala na própria fábrica alojamentos operários); é uma mudança de escala, é também
um novo tipo de controle. A fábrica parece claramente um convento, uma fortaleza, uma cidade fechada; o guardião "só
abrirá as portas à entrada dos operários, e depois que houver soado o sino que anuncia o reinicio do trabalho"; quinze
minutos depois, ninguém mais terá o direito de entrar; no fim do dia, os chefes de oficina devem entregar as chaves ao
guarda suíço da fábrica que então abre as portas.(12) É porque, à medida que se concentram as forças de produção, o
importante é tirar delas o máximo de vantagens e neutralizar seus inconvenientes (roubos, interrupção do trabalho,
agitações e "cabalas"); de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho:
A ordem e a polícia que se deve manter exigem que todos os operários sejam reunidos sob o mesmo teto, a fim de
que aquele dos sócios que está encarregado da direção da fábrica possa prevenir e remediar os abusos que poderiam se
introduzir entre os operários e impedir desde o início que progridam.(13)
2) Mas o princípio de "clausura" não é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos disciplinares.
Estes trabalham o espaço de maneira
122 ▲
muito mais flexível e mais fina. E em primeiro lugar segundo o princípio da localização imediata ou do
qitadriculamento. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos;
decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a
se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições
indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa;
tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e
como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o
comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para
conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.
E ainda aí ela encontra um velho procedimento arquitetural e religioso: a cela dos conventos. Mesmo se os
compartimentos que ele atribui se tornam puramente ideais, o espaço das disciplinas é sempre no fundo, celular. Solidão
necessária do corpo e da alma, dizia um certo ascetismo: eles devem, ao menos por momentos, se defrontar a sós com a
tentação e talvez com a severidade de Deus.
O sono é a imagem da morte, o dormitório é a imagem do sepulcro... embora os dormitórios sejam comuns, os leitos
entretanto estão arrumados de tal modo e se fecham tão exatamente por meio de cortinas que as moças podem se levantar
e se deitar sem se verem.(14)
Mas isso ainda não passa de uma forma muito tosca.
3) A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a
arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só à
necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. O processo aparece
claramente nos hospitais, principalmente nos hospitais militares e marítimos. Na França, parece que Rochefort serviu de
experiência e de modelo. Um porto, e um porto militar, é, com circuitos de mercadorias, de homens alistados por bem ou
à força, de marinheiros embarcando e desembarcando, de doenças e de epidemias, um lugar de deserção, de contrabando,
de contágio: encruzilhada de misturas perigosas, cruzamento de circulações proibidas. O hospital marítimo deve então
cuidar, mas por isso mesmo deve ser um filtro, um dispositivo que afixa e quadrícula; tem que realizar uma apropriação
sobre toda essa mobilidade e esse formigar humano, decompondo a confusão da ilegalidade e do mal. A vigilância médica
das doenças e dos contágios é aí solidária de toda uma série de outros controles: militar sobre os desertores, fiscal sobre as
mercadorias, administrativo sobre os remédios, as rações, os desaparecimentos, as curas, as mortes, as simulações.
123 ▲
Donde a necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor. As primeiras medidas tomadas em Rochefort se
referiam às coisas mais que aos homens, às mercadorias preciosas mais que aos doentes. As distribuições da vigilância
fiscal e econômica precedem as técnicas de observação médica: localização dos medicamentos em caixas fechadas,
registro de sua utilização; um pouco mais tarde, é estabelecido um sistema para verificar o número real de doentes, sua
identidade, as unidades de onde procedem; depois regulamentam-se suas idas e vindas, são obrigados a ficar em suas
salas; a cada leito é preso o nome de quem se encontra nele; todo indivíduo tratado é inscrito num registro que o médico
deve consultar durante a visita; mais tarde virão o isolamento dos contagiosos, os leitos separados. Pouco a pouco um
espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os
sintomas, as vidas e as mortes; constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas. Nasce
da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico.
Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento individualizante se complica.
Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição
sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias. É preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação
espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos "postos". A esse princípio obedece
a manufatura de Oberkampf em Jouy. Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo de
operações: para os impressores, os encaixadores, os coloristas, as pinceladoras, os gravadores, os tintureiros. O maior dos
edifícios, construído em 1791, por Toussaint Barre, tem cento e dez metros de comprimento e três andares. O térreo é
reservado, essencialmente, à impressão em bloco; contém 132 mesas dispostas em duas fileiras ao longo da sala com 88
janelas: cada impressor trabalha a uma mesa, com seu "puxador", encarregado de preparar e espalhar as tintas. Ao todo
264 pessoas. Na extremidade de cada mesa, uma espécie de cabide sobre o qual o operário coloca para secar a tela que ele
acabou de imprimir. Percorrendo-se o corredor central da oficina, é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo
geral e individual; constatar a presença, a aplicação do operário, a qualidade de seu trabalho; comparar os operários entre
si, classificá-los segundo sua habilidade e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios da fabricação. Todas essas
seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem(16); a produção se divide e o processo de
trabalho se articula por um lado segundo suas fases, estágios ou operações elementares, e por outro, segundo os
indivíduos que o efetuam, os corpos singulares que a ele são aplicados: cada variável dessa força - vigor, rapidez,
habilidade, constância -pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e transmi-
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tida a quem é o agente particular dela. Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares,
a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais. Sob a divisão do processo de produção ao mesmo tempo
que ela, encontramos, no nascimento da grande indústria, a decomposição individualizante da força de trabalho; as
repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra.
4) Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela
distância que o separa dos outros. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local
(unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam
uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de
dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os
implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações.
Vejamos o exemplo da "classe". Nos colégios dos jesuítas, encontrava-se ainda uma organização ao mesmo tempo
binária e maciça: as classes, que podiam ter até duzentos ou trezentos alunos, eram divididas em grupos de dez; cada um
desses grupos, com seu decurião, era colocado em um campo, o romano ou o cartaginês; a cada decúria correspondia uma
decúria adversa. A forma geral era a da guerra e da rivalidade; o trabalho, o aprendizado, a classificação eram feitos sob a
forma de justa, pela defrontação dos dois exércitos; a participação de cada aluno entrava nesse duelo geral; ele
assegurava, por seu lado, a vitória ou as derrotas de um campo; e os alunos determinavam um lugar que correspondia à
função de cada um e a seu valor de combatente no grupo unitário de sua decúria.(17) Podemos notar aliás que essa
comédia romana permitia associar aos exercícios binários da rivalidade uma disposição espacial inspirada na legião, com
suas fileiras, hierarquia e vigilância piramidal. Não esquecer que de um modo geral o modelo romano, na época das
Luzes, desempenhou um duplo papel; em seu aspecto republicano, era a própria instituição da liberdade; em seu aspecto
militar, era o esquema ideal da disciplina. A Roma do século XVIII e da Revolução é a do Senado e da legião, do Fórum e
dos campos militares. Até o Império, a referência romana veiculou, de maneira ambígua, o ideal jurídico da cidadania e a
técnica dos processos disciplinares. Em todo caso, o que havia de estritamente disciplinar na fábula antiga
permanentemente representada nos colégios jesuítas superou o que havia de justa e de guerra em mímica. Pouco a pouco -
mas principalmente depois de 1762 - o espaço escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe
de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. A ordenação por fileiras, no
século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar:
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filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova;
colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas
depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E
nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento,
ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia
do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de
valores ou dos méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por
intervalos alinhados.
A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu
ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem
vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada
um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço
escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. J.-B. de La Salle
imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série de distinções:
segundo o nível de avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, segundo seu temperamento melhor ou pior, segundo
sua maior ou menor aplicação, segundo sua limpeza, e segundo a fortuna dos pais. Então, a sala de aula formaria um
grande quadro único, com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente "classificador" do professor:
Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que
todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão
colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o
meio da sala... Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o
consentimento do inspetor das escolas. [Será preciso fazer com que] aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos
fiquem separados dos que são limpos e não os têm; que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem
comportados e ajuizados, que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos.(18)
As disciplinas, organizando as "celas", os "lugares" e as "fileiras" criam espaços complexos: ao mesmo tempo
arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos
individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos,
mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de
edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas,
hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de "quadros vivos" que
126 ▲
transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. A constituição de "quadros" foi
um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arramar jardins de plantas e de
animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação
das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de
enriquecimento; inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constituir um registro geral e permanente
das forças armadas; repartir os doentes, dividir com cuidado e espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das
doenças: outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes - distribuição e análise, controle e inteligibilidade
- são solidários. O quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de
organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma "ordem". Como
o chefe militar de que falava o naturalista Guilbert, o médico, o economista fica
cego pela imensidão, atordoado pela multidão... as inúmeras combinações que resultam da multiplicidade dos
objetos, tantas atenções reunidas constituem um peso acima de suas forças. A ciência da guerra moderna, ao se
aperfeiçoar, ao se aproximar dos verdadeiros princípios, poderia se tornar mais simples e menos difícil; [os exércitos] com
táticas simples, análogas, flexíveis a todos os movimentos... seriam mais fáceis de mexer e de conduzir.(19)
Tática, ordenamento espacial dos homens; taxinomia, espaço disciplinar dos seres naturais; quadro económico,
movimento regulamentado das riquezas.
Mas o quadro não tem a mesma função nesses diversos registros. Na ordem da economia, permite a medida das
quantidades e a análise dos movimentos. Sob a forma da taxinomia, tem por função caracterizar (e em consequência
reduzir as singularidades individuais) e constituir classes (portanto excluir as considerações de número). Mas sob a forma
de repartição disciplinar, a colocação em quadro tem por função, ao contrário, tratar a multiplicidade por si mesma,
distribuí-la e dela tirar o maior número possível de efeitos. Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do
caráter à categoria, a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo. Ela permite ao mesmo tempo
a caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada. Ela é a condição
primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que
poderíamos chamar "celular".
O CONTROLE DA ATIVIDADE
1) O horário: é uma velha herança. As comunidades monásticas haviam sem dúvida sugerido seu modelo estrito. Ele
se difundiria rapidamente. Seus
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três grandes processos - estabelecer as cesuras, obrigar a ocupações determinadas, regulamentar os ciclos de repetição -
muito cedo foram encontrados nos colégios, nas oficinas, nos hospitais. Dentro dos antigos esquemas, as novas disciplinas
não tiveram dificuldade para se abrigar; as casas de educação e os estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a
regularidade dos conventos de que muitas vezes eram anexos. O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo
uma postura religiosa; no século XVII, o regulamento das grandes manufaturas precisava os exercícios que deviam
escandir o trabalho:
Todas as pessoas..., chegando a seu ofício de manhã, antes de trabalhar começarão lavando as mãos, oferecerão seu
trabalho a Deus, farão o sinal da cruz e começarão a trabalhar".(20).
mas ainda no século XIX, quando se quiser utilizar populações rurais na indústria, será necessário apelar a
congregações, para acostumá-las ao trabalho em oficinas; os operários são enquadrados em "fábricas-conventos". A
grande disciplina militar formou-se, nos exércitos protestantes de Maurício de Orange e de Gustavo Adolfo, através de
uma rítmica do tempo escandida pêlos exercícios de piedade; a vida no exército deve ter, dizia Boussanelle bem mais
tarde, algumas "das perfeições do próprio claustro".(21) Durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de
disciplinas: eram os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares. Mas esses processos de
regularização temporal que elas herdam as disciplinas os modificam. Afinando-os primeiro. Começa-se a contar por
quartos de hora, minutos e segundos. No exército, é claro: Guibert mandou proceder sistematicamente a cronome-tragens
de tiro de que Vauban tivera a ideia. Nas escolas elementares, a divisão do tempo torna-se cada vez mais esmiuçante; as
atividades são cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente:
À última pancada do relógio, um aluno baterá o sino, e, ao primeiro toque, todos os alunos se porão de joelhos, com
os braços cruzados e os olhos baixos. Terminada a oração, o professor dará um sinal para os alunos se levantarem, um
segundo para saudarem Cristo, e o terceiro para se sentarem.(22)
No começo do século XIX, serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do monitor,
8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim
do ditado, 9,12 segunda lousa, etc.(23) A extensão progressiva dos assalariados acarreta por seu lado um quadriculamento
cerrado do tempo:
Se acontecer que os operários cheguem mais tarde que em quarto de hora depois que tocar a campanhia...(24);
aquele companheiro que for chamado durante o trabalho e que perder mais de cinco minutos...; aquele que não estiver em
seu trabalho na hora precisa...(25)
Mas procura-se também garantir a qualidade do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais,
anulação de tudo o que possa perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil:
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É expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira, fazer
qualquer brincadeira, comer, dormir, contar histórias e comédias(26); [e mesmo durante a interrupção para a refeição],
não será permitido contar histórias, aventuras ou outras conversações que distraiam os operários de seu trabalho; é
expressamente proibido a qualquer operário, e sob qualquer pretexto que seja, introduzir vinho na fábrica e beber nas
oficinas.(27)
O tempo medido e pago deve ser também urn tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e
durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a
regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. Mas não é isso o mais novo. Outros modos de proceder são
mais característicos das disciplinas.
2) A elaboração temporal do ato: vejamos duas maneiras de controlar a marcha de uma tropa. Começo do século
XVII:
Acostumar os soldados a marchar por fila ou em batalhão, a marchar na cadência do tambor. E, para isso, começar
com o pé direito a fim de que toda a tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo tempo.(28)
Metade do século XVIII, quatro tipos de passo:
O comprimento do pequeno passo será de um pé, o do passo comum, do passo dobrado e do passo de estrada de dois
pés, medidos ao todo de um calcanhar ao outro; quanto à duração, a do pequeno passo e do passo comum serão de um
segundo, durante o qual se farão dois passos dobrados; a duração do passo de estrada será de um pouco mais de um
segundo. O passo obliquo será feito no mesmo espaço de um segundo; terá no máximo 18 polegadas de um calcanhar ao
outro... O passo comum será executado mantendo-se a cabeça alta e o corpo direito, conservando-se o equilíbrio
sucessivamente sobre uma única perna, e levando a outra à frente, a perna esticada, a ponta do pé um pouco voltada para
fora e baixa para aflorar sem afetaçao o terreno sobre o qual se deve marchar e colocar o pé na terra, de maneira que cada
parte se apoie ao mesmo tempo sem bater contra a terra.(29)
Entre essas duas prescrições, um novo conjunto de obrigações é imposto, outro grau de precisão na decomposição
dos gestos e dos movimentos, outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais.
O que é definido pela ordenação de 1766 não é um horário - um quadro geral para uma atividade; é mais que um
ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior; é um "programa"; ele realiza a elaboração do próprio ato; controla do
interior seu desenrolar e suas fases. Passamos de uma forma de injunção que media ou escandia os gestos a uma trama
que os obriga e sustenta ao longo de todo o seu encadeamento. Define-se uma espécie de esquema anátomo-cronológico
do comportamento. O ato é decomposto em seus elementos; é definida a posição do corpo, dos membros, das
articulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma amplitude, uma duração; é prescrita sua ordem de
sucessão. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder.
3) Donde o corpo e o gesto postos em correlação: o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou
impor uma série de gestos definidos;
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impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez. No bom
emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a
formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa
caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica - uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do
pé à extremidade do indicador. Deve-se
manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, de maneira que,
estando o cotovelo pousado na mesa, o queixo possa ser apoiado na mão, a menos que o alcance da vista não o permita; a
perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que a direita, sob a mesa. Deve-se deixar uma distância de dois dedos
entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com mais rapidez, mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de
apoiar o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo, do cotovelo até à mão, deve ser colocada sobre a mesa. O
braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos, e sair aproximadamente cinco dedos da mesa, sobre a qual
deve apoiar ligeiramente. O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever, e a corrigirá seja
por sinal seja de outra maneira, quando dela se afastarem.(30)
Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente.
4) A articulação corpo-objeto: a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que
manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro.
Leve a arma à frente. Em três tempos. Levanta-se o fuzil com a mão direita, aproximando-o do corpo para mantê-lo
perpendicularmente em frente ao joelho direito, a ponta do cano à altura do olho, apanhando-o batendo com a mão
esquerda, o braço esticado colado ao corpo à altura do cinturão. No segundo, traz-se o fuzil com a mão esquerda diante de
si, o cano para dentro entre os dois olhos, a prumo, a mão direita o apanha pelo punho, com o braço esticado, o guardamato
apoiado sobre o primeiro dedo, a mão esquerda à altura da alça de mira, o polegar estendido ao longo do cano contra
a soleira. No terceiro, a mão esquerda deixa o fuzil e cai ao longo da coxa, a mão direita o eleva, com o fecho para fora e
em frente ao peito, com o braço direito meio esticado, o cotovelo colado ao corpo, o polegar estendido contra o fecho,
apoiado ao primeiro parafuso, o cão apoiado sobre o primeiro dedo, o cano a prumo.(31)
Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do corpo. Consiste em uma
decomposição do gesto global em duas séries paralelas: a dos elementos do corpo que serão postos em jogo (mão direita,
mão esquerda, diversos dedos da mão, joelho, olho, cotovelo etc.), a dos elementos do objeto manipulado (cano, alça de
mira, cão, parafuso etc.); coloca-os depois em correlação uns com os outros segundo um certo número de gestos simples
(apoiar, dobrar); finalmente fixa a ordem canónica em que cada uma dessas correlações ocupa um lugar determinado. A
esta sintaxe forçada é que os teóricos militares do século XVIII chamavam "manobra". A receita tradicional dá lugar a
prescrições explícitas e coercitivas. Sobre toda a superfície de contato entre o corpo e o objeto que o manipula, o poder
vem se introduzir, amarra-os um ao outro. Constitui um complexo corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-
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máquina. Estamos inteiramente longe daquelas formas de sujeição que só pediam ao corpo sinais ou produtos, formas de
expressão ou o resultado de um trabalho. A regulamentação imposta pelo poder é ao mesmo tempo a lei de construção da
operação. E assim aparece esse caráter do poder disciplinar: tem uma função menos de retirada que de síntese, menos de
extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção.
5) A utilização exaustiva: o princípio que estava subjacente ao horário em sua forma tradicional era essencialmente
negativo; princípio da não-ociosidade; é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pêlos homens; o
horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo - erro moral e desonestidade econômica. Já a disciplina organiza
uma economia positiva; coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo: mais exaustão que
emprego; importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis. O que
significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento,
fosse inesgotável; ou como se, pelo menos, por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para
um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência. E a essa técnica mesma que era usada nos
famosos regulamentos da infantaria prussiana que a Europa inteira imitou depois das vitórias de Frederico II(32): quanto
mais se decompõe o tempo, quanto mais se multiplicam suas subdivisões, quanto melhor o desarticulamos desdobrando
seus elementos internos sob um olhar que os controla, mais então pode-se acelerar uma operação, ou pelo menos regulá-la
segundo um rendimento ótimo de velocidade; daí essa regulamentação do tempo da ação que foi tão importante no
exército e que devia sê-lo para toda a tecnologia da atividade humana: o regulamento prussiano de 1743 previa 6 tempos
para pôr a arma ao pé, 4 para estendê-la, 13 para colocá-la ao contrário sobre o ombro, etc. Por outros meios, a escola
mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar a utilização do tempo; sua organização permitia desviar o
caráter linear e sucessivo do ensino do mestre; regulava o contraponto de operações feitas, ao mesmo tempo, por diversos
grupos de alunos sob a direção dos monitores e dos adjuntos, de maneira que cada instante que passava era povoado de
atividades múltiplas, mas ordenadas; e por outro lado o ritmo imposto por sinais, apitos, comandos impunha a todos
normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma
virtude.(33)
A única finalidade dessas ordens é... acostumar as crianças a executar rapidamente e bem as mesmas operações,
diminuir tanto quanto possível pela celeridade a perda de tempo acarretada pela passagem de uma operação a outra.(34)
Ora, através dessa técnica de sujeição, um novo objeto vai-se compondo e lentamente substituindo o corpo
mecânico - o corpo composto de sólidos e comandado por movimentos, cuja imagem tanto povoara os sonhos dos que
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buscavam a perfeição disciplinar. Esse novo objeto é o corpo natural, portador de forças e sede de algo durável; é o corpo
suscetível de operações especificadas, que têm sua ordem, seu tempo, suas condições internas, seus elementos
constituintes. O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber. Corpo do
exercício mais que da física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pêlos espíritos animais;
corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual por essa mesma razão se anunciará um certo número
de exigências de natureza e de limitações funcionais. É ele que Guibert descobre na crítica que faz das manobras
excessivamente artificiais. No exercício que lhe é imposto e ao qual resiste, o corpo desenha suas correlações essenciais e
rejeita espontaneamente o incompatível:
Entremos na maior parte de nossas escolas de exercício, veremos todos aqueles infelizes soldados em atitudes coagidas e
forçadas, veremos todos os seus músculos em contração, sua circulação sanguínea interrompia... Estudemos a intenção da
natureza e a construção do corpo humano, e encontraremos a posição e a compostura que ela prescreve claramente que se
deve dar ao soldado. A cabeça deve ficar direita, solta dos ombros, perpendicularmente colocada entre eles. Não deve
ficar voltada nem à esquerda nem à direita, porque, considerando a correspondência que existe entre as vértebras do
pescoço e a omoplata a que estão ligadas, nenhuma delas pode agir circularmente sem arrastar de leve do mesmo lado em
que ela age uma das ramificações do ombro, e não estando mais o corpo colocado direito, o soldado não pode mais
marchar reto para frente nem servir de ponto de alinhamento... Como o osso da anca indicado pela Ordenação como sendo
o ponto contra o qual se deve apoiar o bico da coronha não está igualmente situado em todos os homens, o fuzil para
alguns deve ser levado mais à direita, para outros mais à esquerda. Pela mesma razão de desigualdade de estrutura, o
guarda-mato pode estar mais ou menos apertado contra o corpo, dependendo de ter um homem a parte externa do ombro
mais ou menos carnuda, etc.(35)
Vimos como os processos da repartição disciplinar tinham seu lugar entre as técnicas contemporâneas de classificação e
de enquadramento, e como eles aí introduziam o problema específico dos indivíduos e da multiplicidade. Do mesmo
modo, os controles disciplinares da atividade encontram lugar em todas as pesquisas, teóricas ou práticas, sobre a
máquina natural dos corpos; mas elas começaram a descobrir nisso processos específicos; o comportamento e suas
exigências orgânicas vão pouco a pouco substituir a simples física do movimento. O corpo, do qual se requer que seja
dócil até em suas mínimas operações, opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo. O poder
disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e "celular", mas também natural e "orgânica".
A ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES
Em 1667, o edito que criava a fábrica dos Gobelins previa a organização de uma escola. Sessenta crianças
bolsistas deviam ser escolhidas pelo superintendente dos prédios reais, confiados durante certo tempo a um mestre que
devia
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realizar "sua educação e instrução", depois colocados para aprendizagem junto aos diversos mestres tapeceiros da
manufatura (estes recebiam por isso uma indenização retirada da bolsa dos alunos); depois de seis anos de aprendizagem,
quatro anos de serviço e uma prova qualificatória, tinham direito de "erguer e manter loja" em qualquer cidade do reino.
Encontramos aí as características próprias da aprendizagem corporativa: relação de dependência ao mesmo tempo
individual e total quanto ao mestre; duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória, mas que
não se decompõe segundo um programa preciso; troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve
trazer seus serviços, sua ajuda e muitas vezes uma retribuição. A forma da domesticidade se mistura a uma transferência
de conhecimento.(36) Em 1737, um edito organiza uma escola de desenho para os aprendizes dos Gobelins; ela não se
destina a substituir a formação com os mestres operários, mas a completá-la. Ora, ela implica numa organização do tempo
totalmente diversa. Duas horas por dia, menos aos domingos e festas, os alunos se reúnem na escola. É feita a chamada
segundo uma lista afixada à parede; anotam-se as ausências num registro. A escola é dividida em três classes. A primeira
para os que não têm nenhuma noção de desenho; mandam-nos copiar modelos, mais difíceis ou menos difíceis, segundo
as aptidões de cada um. A segunda "para os que já têm alguns princípios" ou que passaram pela primeira classe; devem
reproduzir quadros "à primeira vista e sem tornar-lhes o traço", mas considerando só o desenho. Na terceira classe,
aprendem as cores, fazem pastel, iniciam-se na teoria e na prática do tingimento. Regularmente, os alunos fazem deveres
individuais: cada um desses exercícios, marcado com o nome do autor e a data da execução, é depositado nas mãos do
professor; os melhores são recompensados; reunidos no fim do ano e comparados entre eles, permitem estabelecer os
progressos, o valor atual, o lugar relativo de cada aluno; determinam-se então os que podem passar para a classe superior.
Um livro geral mantido pêlos professores e seus adjuntos deve registrar dia por dia o comportamento dos alunos e tudo o
que se passa na escola; é periodicamente submetido a um inspetor.(37)
A escola dos Gobelins é apenas o exemplo de um fenômeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de
uma nova técnica para a apropriação do tempo das existências singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e
das forças; para realizar uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o
movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, em seus corpos,
em suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle? Como organizar
durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser
também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.
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E isto por quatro processos, que a organização militar mostra com toda a clareza.
1°) Dividir a duração em segmentos, sucessivos ou paralelos, dos quais cada um deve chegar a um termo específico.
Por exemplo: isolar o tempo de formação e o período da prática; não misturar a instrução dos recrutas e o exercício dos
veteranos; abrir escolas militares distintas do serviço armado (em 1764, criação da Escola de Paris, em 1776 criação das
doze escolas de província); recrutares soldados profissionais desde muito jovens, tomar crianças, "fazê-los adotar pela
pátria, prepará-los em escolas particulares"(38); ensinar sucessivamente a postura, depois a marcha, depois o manejo das
armas, depois o tiro, e só passar a uma atividade se a anterior estiver completamente adquirida: "É um dos erros principais
mostrar a um soldado todos os exercícios ao mesmo tempo"(39); enfim decompor o tempo em seqüências, separadas e
ajustadas.
2°) Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico - sucessão de elementos tão simples quanto possível,
combinando-se segundo uma complexidade crescente. O que supõe que a instrução abandone o princípio da repetição
analógica. No século XVI, o exercício militar consistia principalmente em uma pantomima de todo ou de parte do
combate, e em fazer crescer globalmente a habilidade ou a força do soldado.(40) No século XVIII a instrução do
"manual" segue o princípio do "elementar" e não mais do "exemplar": gestos simples — posição dos dedos, flexão da
perna, movimento dos braços — que são no máximo os componentes de base para os comportamentos úteis, e que além
disso efetuam um treinamento geral da força, da habilidade, da docilidade.
3°) Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova, que tem a tríplice função de
indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade com a dos
outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo. Quando os sargentos, cabos, etc.,
encarregados de instruir os outros, acharem que puseram alguém em condições de passará primeira classe, eles o
apresentarão primeiro aos oficiais da companhia que o examinarão com atenção; se ainda não o acharem suficientemente
treinado, recusarão admiti-lo; se ao contrário o homem apresentado lhes parecer em condições de ser recebido, os ditos
oficiais o proporão eles mesmos ao comandante do regimento, que verá se o julga a propósito, e fará os oficiais majores o
examinarem. As faltas mais leves bastarão para recusá-lo, e ninguém poderá passar da segunda classe para a primeira sem
ter feito esse primeiro exame.(41)
4°) Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antiguidade, seu posto, os
exercícios que lhe convêm; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios
específicos. Ao termo de cada série, começam outras, formam uma ramificação e se subdividem por sua vez. De maneira
que cada indivíduo se encontra preso
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numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria. Polifonia disciplinar dos exercícios:
Os soldados da segunda classe serão treinados todas as manhãs pêlos sargentos, cabos, anspeçadas, soldados de
primeira classe... Os soldados de primeira classe serão treinados todos os domingos pelo chefe da esquadra...; os cabos e
os anspeçadas todas as terças-feiras à tarde pêlos sargentos de sua companhia, e estes, aos 2, 12 e 22 de cada mês também
à tarde pêlos oficiais majores.(42)
Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica - especializando o tempo de formação e
destacando-o do tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos estágios separados uns dos outros por
provas graduadas; determinando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma determinada fase, e que
comportam exercícios de dificuldade crescente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram
essas séries. O tempo "iniciático" da formação tradicional (tempo global, controlado só pelo mestre, sancionado por uma
única prova) foi substituído pelo tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas. Forma-se toda uma
pedagogia analítica, muito minuciosa (decompõe até aos mais simples elementos a matéria de ensino, hierarquiza no
maior número possível de graus cada fase do progresso) e também muito precoce em sua história (antecipa largamente as
análises genéticas dos ideólogos dos quais aparece como o modelo técnico). Demia, bem no começo do século XVIII,
queria que o aprendizado da leitura fosse dividido em sete níveis: o primeiro para os que aprendem a conhecer as letras, o
segundo para os que aprendem a soletrar, o terceiro para os que aprendem a juntar as sílabas, para formar palavras, o
quarto para os que lêem o latim por frase ou de pontuação em pontuação, o quinto para os que começam a ler o francês, o
sexto para os mais capazes na leitura, o sétimo para os que lêem os manuscritos. Mas, caso os alunos fossem numerosos,
seria necessário introduzir ainda subdivisões; a primeira classe devia comportar quatro grupos: um para os que aprendem
as "letras simples"; outro para os que aprendem as letras misturadas; um terceiro para os que aprendem as letras
abreviadas (Â, ê...); um último para os que aprendem as letras duplas (ff, ss, tt, st). A segunda classe seria dividida em três
grupos: para os que "contam alto cada letra antes de soletrar a sílaba D.O., DO"; para os "que soletram as sílabas mais
difíceis, como bant, brand, spinx, etc."(43) Cada patamar na combinatória dos elementos deve-se inserir numa grande
série temporal, que é ao mesmo tempo uma marcha natural do espírito e um código para os processos educativos.
A colocação em "série" das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder:
possibilidade de um controle detalhado e de uma intervenção pontual (de diferenciação, de correção, de castigo, de elimi-
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nação) a cada momento do tempo; possibilidade de caracterizar, portanto de utilizar os indivíduos de acordo com o nível
que têm nas séries que percorrem; possibilidade de acumular o tempo e a atividade, de encontrá-los totalizados e
utilizáveis num resultado último, que é a capacidade final de um indivíduo. Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar
com isso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o
controle dele e garante sua utilização.
Os procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros, e que se
orienta para um ponto terminal e estável. Em suma, um tempo "evolutivo". Ora, é preciso lembrar que no mesmo
momento as técnicas administrativas e econômicas de controle manifestavam um tempo social de tipo serial, orientado e
cumulativo: descoberta de uma evolução em termos de "progresso". As técnicas disciplinares, por sua vez, fazem emergir
séries individuais: descoberta de uma evolução em termos de "gênese". Progresso das sociedades, gênese dos indivíduos,
essas duas grandes "descobertas" do século XVIII são talvez correlatas das novas técnicas de poder e, mais precisamente,
de uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por sedação, por síntese e totalização. Uma
macro e uma microfísica do poder permitiram, não certamente a invenção da história (já há um bom tempo ela não
precisava mais ser inventada), mas a integração de uma dimensão temporal, unitária, cumulativa no exercício dos
controles e na prática das dominações. A historicidade "evolutiva", assim como se constitui então -e tão profundamente
que ainda hoje é para muitos uma evidência - está ligada a um modo de funcionamento do poder, da mesma forma que a
"história-rememoração" das crônicas, das genealogias, das proezas, dos reinos e dos atos esteve muito tempo ligada a uma
outra modalidade do poder. Com as novas técnicas de sujeição, a "dinâmica" das evoluções contínuas tende a substituir a
"dinástica" dos acontecimentos solenes.
Em todo caso, o pequeno continuum temporal da individualidade-gênese parece ser mesmo, como a
individualidade-célula ou a individualidade-organismo, um efeito e um objeto da disciplina. E no centro dessa seriação do
tempo encontramos um procedimento que é, para ela, o que era a colocação em "quadro" para a repartição dos indivíduos
ou o recorte celular: ou ainda, o que era a "manobra" para a economia das atividades e o controle orgânico. O ponto em
apreço é o "exercício", a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas
sempre graduadas. Dirigindo o comportamento para um estado terminal, o exercício permite uma perpétua caracterização
do indivíduo seja em relação a esse termo, seja em relação aos outros indivíduos, seja em relação a um tipo de percurso.
Assim, realiza, na forma da continuidade e da coerção, um crescimento, uma observação, uma
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qualificação. Antes de tomar essa forma estritamente disciplinar, o exercício teve uma longa história: é encontrado nas
práticas militares, religiosas, universitárias - às vezes ritual de iniciação, cerimônia preparatória, ensaio teatral, prova. Sua
organização linear, continuamente progressiva, seu desenrolar genético ao longo do tempo têm, pelo menos no exército e
na escola, introdução tardia. E sem dúvida de origem religiosa. Em todo caso, a idéia de um "programa" escolar que
acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercícios de
complexidade crescente, apareceu primeiro, parece, num grupo religioso, os Irmãos da Vida Comum.(44) Fortemente
inspirados por Ruysbroeck e na mística renana, transpuseram à educação uma parte das técnicas espirituais - e não só à
educação dos clérigos, mas à dos magistrados e comerciantes: o tema da perfeição, em direção à qual o mestre exemplar
conduz, torna-se entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo professor; os exercícios cada vez mais
rigorosos propostos pela vida ascética tornam-se tarefas de complexidade crescente que marcam a aquisição progressiva
do saber e do bom comportamento; o esforço de toda a comunidade para a salvação torna-se o concurso coletivo e
permanente dos indivíduos que se classificam uns em relação aos outros. Foram talvez processos de vida e de salvação
comunitárias o primeiro núcleo de métodos destinados a produzir aptidões individualmente caracterizadas mas coletivamente
úteis.(45) Sob sua forma mística ou ascética, o exercício era uma maneira de ordenar o tempo aqui de baixo para a
conquista da salvação. Vai pouco a pouco, na história do Ocidente, inverter o sentido guardando algumas características:
serve para economizar o tempo da vida, para acumulá-lo de uma maneira útil, e para exercer o poder sobre os homens por
meio do tempo assim arrumado. O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da
duração, não culmina num mundo além; mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completar.
A COMPOSIÇÃO DAS FORÇAS
"Comecemos destruindo o antigo preconceito segundo o qual pensava-se aumentar a força de uma tropa
aumentando-lhe a profundidade. Todas as leis físicas sobre o movimento tornam-se quimeras quando queremos adaptá-las
à tática.(46)
Desde o fim do século XVII, o problema técnico da infantaria foi de libertar-se do modelo físico da massa. Armada
de lanças e mosquetões - lentos, imprecisos, que não permitiam ajustar um alvo e mirar - uma tropa era usada ou como
um projétil, ou como um muro ou uma fortaleza: "a temível infantaria do exército da Espanha"; a repartição dos soldados
nessa massa era feita principalmente segundo sua antiguidade e valentia; no centro, encarregados de fazer peso e volume,
de dar densidade ao corpo, os mais novatos; na frente, nos
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ângulos ou pêlos lados, os soldados mais corajosos ou reputados os mais hábeis. Passou-se no decorrer da época clássica a
um jogo de articulações minuciosas. A unidade - regimento, batalhão, seção, mais tarde "divisão"(47) - torna-se uma
espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e
obter um resultado específico. As razões dessa mudança? Algumas são econômicas: tornar útil cada indivíduo e rentável a
formação, a manutenção, o armamento das tropas; dar a cada soldado, unidade preciosa, um máximo de eficiência. Mas
essas razões econômicas só puderam se tornar determinantes a partir de uma transformação técnica: a invenção do
fuzil(48): mais preciso, mais rápido que o mosquete, valorizava a habilidade do soldado; mais capaz de atingir um alvo
determinado, permitia explorar a potência de fogo ao nível individual; e inversamente fazia de cada soldado um alvo
possível, exigindo pela mesma razão maior mobilidade; e assim ocasionava o desaparecimento de uma técnica das massas
em proveito de uma arte que distribuía as unidades e os homens ao longo de linhas extensas, relativamente flexíveis e
móveis. Daí a necessidade de encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas, dos deslocamentos
de grupos ou de elementos isolados, das mudanças de posição, de passagem de uma disposição a outra; enfim, de inventar
uma maquinaria cujo princípio não seja mais a massa móvel ou imóvel, mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja
unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil(49); e, acima do próprio soldado, os gestos mínimos, os tempos
elementares de ação, os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos.
Mesmos problemas ao se constituir uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares
que a compõem:
Que o dia de trabalho combinado adquira essa produtividade superior multiplicando a potência mecânica do
trabalho, estendendo sua ação no espaço ou diminuindo o campo de produção em relação à sua escala, mobilizando nos
momentos críticos grandes quantidades de trabalho... a força específica do dia combinado, é uma força social do trabalho
ou uma força do trabalho social. Nasce da própria cooperação.(50)
Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender: construir uma máquina cujo efeito será elevado
ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe. A disciplina não é mais
simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um
aparelho eficiente. Essa exigência se traduz de várias maneiras.
1) O corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, mover, articular com outros. Sua coragem ou força
não são mais as variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a
boa ordem segundo as quais opera seus deslocamentos. O homem de tropa é
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antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser uma coragem ou uma honra. Caracterização do soldado por
Guibert:
Quando está sob as armas, ocupa dois pés em seu maior diâmetro, ou seja, tomando-o de um extremo ao outro, e
cerca de um pé em sua maior espessura, tomada do peito aos ombros, a que se deve acrescentar um pé de intervalo real
entre ele e o homem seguinte; o que dá dois pés em todos os sentidos por soldado e indica que uma tropa de infantaria em
batalha ocupa, seja numa frente seja em profundidade, tantos passos quantas filas tem.(51)
Redução funcional do corpo. Mas também inserção desse corpo-segmento em todo um conjunto com o qual se
articula. O soldado cujo corpo foi treinado para funcionar peça por peça para operações determinadas deve por sua vez
formar elemento num mecanismo de outro nível. Os soldados serão instruídos
um a um, depois dois a dois, depois em maior número... Será observado para o manejo das armas, quando os
soldados tiverem sido instruídos separadamente, fazê-los executá-lo dois a dois, e fazê-los trocar de lugar alternadamente
para que o da esquerda aprenda a se regular pelo da direita.(52)
O corpo se constitui como peça de uma máquina multissegmentar.
2) São também peças as várias séries cronológicas que a disciplina deve combinar para formar um tempo composto.
O tempo de uns deve-se ajustar ao tempo de outros de maneira que se possa extrair a máxima quantidade de forças de
cada um e combiná-la num resultado ótimo. Servan sonhava assim com um aparelho militar que cobriria todo o território
da nação e em que cada um estaria ocupado sem interrupção mas de maneira diferente segundo o segmento evolutivo, a
seqüência genética em que se encontrasse. A vida militar começaria na mais tenra idade, quando se ensinaria às crianças,
em "moradas militares", o ofício das armas; ela terminaria nessas mesmas moradas, quando os veteranos, até seu último
dia, ensinariam as crianças, mandariam os recrutas fazer manobras, presidiriam aos exercícios dos soldados, os
fiscalizariam quando executassem obras de interesse público, e enfim fariam reinar a ordem no país, enquanto a tropa se
batia nas fronteiras. Não há um só momento da vida de que não se possa extrair forças, desde que se saiba diferenciá-lo e
combiná-lo com outros. Da mesma maneira nas grandes oficinas apela-se para as crianças e os velhos; pois eles têm certas
capacidades elementares para as quais não é necessário utilizar operários que têm várias outras aptidões; além disso
constituem mão-de-obra barata; enfim, se trabalham, não são dependentes de ninguém:
A humanidade laboriosa, dizia um recebedor de impostos a respeito de uma empresa de Angers, pode encontrar
nessa manufatura, da idade de dez anos até à velhice, recursos contra a ociosidade e a miséria que é conseqüência
desta.(53)
Mas é sem dúvida no ensino primário que esse ajustamento das cronologias diferentes será mais útil. Do século
XVII até a introdução, no começo do XIX, do método Lancaster, o mecanismo complexo da escola mútua se cons-
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truirá uma engrenagem depois da outra: confiaram-se primeiro aos alunos mais velhos tarefas de simples fiscalização,
depois de controle do trabalho, em seguida, de ensino; e então no fim das contas, todo o tempo de todos os alunos estava
ocupado seja ensinando seja aprendendo. A escola torna-se um aparelho de aprender onde cada aluno, cada nível e cada
momento, se estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino. Um dos
grandes partidários da escola mútua dá a medida desse progresso:
Numa escola de 360 crianças, o professor que quisesse instruir cada aluno por sua vez durante uma sessão de três
horas só poderia dar meio minuto a cada um. Pelo novo método, todos os 360 alunos escrevem, lêem ou contam durante
duas horas e meia cada um.(54)
3) Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de comando. Toda a atividade do
indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza; a
ordem não tem que ser explicada, nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento
desejado. Do mestre de disciplina àquele que lhe é sujeito, a relação é de sinalização: o que importa não é compreender a
injunção, mas perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou menos artificial estabelecido
previamente. Colocar os corpos num pequeno mundo de sinais a cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória e
só uma: técnica do treinamento que
exclui despoticamente em tudo a menor representação, e o menor murmúrio; o soldado disciplinado começa a
obedecer ao que quer que lhe seja ordenado; sua obediência é pronta e cega; a aparência de indocilidade, o menor atraso
seria um crime.(55)
O treinamento das escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo
um silêncio total que só seria interrompido por sinais - sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou ainda aquele
pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; era chamado por excelência o "Sinal" e devia
significar em sua brevidade maquinal ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência.
O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dos escolares para o mestre e fazê-los
ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar. Assim, toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar
qualquer exercício, baterá uma vez. Um bom escolar, toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará ouvir a voz do mestre ou
antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome. Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel, dizendo com ele no
fundo de sua alma: Senhor, eis-me aqui.
O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles.
Feita a oração, o mestre dará uma pancada de sinal, olhando a criança que quer mandar ler, lhe fará sinal de
começar. Para fazer parar o que está lendo, dará uma pancada de sinal... Para fazer sinal ao que está lendo de se corrigir,
quando pronunciou mal uma letra, uma sílaba ou uma palavra, dará
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duas pancadas sucessivamente e seguidas. Se, após se ter corrigido, ele não recomeça na palavra que pronunciou mal,
porque leu várias depois dela, o mestre dará três pancadas sucessivamente uma em seguida da outra para lhe fazer sinal de
recuar de algumas palavras e continuará a fazer esse sinal, até o escolar chegar à sílaba ou à palavra que pronunciou
mal.(56)
A escola mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentos pelo sistema dos sinais a que se tem que
reagir imediatamente. Até as ordens verbais devem funcionar como sinalização:
Entrem em seus bancos. À palavra Entrem, as crianças colocam com ruído a mão direita sobre a mesa e ao mesmo
tempo passam a perna para dentro do banco; às palavras em seus bancos, eles passam a outra perna e se sentam diante das
lousas... Pegar-lousas, à palavra pegar, as crianças levam a mão direita ao barbante que serve para suspender a lousa ao
prego que está diante deles, e com a esquerda pegam a lousa pelo meio; à palavra lousas, eles a soltam e a colocam sobre
a mesa.(57)
Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade,
ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela
codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para
tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a
combinação das forças, organiza "táticas". A tática, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e
as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação
calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar. Nesse saber, os teóricos do século XVIII viam o
fundamento geral de toda a prática militar, desde o controle e o exercício dos corpos individuais, até à utilização das
forças específicas às multiplicidades mais complexas. Arquitetura, anatomia, mecânica, economia do corpo disciplinar;
aos olhos da maior parte dos militares, a tática não passa de um ramo da vasta ciência da guerra; aos meus, ela é a
base dessa ciência; ela é a própria ciência, pois ensina a constituir as tropas, a ordená-las, a movê-las, a mandá-las
combater; pois só ela pode completar o número e manejar a multidão; ela incluirá enfim o conhecimento dos homens, das
armas, das tensões, das circunstâncias, pois são todos esses conhecimentos reunidos que devem determinar esses
movimentos.(58) [Ou ainda]: Esse termo (tática)... dá a idéia da posição respectiva dos homens que compõem uma tropa,
das diversas tropas que compõem um exército, de seus movimentos e ações, das relações que têm entre si.(59)
É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política. Mas não se deve esquecer que a "política" foi
concebida como a continuação senão exata e diretamente da guerra, pelo menos do modelo militar como meio
fundamental para prevenir o distúrbio civil. A política, como técnica da paz e da ordem internas, procurou pôr em
funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa disciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento no
acampamento e nos campos, na manobra e no exercício. Nos grandes Estados do século XVIII, o exército garante a paz
civil sem dúvida porque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora, mas também porque é uma técnica e um saber
que
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podem projetar seu esquema sobre o corpo social. Se há uma série guerra-política que passa pela estratégia, há uma série
exército-política que passa pela tática. É a estratégia que permite compreender a guerra como uma maneira de conduzir a
guerra entre os Estados; é a tática que permite compreender o exército como um princípio para manter a ausência de
guerra na sociedade civil. A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militar segundo a qual as nações
defrontam suas forças econômicas e demográficas; mas viu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual
se exerce nos Estados o controle dos corpos e das forças individuais. "O" militar- a instituição militar, o personagem do
militar, a ciência militar, tão diferentes do que caracterizava antes o "homem de guerra" - se especifica, durante esse
período, no ponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado, a ordem e o silêncio obediente da paz por
outro. O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pêlos historiadores aos filósofos e juristas do século
XVIII; mas há também um sonho militar da sociedade; sua referência fundamental era não ao estado de natureza, mas às
engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não
aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral mas à docilidade
automática.
Dever-se-ia tornar a disciplina nacional [dizia Guibert].
O Estado que eu idealizo terá uma administração simples, sólida, fácil de governar. Parecerá com essas imensas
máquinas, que com molas pouco complicadas produzem grandes efeitos; a força desse Estado nascerá de sua força, sua
prosperidade de sua prosperidade. O tempo que destrói tudo aumentará sua potência. Ele desmentirá esse preconceito
vulgar que leva a imaginar que os impérios estão submetidos a uma lei imperiosa de decadência e ruína.(60)
O regime napoleônico não está longe e com ele essa forma de Estado que lhe subsistirá e que não se deve esquecer
que foi preparado por juristas mas também por soldados, conselheiros de Estado e oficiais baixos, homens de lei e homens
de acampamento. A referência romana que acompanha essa formação inclui claramente esse duplo índice: os cidadãos e
os legionários, a lei e a manobra. Enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo primitivo para a construção ou a
reconstrução do corpo social, os militares e com eles os técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção
individual e coletiva dos corpos.
142 ▲
CAPÍTULO II
OS RECURSOS
PARA O BOM ADESTRAMENTO
Walhausen, bem no início do século XVII, falava da "correta disciplina", como uma arte do "bom adestramento".(1)
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior "adestrar"; ou
sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligálas
para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está
submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e
suficientes. "Adestra" as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos
individuais - pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos
combinatórios. A disciplina "fabrica" indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo
tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio
excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia
calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da
soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores,
modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos. O aparelho judiciário não escapará a essa invasão, mal
secreta. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção
normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.
A VIGILÂNCIA HIERÁRQUICA
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que
permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre
quem se aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses "observatórios" da multiplicidade
humana para as quais a história
143 ▲
das ciências guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida
à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos
olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o
homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo.
Esses "observatórios" têm um modelo quase ideal: o acampamento militar. É a cidade apressada e artificial, que se
constrói e remodela quase à vontade; é o ápice de um poder que deve ter ainda mais intensidade, mas também mais
discrição, por se exercer sobre homens de armas. No acampamento perfeito, todo o poder seria exercido somente pelo
jogo de uma vigilância exata; e cada olhar seria uma peça no funcionamento global do poder. O velho e tradicional plano
quadrado foi consideravelmente afinado de acordo com inúmeros esquemas. Define-se exatamente a geometria das aléias,
o número e a distribuição das tendas, a orientação de suas entradas, a disposição das filas e das colunas; desenha-se a rede
dos olhares que se controlam uns aos outros:
Na praça d'armas, tiram-se cinco linhas, a primeira fica a 16 pés da segunda; as outras ficam a 8 pés uma da outra; e
a última fica a 8 pés dos tabardos. Os tabardos ficam a 10 pés das tendas dos oficiais inferiores, precisamente em frente ao
primeiro bastão. Uma rua de companhia tem 51 pés de largura... Todas as tendas ficam a dois pés umas das outras. As
tendas dos subalternos ficam em frente às ruelas de suas companhias. O bastão de trás fica a 8 pés da última tenda dos
soldados e a porta olha para a tenda dos capitães... As tendas dos capitães ficam levantadas em frente às ruas de suas
companhias. A porta olha para as próprias companhias.(2)
O acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral. Durante muito tempo
encontraremos no urbanismo, na construção das cidades operárias, dos hospitais, dos asilos, das prisões, das casas de
educação, esse modelo do acampamento ou pelo menos o princípio que o sustenta: o encaixamento espacial das
vigilâncias hierarquizadas. Princípio do "encastramento". O acampamento foi para a ciência pouco confessável das
vigilâncias o que a câmara escura foi para a grande ciência da ótica.
Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista
(fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior,
articulado e detalhado - para tornar visíveis os que nela se encontram; mais geralmente, a de uma arquitetura que seria um
operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento,
reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. As pedras podem tornar dócil e
conhecível. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento - do muro espesso, da porta sólida que
impedem de entrar ou de sair - começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens
e das
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transparências. Assim é que o hospital-edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de ação médica: deve
permitir que se possa observar bem os doentes, portanto, coordenar melhor os cuidados; a forma dos edifícios, pela
cuidadosa separação dos doentes, deve impedir os contágios; a ventilação que se faz circular em torno de cada leito deve
enfim evitar que os vapores deletérios se estagnem em volta do paciente, decompondo seus humores e multiplicando a
doença por seus efeitos imediatos. O hospital - aquele que se quer aparelhar na segunda metade do século, e para o qual se
fizeram tantos projetos depois do segundo incêndio do Hôtel-Dieu - não é mais simplesmente o teto onde se abrigavam a
miséria e a morte próxima; é, sem sua própria materialidade, um operador terapêutico.
Como a escola-edifício deve ser um operador de adestramento. Fora uma máquina pedagógica que Pâris-Duverney
concebera na Escola militar e até nos mínimos detalhes que ele impusera a Gabriel. Adestrar corpos vigorosos, imperativo
de saúde; obter oficiais competentes, imperativo de qualificação; formar militares obedientes, imperativo político;
prevenir a devassidão e a homossexualidade, imperativo de moralidade. Quádrupla razão para estabelecer separações
estanques entre os indivíduos, mas também aberturas para observação contínua. O próprio edifício da Escola devia ser um
aparelho de vigiar; os quartos eram repartidos ao longo de um corredor como uma série de pequenas celas; a intervalos
regulares, encontrava-se um alojamento de oficial, de maneira que
cada dezena de alunos tivesse um oficial à direita e à esquerda; [os alunos aí ficavam trancados durante toda a noite;
e Paris insistira para que fosse envidraçada] a parede de cada quarto do lado do corredor desde a altura de apoio até um ou
dois pés do teto. Além disso a vista dessas vidraças só pode ser agradável, ousamos dizer que é útil sob vários pontos de
vista, sem falar das razões de disciplina que podem determinar essa disposição.(3)
Nas salas de refeições, fora preparado
um estrado um pouco alto para colocar as mesas dos inspetores dos estudos, para que eles possam ver todas as
mesas dos alunos de suas divisões, durante as refeições;
haviam sido instaladas latrinas com meias-portas, para que o vigia para lá designado pudesse ver a cabeça e as
pernas dos alunos, mas com separações laterais suficientemente elevadas "para que os que lá estão não se possam ver".(4)
Escrúpulos infinitos de vigilância que a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra. Só os acharemos irrisórios
se esquecermos o papel dessa instrumentação, menor mas sem falha, na objetivação progressiva e no quadriculamento
cada vez mais detalhado dos comportamentos individuais. As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de
controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas
formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento. Nessas máquinas de observar,
como subdividir os
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olhares, como estabelecer entre eles escalas, comunicações? Como fazer para que, de sua multiplicidade calculada, resulte
um poder homogêneo e contínuo?
O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente. Um ponto central seria ao
mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho
perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem. Foi o que imaginara Ledoux ao
construir Arc-et-Senans: no centro dos edifícios dispostos em círculo e que se abriam todos para o interior, uma alta
construção devia acumular as funções administrativas de direção, policiais de vigilância, econômicas de controle e de
verificação, religiosas de encorajamento à obediência e ao trabalho; de lá viriam todas as ordens, lá seriam registradas
todas as atividades, percebidas e julgadas todas as faltas; e isso imediatamente, sem quase nenhum suporte a não ser uma
geometria exata. Entre todas as razões do prestígio que foi dado, na segunda metade do século XVIII, às arquiteturas
circulares(5), é preciso sem dúvida contar esta: elas exprimiam uma certa utopia política.
Mas o olhar disciplinar teve, de fato, necessidade de escala. Melhor que o círculo, a pirâmide podia atender a duas
exigências: ser bastante completa para formar uma rede sem lacuna - possibilidade em conseqüência de multiplicar seus
degraus, e de espalhá-los sobre toda a superfície a controlar; e entretanto ser bastante discreta para não pesar como uma
massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para ela um freio ou um obstáculo; integrar-se ao dispositivo
disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis. É preciso decompor suas instâncias, mas para
aumentar sua função produtora. Especificar a vigilância e torná-la funcional.
É o problema das grandes oficinas e das fábricas, onde se organiza um novo tipo de vigilância. É diferente do que se
realizava nos regimes das manufaturas do exterior pêlos inspetores, encarregados de fazer aplicar os regulamentos; tratase
agora de um controle intenso, contínuo; corre ao longo de todo o processo de trabalho; não se efetua - ou não só - sobre
a produção (natureza, quantidade de matérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades dos
produtos), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de fazê-lo, sua rapidez, seu
zelo, seu comportamento. Mas é também diferente do controle doméstico do mestre, presente ao lado dos operários e dos
aprendizes; pois é realizado por prepostos, fiscais, controladores e contramestres. À medida que o aparelho de produção
se torna mais importante e mais complexo, à medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho, as
tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função definida, mas deve fazer
parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em todo o seu comprimento. Um pessoal especializado torna-se
indispensável, constan-temente presente, e distinto dos operários:
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Na grande manufatura, tudo é feito ao toque da campainha, os operários são forçados e reprimidos. Os chefes,
acostumados a ter com eles um ar de superioridade e de comando, que realmente é necessário com a multidão, tratam-nos
duramente ou com desprezo; acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pela manufatura.(6)
Mas se os operários preferem o enquadramento de tipo corporativo a esse novo regime de vigilância, os patrões,
quanto a eles, reconhecem nisso um elemento indissociável do sistema da produção industrial, da propriedade privada e
do lucro. Em nível de fábrica, de grande forja ou de mina,
os objetos de despesa são tão multiplicados, que a menor infidelidade sobre cada objeto daria no total uma fraude
imensa, que não somente absorveria os lucros, mas levaria atonte dos capitais...; a mínima imperícia desapercebida e por
isso repetida cada dia pode se tornar funesta à empresa ao ponto de anulá-la em muito pouco tempo; [donde o fato que só
agentes, diretamente dependentes do proprietário, e designados só para esta tarefa poderão zelar] para que não haja um
tostão de despesa inútil, para que não haja um momento perdido no dia; seu papel será de vigiar os operários, visitar todas
as obras, instruir o comitê sobre todos os acontecimentos.(7)
A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no
aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar.(8)
Mesmo movimento na reorganização do ensino elementar; especificação da vigilância e integração à relação
pedagógica. O desenvolvimento das escolas paroquiais, o aumento de seu número de alunos, a inexistência de métodos
que permitissem regulamentar simultaneamente a atividade de toda uma turma, a desordem e a confusão que daí
provinham tornavam necessária a organização dos controles. Para ajudar o mestre, Batencour escolhe entre os melhores
alunos toda uma série de "oficiais", intendentes, observadores, monitores, repetidores, recitadores de orações, oficiais de
escrita, recebedores de tinta, capelães e visitadores. Os papéis assim definidos são de duas ordens: uns correspondem a
tarefas materiais (distribuir a tinta e o papel, dar as sobras aos pobres, ler textos espirituais nos dias de festa, etc.); outros
são da ordem da fiscalização:
Os "observadores" devem anotar quem sai do banco, quem conversa, quem não tem o terço ou o livro de orações,
quem se comporta mal na missa, quem comete alguma imodéstia, conversa ou grita na rua; os "admonitores" estão
encarregados de "tomar conta dos que falam ou fazem zunzum ao estudar as lições, dos que não escrevem ou brincam"; os
"visitadores" vão se informar, nas famílias, sobre os alunos que estiveram ausentes ou cometeram faltas graves. Quanto
aos "intendentes", fiscalizam todos os outros oficiais. Só os "repetidores" têm um papel pedagógico: têm que fazer os
alunos ler dois a dois, em voz baixa.(9)
Ora, algumas dezenas de anos mais tarde, Demia volta a uma hierarquia do mesmo tipo, mas as funções de
fiscalização agora são quase todas duplicadas por um papel pedagógico: um submestre ensina a segurar a pena, guia a
mão, corrige os erros e ao mesmo tempo "marca as faltas quando se discute"; outro submestre tem as mesmas tarefas na
classe de leitura; o intendente que controla os outros oficiais e zela pelo comportamento geral é também encarregado de
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"adequar os recém-chegados aos exercícios da escola"; os decuriões fazem recitar as lições e "marcam" os que não as
sabem.(10) Temos aí o esboço de uma instituição tipo escola mútua em que estão integrados no interior de um dispositivo
único três procedimentos: o ensino propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade
pedagógica, enfim uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está
inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é
inerente e multiplica sua eficiência.
A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes "invenções" técnicas do século
XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua importância às novas mecânicas de poder, que traz consigo. O poder
disciplinar, graças a ela, torna-se um sistema "integrado", ligado do interior à economia e aos fins do dispositivo onde é
exercido. Organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anónimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa
sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo
para cima e lateralmente; essa rede "sustenta" o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os
outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma
coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização
piramidal lhe dá um "chefe", é o aparelho inteiro que produz "poder" e distribui os indivíduos nesse campo permanente e
contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois
em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de
controlar; e absolutamente "discreto", pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio. A disciplina faz
"funcionar" um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações
pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, a "física" do poder, o domínio sobre o
corpo se efetuam segundo as leis da óticae de mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de
graus, e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos
"corporal" por ser mais sabiamente "físico".
A SANÇÃO NORMALIZADORA
1) No orfanato do cavaleiro Paulet, as sessões do tribunal que se reunia todas as manhãs davam lugar a um
cerimonial:
Encontramos todos os alunos em formação, alinhamento, imobilidade e silêncio perfeitos. O major, jovem da
nobreza de dezesseis anos, estava fora da fila, a espada na mão; à sua ordem, a tropa se abalou ao passo duplo para formar
o círculo. O conselho se reuniu no centro; cada oficial fez o
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relatório de sua tropa nas vinte e, quatro horas. Os acusados foram admitidos a se justificar; ouviram-se as testemunhas;
deliberou-se e, quando se chegou a um acordo, o major prestou contas em voz alta do número dos culpados, da natureza
dos delitos e dos castigos ordenados. A tropa em seguida desfilou na maior ordem.(11)
Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma
espécie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas particulares de sanção,
suas instâncias de julgamento. As disciplinas estabelecem uma "infra-penalidade"; quadriculam um espaço deixado vazio
pelas leis; qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua
relativa indiferença.
Ao entrar os companheiros deverão saudar-se reciprocamente; ...ao sair deverão guardar as mercadorias e
ferramentas que utilizaram e em época de serão apagar a lâmpada; é expressamente proibido divertir os companheiros
com gestos ou de outra maneira; [eles deverão] se comportar honesta e decentemente; [quem se ausentar por mais de
cinco minutos sem avisar o Sr. Oppenheim será] anotado por meio-dia; [e para que fique certo que nada será esquecido
nessa justiça criminal miúda, é proibido fazer] qualquer coisa que puder prejudicar o Sr. Oppenheim e seus
companheiros.(12)
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências,
interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria,
desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes "in-corretas", gestos não conformes, sujeira), da
sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis,
que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar
penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes
do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se
encontre preso numa universalidade punível-punidora.
Pela palavra punição, deve-se compreender tudo o que é capaz de fazer as crianças sentir a falta que cometeram,
tudo o que é capaz de humilhá-las, de confundi-las: ...uma certa frieza, uma certa indiferença, uma pergunta, uma
humilhação, uma destituição de posto.(13)
2) Mas a disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um modelo reduzido do tribunal. O
que pertence à penalidade disciplinar é a inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela, os
desvios. É passível de pena o campo indefinido do não-conforme: o soldado comete uma "falta" cada vez que não atinge o
nível requerido; a "falta" do aluno é, assim como um delito menor, uma inaptidão a cumprir suas tarefas. O regulamento
da infantaria prussiana impunha tratar com "todo o rigor possível" o soldado que não tivesse aprendido a manejar
corretamente o fuzil. Do mesmo modo,
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quando um escolar não tiver guardado o catecismo da véspera, poder-se-á obrigá-lo a aprender o daquele dia, sem
nenhum erro, e deverá repeti-lo no dia seguinte; ou será obrigado a ouvi-lo de pé ou de joelhos, ou com as mãos postas,
ou então lhe será imposta alguma outra penitência.
A ordem que os castigos disciplinares devem fazer respeitar é de natureza mista: é uma ordem "artificial", colocada
de maneira explícita por uma lei, um programa, um regulamento. Mas é também uma ordem, definida por processos
naturais e observáveis: a duração de um aprendizado, o tempo de um exercício, o nível de aptidão têm por referência uma
regularidade, que é também uma regra. As crianças das escolas cristãs nunca devem ser colocadas numa "lição" de que
ainda não são capazes, pois estariam correndo o perigo de não poder aprender nada; entretanto a duração de cada estágio é
fixada de maneira regulamentar e quem, no fim de três meses, não houver passado para a ordem superior deve ser
colocado, bem em evidência, no banco dos "ignorantes". A punição em regime disciplinar comporta uma dupla referência
jurídico-natural.
3) O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve portanto ser essencialmente corretivo. Ao lado das
punições copiadas ao modelo judiciário (multas, açoite, masmorra), os sistemas disciplinares privilegiam as punições que
são da ordem do exercício - aprendizado intensificado, multiplicado, muitas vezes repetido: o regulamento de 1766 para a
infantaria previa que os soldados de primeira classe "que mostrarem alguma negligência ou má vontade serão enviados
para a última classe", e só poderão voltar à primeira, depois de novos exercícios e um novo exame. Como dizia, por seu
lado, J.-B. de La Salle:
O castigo escrito é, de todas as penitências, a mais honesta para um mestre, a mais vantajosa e a que mais agrada aos
pais; [permite] tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos corrigindo-lhes os defeitos;
[àqueles, por exemplo], que não houverem escrito tudo o que deviam escrever, ou não se aplicarem para fazê-lo bem, se
poderá dar algum dever para escrever ou para decorar.(14)
A punição disciplinar é, pelo menos por uma boa parte, isomorfa à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei
ultrajada que sua repetição, sua insistência redobrada. De modo que o efeito corretivo que dela se espera apenas de uma
maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento; é diretamente obtido pela mecânica de um castigo. Castigar
é exercitar.
4) A punição, na disciplina, não passa de um elemento de um sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema
que se torna operante no processo de treinamento e de correção. O professor
deve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao contrário, deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes
que as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio
dos castigos; por isso será muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar de castigo, que ele ganhe, se puder, o
coração da criança, antes de aplicar-lhe o castigo.(15)
150 ▲
Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar.
Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do
mal; em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre pólo positivo
e pólo negativo; todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos. É possível,
além disso, estabelecer uma quantificação e uma economia traduzida em números. Uma contabilidade penal,
constantemente posta em dia, permite obter o balanço positivo de cada um. A "justiça" escolar levou muito longe esse
sistema, de que se encontram pelo menos os rudimentos no exército ou nas oficinas. Os irmãos das Escolas Cristãs
haviam organizado uma micro economia dos privilégios e dos castigos escritos:
Os privilégios servirão aos escolares para se isentarem das penitências que lhes serão impostas... Um escolar por
exemplo terá por castigo quatro ou cinco perguntas do catecismo para copiar; ele poderá se libertar dessa penitência
mediante alguns pontos de privilégios; o mestre anotará o número para cada pergunta... Valendo os privilégios um
número determinado de pontos, o mestre tem também outros de menor valor, que servirão como que de troco para os
primeiros. Uma criança, por exemplo, terá um castigo de que se poderá redimir com seis pontos; tem um privilégio de
dez; apresenta-o ao mestre que lhe devolve quatro pontos; e assim outros.(16)
E pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e das dívidas, graças ao cálculo permanente das
notas a mais ou a menos, os aparelhos disciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os "bons" e os "maus" indivíduos.
Através dessa micro economia de uma penalidade perpétua, opera-se uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos
próprios indivíduos, de sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor. A disciplina, ao sancionar os atos com
exatidão, avalia os indivíduos "com verdade"; a penalidade que ela põe em execução se integra no ciclo de conhecimento
dos indivíduos.
5) A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as
qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar. Funcionamento penal da ordenação e
caráter ordinal da sanção. A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e
lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição. Havia sido
aperfeiçoado na Escola Militar um sistema complexo de hierarquização "honorífica", em que as roupas traduziam essa
classificação aos olhos de todos, e castigos mais ou menos nobres ou vergonhosos estavam ligados, como marca de
privilégio ou de infâmia, às categorias assim distribuídas. Essa repartição classificatória e penal se efetua a intervalos
próximos por relatórios que os oficiais, os professores, seus adjuntos fazem, sem consideração de idade ou de posto, sobre
"as qualidades morais dos alunos" e sobre "seu comportamento universalmente reconhecido". A primeira classe, dita dos
"muito bons", se
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distingue por uma dragona de prata; sua honra é ser tratada como "uma tropa puramente militar"; militares serão portanto
as punições a que ela tem direito (as detenções e, nos casos graves, a prisão). A segunda classe, dos "bons", usa uma
dragona de seda cor de papoula e prata; são passíveis de prisão e detenção, e também da jaula e de se ajoelhar. A classe
dos "medíocres" tem direito a uma dragona de lã vermelha; às penas precedentes se acrescenta, se for o caso, o burel. A
última classe, a dos "maus", é marcada por uma dragona de lã parda: "os alunos desta classe serão submetidos a todas as
punições usuais no "Hotel" ou todas as que se julgar necessário introduzir, e até à masmorra escura". A isso se
acrescentou durante algum tempo a classe "vergonhosa" para a qual se prepararam regulamentos especiais "de maneira
que os que a compõem estarão sempre separados dos outros e vestidos de burel". Como só o mérito e o comportamento
devem decidir sobre o lugar do aluno, "os das duas últimas classes poderão se orgulhar de subir às primeiras e usar suas
marcas, quando, por testemunhos universais, se reconhecerá que se tornaram dignos disso pela mudança de seu
comportamento e seus progressos; e os das primeiras classes também descerão para as outras se relaxarem e se relatórios
reunidos e desvantajosos mostrarem que não merecem mais as distribuições e prerrogativas das primeiras classes...". A
classificação que pune deve tender a se extinguir. A "classe vergonhosa" só existe para desaparecer: "A fim de julgar a
espécie de conversão dos alunos da classe vergonhosa que nela se comportam bem", eles serão reintroduzidos nas outras
classes, suas roupas lhes serão devolvidas; mas ficarão com seus camaradas de infâmia durante as refeições e as
recreações; aí permanecerão se não continuarem a se comportar bem; daí "sairão absolutamente, se derem satisfação tanto
nessa classe quanto nessa divisão". Duplo efeito conseqüentemente dessa penalidade hierarquizante: distribuir os alunos
segundo suas aptidões e seu comportamento, portanto segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola;
exercer sobre eles uma pressão constante, para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos
juntos "à subordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as
partes da disciplina". Para que, todos, se pareçam.
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a
repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos
singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma
regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto -que se deve fazer
funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos
quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos.
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Fazer funcionar, através dessa medida "valorizadora", a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o
limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal (a "classe vergonhosa" da
Escola Militar). A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições
disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.
Opõe-se então termo por termo a uma penalidade judiciária que tem a função essencial de tomar por referência, não
um conjunto de fenômenos observáveis, mas um corpo de leis e de textos que é preciso memorizar; não diferenciar
indivíduos, mas especificar atos num certo número de categorias gerais; não hierarquizar mas fazer funcionar pura e
simplesmente a oposição binária do permitido e do proibido; não homogeneizar, mas realizar a partilha, adquirida de uma
vez por todas, da condenação. Os dispositivos disciplinares produziram uma "penalidade da norma" que é irredutível em
seus princípios e seu funcionamento à penalidade tradicional da lei. O pequeno tribunal que parece ter sede permanente
nos edifícios da disciplina, e às vezes toma a forma teatral do grande aparelho judiciário, não deve iludir: ele não conduz,
a não ser por algumas continuidades formais, os mecanismos da justiça criminal até à trama da existência cotidiana; ou ao
menos não é isso o essencial; as disciplinas inventaram - apoiando-se aliás sobre uma série de processos muito antigos
-um novo funcionamento punitivo, e é este que pouco a pouco investiu o grande aparelho exterior que parecia reproduzir
modesta ou ironicamente. O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna revela não
se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou
ao humanismo que ela traria consigo; ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses
novos mecanismos de sanção normalizadora.
Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos antes que desde o
século XVIII ele veio unir-se a outros poderes obrigando-os a novas delimitações; o da Lei, o da Palavra e do Texto, o da
Tradição. O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação
estandardizada e a criação das escolas normais; estabelece-se no esforço para organizar um corpo médico e um quadro
hospitalar da nação capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde; estabelece-se na regularização dos processos e dos
produtos industriais.(18) Tal como a vigilância e junto com ela, a regulamentação é um dos grandes instrumentos de
poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo
menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas
que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização
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e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza,
permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas
às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois
dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a
gradação das diferenças individuais.
O EXAME
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante,
uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual
eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente
ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o
estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos
como objetos e a objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame
todo o seu brilho visível. Mais uma inovação da era clássica que os historiadores deixaram na sombra. Faz-se a história
das experiências com cegos de nascença, meninos-lobo ou com a hipnose. Mas quem fará a história mais geral, mais
vaga, mais determinante também, do "exame" - de seus rituais, de seus métodos, de seus personagens e seus papéis, de
seus jogos de perguntas e respostas, de seus sistemas de notas e de classificação? Pois nessa técnica delicada estão
comprometidos todo um campo de saber, todo um tipo de poder. Fala-se muitas vezes da ideologia que as "ciências"
humanas pressupõem, de maneira discreta ou declarada. Mas sua própria tecnologia, esse pequeno esquema operatório
que tem tal difusão (da psiquiatria à pedagogia, do diagnóstico das doenças à contratação de mão-de-obra), esse processo
tão familiar do exame, não põe em funcionamento, dentro de um só mecanismo, relações de poder que permitem obter e
constituir saber? O investimento político não se faz simplesmente ao nível da consciência, das representações e no que
julgamos saber, mas ao nível daquilo que torna possível algum saber.
Uma das condições essenciais para a liberação epistemológica da medicina no fim do século XVIII foi a
organização do hospital como aparelho de "examinar". O ritual da visita é uma de suas formas mais evidentes. No século
XVII, o médico, vindo de fora, juntava a sua inspeção vários outros controles - religiosos, administrativos; não
participava absolutamente da gestão cotidiana do hospital. Pouco a pouco a visita tornou-se mais regular, mais rigorosa,
principalmente mais extensa: ocupou uma parte cada vez mais importante do
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funcionamento hospitalar. Em 1661, o médico do Hotel-Dieu de Paris era encarregado de uma visita por dia; em 1687, um
médico "expectante" devia examinar, à tarde, certos doentes mais graves. Os regulamentos do século XVIII determinam
os horários da visita, e sua duração (duas horas no mínimo); insistem para que um rodízio permita que seja realizado
todos os dias "inclusive domingo de Páscoa"; enfim em 1771 institui-se um médico residente, encarregado de "prestar
todos os serviços de seu estado, tanto de noite como de dia, nos intervalos entre uma visita e outra de um médico de
fora".(19) A inspeção de antigamente, descontínua e rápida, se transforma em uma observação regular que coloca o
doente em situação de exame quase perpétuo. Com duas conseqüências: na hierarquia interna, o médico, elemento até
então exterior, começa a suplantar o pessoal religioso e a lhe confiar um papel determinado mas subordinado, na técnica
do exame; aparece então a categoria do "enfermeiro"; quanto ao próprio hospital, que era antes de tudo um local de
assistência, vai tornar-se local de formação e aperfeiçoamento científico: viravolta das relações de poder e constituição de
um saber. O hospital bem "disciplinado" constituirá o local adequado da "disciplina" médica; esta poderá então perder seu
caráter textual e encontrar suas referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo de objetos
perpetuamente oferecidos ao exame.
Do mesmo modo, a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu
comprimento a operação do ensino. Tratar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os alunos defrontavam forças e
cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos, que permite ao mesmo tempo medir e sancionar. Os
Irmãos das Escolas Cristãs queriam que seus alunos fizessem provas de classificação todos os dias da semana: o primeiro
dia para a ortografia, o segundo para a aritmética, o terceiro para o catecismo da manhã, e de tarde para a caligrafia, etc.
Além disso, devia haver uma prova todo mês, para designar os que merecessem ser submetidos ao exame do inspetor.(20)
Desde 1775, há na escola de Ponts et Chaussées 16 exames por ano: 3 de matemática, 3 de arquitetura, 3 de desenho, 2 de
caligrafia, l de corte de pedras, l de estilo, l de levantamento de planta, l de nivelamento, l de medição de edifícios.(21) O
exame não se contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores permanentes: sustenta-o segundo um ritual de
poder constantemente renovado. O exame permite ao mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, levantar um
campo de conhecimentos sobre seus alunos. Enquanto que a prova com que terminava um aprendizado na tradição
corporativa validava uma aptidão adquirida - a "obra-prima" autentificava uma transmissão de saber já feita - o exame é
na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas
retira do aluno um saber destinado e reservado ao mestre. A escola torna-se o local de elaboração da pedagogia. E do
mesmo modo como o
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processo do exame hospitalar permitiu a liberação epistemológica da medicina, a era da escola "examinatória" marcou o
início de uma pedagogia que funciona como ciência. A era das inspeções e das manobras indefinidamente repetidas, no
exército, marcou também o desenvolvimento de um imenso saber tático que teve efeito na época das guerras
napoleônicas.
O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício do
poder.
l) O exame inverte a economia da visibilidade no exercício do poder: tradicionalmente, o poder é o que se vê, se
mostra, se manifesta e, de maneira paradoxal, encontra o princípio de sua força no movimento com o qual a exibe.
Aqueles sobre o qual ele é exercido podem ficar esquecidos; só recebem luz daquela parte do poder que lhes é concedida,
ou do reflexo que mostram um instante. O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em
compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que
ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre
poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar. E o exame é a técnica pela qual o poder, em vez de emitir os
sinais de seu poderio, em vez de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação. No espaço que
domina, o poder disciplinar manifesta, para o essencial, seu poderio organizando os objetos. O exame vale como
cerimônia dessa objetivação.
Até então o papel da cerimônia política fora dar lugar à manifestação ao mesmo tempo excessiva e regulamentada
do poder; era uma expressão suntuosa de poderio, uma "despesa" ao mesmo tempo exagerada e codificada onde o poder
se revigorava. Era sempre mais ou menos aparentada ao triunfo. A aparição solene do soberano trazia consigo qualquer
coisa da consagração do coroamento, do retorno da vitória; até mesmo os faustos funerários se desenrolavam no brilho do
poderio exibido. Já a disciplina tem seu próprio tipo de cerimônia. Não é o triunfo, é a revista, é a "parada", forma
faustosa do exame. Os "súditos" são aí oferecidos como "objetos" à observação de um poder que só se manifesta pelo
olhar. Não recebem diretamente a imagem do poderio soberano; apenas mostram seus efeitos - e por assim dizer em baixo
relevo -sobre seus corpos tornados exatamente legíveis e dóceis. Em 15 de março de 1666, Luís XIV passa sua primeira
revista militar: 18.000 homens, "uma das ações mais brilhantes do reino", e que passava por ter "mantido toda a Europa
inquieta". Muitos anos depois, foi cunhada uma medalha para comemorar o acontecimento.(22) Traz, no exergo:
Disciplina militaris restituía e na legenda: Prolusio ad viciarias. À direita, o rei, com o pé direito para a frente, comanda
ele próprio o exercício com um bastão. Na metade esquerda, várias fileiras de
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soldados são vistos de frente, e alinhados no sentido da profundidade; eles estendem o braço na altura do ombro e
seguram o fuzil exatamente na vertical: avançam a perna direita e estão com o pé esquerdo voltado para fora. No chão,
linhas se cortam em ângulo reto, representando, sob os pés dos soldados, grandes quadrados que servem de referência
para as diversas fases e posições do exercício. Bem no fundo, esboça-se uma arquitetura clássica. As colunas do palácio
prolongam as constituídas pêlos homens alinhados e pêlos fuzis levantados, como as lajes do calçamento prolongam as
linhas do exercício. Mas acima da balaustrada que coroa o edifício, estátuas representam personagens que dançam: linhas
sinuosas, gestos arredondados, cortinados. O mármore é percorrido por movimentos, cujo princípio de unidade é
harmônico. Já os homens estão imobilizados numa atitude uniformemente repetida de fileira em fileira e de linha em
linha: unidade tática. A ordem da arquitetura, que liberta em seu topo as figuras de dança, impõe no solo suas regras e
geometria aos homens disciplinados. As colunas do poder. "Bem", dizia um dia o grão-duque Michel diante de quem as
tropas haviam acabado de manobrar, "mas eles estão respirando".(23)
Tomemos essa medalha como testemunho do momento em que se reúnem de maneira paradoxal mas significativa a
figura mais brilhante do poder soberano e a emergência dos rituais próprios ao poder disciplinar. A visibilidade mal
sustentável do monarca se torna em visibilidade inevitável dos súditos. E essa inversão de visibilidade no funcionamento
das disciplinas é que realizará o exercício do poder até em seus graus mais baixos. Entramos na era do exame
interminável e da objetivação limitadora.
2) O exame faz também a individualidade entrar num campo documentário: Seu resultado é um arquivo inteiro com
detalhes e minúcias que se constitui ao nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos num campo de
vigilância situa-os igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos
que os captam e os fixam. Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro
intenso e de acumulação documentária. Um "poder de escrita" é constituído como uma peça essencial nas engrenagens da
disciplina. Em muitos pontos, modela-se pêlos métodos tradicionais da documentação administrativa. Mas com técnicas
particulares e inovações importantes. Umas se referem aos métodos de identificação, de assimilação, ou de descrição. Era
esse o problema do exército, onde urgia encontrar os desertores, evitar as convocações repetidas, corrigir as listas fictícias
apresentadas pêlos oficiais, conhecer os serviços e o valor de cada um, estabelecer com segurança o balanço dos
desaparecidos e mortos. Era esse o problema dos hospitais, onde era preciso reconhecer os doentes, expulsar os
simuladores, acompanhar a evolução das doenças, verifi-
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car a eficácia dos tratamentos, descobrir os casos análogos e os começos de epidemias. Era o problema dos
estabelecimentos de ensino, onde era forçoso caracterizar a aptidão de cada um, situar seu nível e capacidades, indicar a
utilização eventual que se pode fazer dele.
A função do registro é fornecer indicações de tempo e lugar, dos hábitos das crianças, de seu progresso na piedade,
no catecismo, nas letras de acordo com o tempo na Escola, seu espírito e critério que ele encontrará marcado desde sua
recepção.(24)
Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizandoos,
os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código
escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. Esses códigos eram ainda muito rudimentares, em sua forma
qualitativa ou quantitativa, mas marcam o momento de uma primeira "formalização" do individual dentro de relações do
poder.
As outras inovações da escrita disciplinar se referem à correlação desses elementos, à acumulação dos documentos,
sua seriação, à organização de campos comparativos que permitam classificar, formar categorias, estabelecer médias,
fixar normas. Os hospitais do século XVIII foram particularmente grandes laboratórios para os métodos escriturários e
documentários. A manutenção dos registros, sua especificação, os modos de transcrição de uns para os outros, sua
circulação durante as visitas, sua confrontação durante as reuniões regulares dos médicos e dos administradores, a
transmissão de seus dados a organismos de centralização (ou no hospital ou no escritório central dos serviços
hospitalares), a contabilidade das doenças, das curas, dos falecimentos ao nível de um hospital de uma cidade e até da
nação inteira fizeram parte integrante do processo pelo qual os hospitais foram submetidos ao regime disciplinar. Entre as
condições fundamentais de uma boa "disciplina" médica nos dois sentidos da palavra, é preciso incluir os processos de
escrita que permitem integrar, mas sem que se percam, os dados individuais em sistemas cumulativos; fazer de maneira
que a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente cada dado do exame individual
possa repercutir nos cálculos de conjunto.
Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas possibilidades que são correlatas: a
constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não contudo para reduzi-lo a traços "específicos", como
fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular,
em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um
sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos
coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa "população".
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Importância decisiva, conseqüentemente, dessas pequenas técnicas de anotação, de registro, de constituição de processos,
de colocação em colunas que nos são familiares mas que permitiram a liberação epistemológica das ciências do indivíduo.
Sem dúvida temos razão em colocar o problema aristotélico: é possível uma ciência do indivíduo, e legítima? Para um
grande problema, grandes soluções talvez. Mas há o pequeno problema histórico da emergência, pelo fim do século
XVIII, do que se poderia colocar sob a sigla de ciências "clínicas"; problema da entrada do indivíduo (e não mais da
espécie) no campo do saber; problema da entrada de descrição singular, do interrogatório, da anamnese, do "processo" no
funcionamento geral do discurso científico. Para essa simples questão de fato, é preciso sem dúvida uma resposta sem
grandeza: é preciso ver o lado desses processos de escrita e de registro; é preciso ver o lado dos mecanismos de exame, o
lado da formação dos dispositivos de disciplina e da formação de um novo tipo de poder sobre os corpos. O nascimento
das ciências do homem? Aparentemente ele deve ser procurado nesses arquivos de pouca glória onde foi elaborado o jogo
moderno das coerções sobre os corpos, os gestos, os comportamentos.
3) O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um "caso ": um caso que ao
mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder. O caso não é mais, como na
casuística ou na jurisprudência, um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de
uma regra, é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria
individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado, normalizado,
excluído, etc.
Durante muito tempo a individualidade qualquer - a de baixo e de todo mundo - permaneceu abaixo do limite de
descrição. Ser olhado, observado, contado detalhadamente, seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um
privilégio. A crônica de um homem, o relato de sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência
faziam parte dos rituais do poderio. Os procedimentos disciplinares reviram essa relação, abaixando o limite da
individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação. Não mais
monumento para uma memória futura, mas documento para uma utilização eventual. E essa nova descritibilidade é ainda
mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão,
cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de
descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo
de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos
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doentes mentais ou dos delinqüentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares, de
uma certa função política da escrita, mas numa técnica de poder totalmente diversa.
O exame como fixação ao mesmo tempo ritual e "científica" das diferenças individuais, como aposição de cada um
à sua própria singularidade (em oposição à cerimônia onde se manifestam os status, os nascimentos, os privilégios, as
funções, com todo o brilho de suas marcas) indica bem a aparição de uma nova modalidade de poder em que cada um
recebe como status sua própria individualidade, e onde está estatutariamente ligado aos traços, às medidas, aos desvios, às
"notas" que o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um "caso".
Finalmente, o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como
efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções
disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua,
de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória.
Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de
poder para o qual a diferença individual é pertinente.
As disciplinas marcam o momento em que se efetua o que se poderia chamar a troca do eixo político da
individualização. Nas sociedades de que o regime feudal é apenas um exemplo, pode-se dizer que a individualização é
máxima do lado em que a soberania é exercida e nas regiões superiores do poder. Quanto mais o homem é detentor de
poder ou de privilégio, tanto mais é marcado como indivíduo, por rituais, discursos, ou representações plásticas. O "nome
de família" e a genealogia que situam, dentro de um conjunto de parentes, a realização de proezas que manifestam a
superioridade das forças e que são imortalizadas por relatos, as cerimônias que marcam, por sua ordenação, as relações de
poder, os monumentos ou as doações que dão uma outra vida depois da morte, os faustos e os excessos da despesa, os
múltiplos laços de vassalagem e de suserania que se entrecruzam, tudo isso constitui outros procedimentos de uma
individualização "ascendente". Num regime disciplinar, a individualização, ao contrário, é "descendente" à medida que o
poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente
individualizados; e por fiscalizações mais que por cerimônias, por observações mais que por relatos comemorativos, por
medidas comparativas que têm a "norma" como referência, e não por genealogias que dão os
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ancestrais como pontos de referência; por "desvios" mais que por proezas. Num sistema de disciplina, a criança é mais
individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinqüente mais que o normal e o nãodelinqüente.
É em direção aos primeiros, em todo caso, que se voltam em nossa civilização todos os mecanismos
individualizantes; e quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que
ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer. Todas as ciências, análises
ou práticas com radical "psico", têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que
passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que
o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem
memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em
que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo. E se da Idade
Média mais remota até hoje a "aventura" é o relato da individualidade, a passagem do épico ao romanesco, do feito
importante à singularidade secreta, dos longos exílios à procura interior da infância, das justas aos fantasmas, se insere
também na formação de uma sociedade disciplinar. São as desgraças do pequeno Hans e não mais "o bom Henriquinho"
que contam a aventura de nossa infância. O Roman de La Rose é escrito hoje em dia por Mary Barnes; no lugar de
Lancelot, o presidente Schreber.
Muitas vezes se afirma que o modelo de uma sociedade que teria indivíduos como elementos constituintes é tomada
às formas jurídicas abstraias do contrato e da troca. A sociedade comercial se teria representado como uma associação
contratual de sujeitos jurídicos isolados. Talvez. A teoria política dos séculos XVII e XVIII parece com efeito obedecer a
esse esquema. Mas não se deve esquecer que existiu na mesma época uma técnica para constituir efetivarhente os
indivíduos como elementos correlatos de um poder e de um saber. O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma
representação "ideológica" da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder
que se chama a "disciplina". Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele "exclui",
"reprime", "recalca", "censura", "abstrai", "mascara", "esconde". Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção.
Mas emprestar tal poderio às astúcias muitas vezes minúsculas da disciplina, não seria lhes conceder muito? De
onde podem elas tirar tão vastos efeitos?
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CAPÍTULO III
O PANOPTISMO
Eis as medidas que se faziam necessárias, segundo um regulamento do fim do século XVII, quando se declarava a
peste numa cidade.(1)
Em primeiro lugar, um policiamento espacial estrito: fechamento, claro, da cidade e da "terra", proibição de sair sob
pena de morte, fim de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de
um intendente. Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico; ele a vigia; se a deixar, será punido de morte. No dia
designado, ordena-se todos que se fechem em suas casas: proibido sair sob pena de morte. O próprio síndico vem fechar,
por fora, a porta de cada casa; leva a chave, que entrega ao intendente de quarteirão; este a conserva até o fim da
quarentena. Cada família terá feito suas provisões; mas para o vinho e o pão, se terá preparado entre a rua e o interior das
casas pequenos canais de madeira, que permitem fazer chegar a cada um sua ração, sem que haja comunicação entre os
fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras, utilizam-se roldanas e cestas. Se for absolutamente
necessário sair das casas, tal se fará por turnos, e evitando-se qualquer encontro. Só circulam os intendentes, os síndicos,
os soldados da guarda e também entre as casas infectadas, de um cadáver ao outro, os "corvos", que tanto faz abandonar à
morte: é "gente vil, que leva os doentes, enterra os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos". Espaço recortado,
imóvel, fixado. Cada qual se prende a seu lugar. E, caso se mexa, corre perigo de vida, por contágio ou punição.
A inspeção funciona constantemente. O olhar está alerta em toda parte: "Um corpo de milícia considerável,
comandado por bons oficiais e gente de bem", corpos de guarda nas portas, na prefeitura e em todos os bairros para tornar
mais pronta a obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, "assim como para vigiar todas as
desordens, roubos e pilhagens". Às portas, postos de vigilância; no fim de cada rua, sentinelas. Todos os dias, o intendente
visita o quarteirão de que está encarregado, verifica se os síndicos cumprem suas tarefas, se os habitantes têm queixas;
eles "fiscalizam seus atos". Todos os dias também o síndico passa na rua por que é responsável; pára diante de cada casa;
manda colocar todos os moradores às janelas (os que habitassem nos fundos teriam designada uma janela dando para a
rua onde ninguém mais poderia se mostrar); chama cada um por seu nome; informa-se do estado de todos, um por um -
"no que os habitantes serão obrigados a dizer a verdade,
162 ▲
sob pena de morte"; se alguém não se apresentar à janela, o síndico deve perguntar a razão: "Ele assim descobrirá
facilmente se escondem mortos ou doentes". Cada um trancado em sua gaiola, cada um à sua janela, respondendo a seu
nome e se mostrando quando é perguntado, é a grande revista dos mortos e dos vivos.
Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos
intendentes aos almotacés ou ao prefeito. No começo da "apuração" se estabelece o papel de todos os habitantes presentes
na cidade um por um; nela se anotam "o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição"; um exemplar para o intendente
do quarteirão, um segundo no escritório da prefeitura, um outro para o síndico poder fazer a chamada diária. Tudo o que é
observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e
magistrados. Estes têm o controle dos cuidados médicos; e um médico responsável; nenhum outro médico pode cuidar,
nenhum boticário preparar os remédios, nenhum confessor visitar um doente, sem ter recebido dele um bilhete escrito
"para impedir que se escondam e se tratem, à revelia dos magistrados, doentes do contágio". O registro do patológico
deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo
registro que delas é feito, pelas decisões que elas tomam.
Cinco ou seis dias depois do começo da quarentena procede-se à purificação das casas, uma por uma. Manda-se sair
todos os moradores; em cada cômodo levantam-se ou penduram-se "os móveis e as mercadorias"; espalha-se perfume; ele
é queimado depois de bem fechadas as janelas, as portas e até os buracos de fechadura que se enche de cera. Finalmente
fecha-se a casa inteira enquanto se consome o perfume; como na entrada, revistam-se os perfumadores "na presença dos
moradores da casa, para ver se eles não têm à saída qualquer coisa que não tivessem ao entrar". Quatro horas depois, os
moradores podem entrar em casa.
Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo,
onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho
ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica
contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os
mortos - isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como
função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se
multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a
cada um sua doença e sua morte,
163 ▲
a cada ura seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e
ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, o do que lhe acontece.
Contra a peste que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise. Houve em torno da peste uma ficção
literária da festa: as leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem
respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram
reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente diversa. Mas houve também um sonho político da peste, que era
exatamente o contrário: não a festa coletiva, mas as divisões estritas; não as leis transgredidas, mas a penetração do
regulamento até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realiza o funcionamento
capilar do poder; não as máscaras que se colocam e se retiram, mas a determinação a cada um de seu "verdadeiro" nome,
de seu "verdadeiro" lugar, de seu "verdadeiro" corpo e da "verdadeira" doença. Apeste como forma real e, ao mesmo
tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se
lê o terror dos "contágios", da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem
e desaparecem, vivem e morrem na desordem.
Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até um certo ponto o modelo e como que a forma
geral do grande Fechamento, já a peste suscitou esquemas disciplinares. Mais que a divisão maciça e binária entre uns e
outros ela recorre a separações múltiplas, a distribuições individualizantes, a uma organização aprofundada das
vigilâncias e dos controles, a uma intensificação e ramificação do poder. O leproso é visto dentro de uma prática da
rejeição, do exílio-cerca; deixa-se que se perca lá dentro como numa massa que não tem muita importância diferenciar; os
pestilentos são considerados num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos
limitantes de um poder que se multiplica, se articula e se subdivide. O grande fechamento por um lado; o bom
treinamento por outro. A lepra e sua divisão; a peste e seus recortes. Uma é marcada; a outra, analisada e repartida. O
exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura, o
outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer poder sobre os homens, de controlar suas relações, de
desmanchar suas perigosas misturas. A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar,
pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre
todos os corpos individuais - é a utopia da cidade perfeitamente governada. A peste (pelo menos aquela que permanece no
estado de previsão) é a prova durante a qual se pode definir idealmente o exercício do
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poder disciplinar. Para fazer funcionar segundo a pura teoria os direitos e as leis, os juristas se punham imaginariamente
no estado de natureza; para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governantes sonhavam com o estado de peste. No
fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da
lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão.
Esquemas diferentes, portanto, mas não incompatíveis. Lentamente, vemo-los se aproximarem; e é próprio do
século XIX ter aplicado ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante simbólico (e os mendigos, os vagabundos,
os loucos, os violentos formavam a população real) a técnica de poder própria do "quadriculamento" disciplinar. Tratar os
"leprosos" como "pestilentos", projetar recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do internamento, trabalhá-lo
com os métodos de repartição analítica do poder, individualizar os excluídos, mas utilizar processos de individualização
para marcar exclusões - isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX: o
asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada, e por um lado os hospitais,
de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional num duplo modo: o da divisão binária e da
marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição
diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira
individual, uma vigilância constante, etc.). De um lado, "pestilentam-se" os leprosos; impõem-se aos excluídos a tática
das disciplinas individualizantes; e de outro lado a universalidade dos controles disciplinares permite marcar quem é
"leproso" e fazer funcionar contra ele os mecanismos dualistas da exclusão. A divisão constante do normal e do anormal,
a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio
dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e
corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava. Todos os mecanismos de
poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do anormal, para marcá-lo como para modificá-lo, compõem
essas duas formas de que longinquamente derivam.
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma
construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
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espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para
o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela
trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da
torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas,
tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O
dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o
princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções - trancar, privar de luz e esconder - só se conserva a
primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente
protegia. A visibilidade é uma armadilha.
O que permite em primeiro lugar - como efeito negativo - evitar aquelas massas compactas, fervilhantes, pululantes,
que eram encontradas nos locais de encarceramento, os pintados por Goya ou descritos por Howard. Cada um, em seu
lugar, está bem trancado em sua cela de onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em
contato com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação. A
disposição de seu quarto, em frente da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas
bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E esta é a garantia da ordem. Se os detentos são condenados não há
perigo de complô, de tentativa de evasão coletiva, projeto de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se
são doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há risco de violências recíprocas; crianças, não há "cola", nem
barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem conluios, nada dessas distrações que
atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes. A multidão, massa compacta, local de múltiplas
trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades
separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de
vista dos detentos, por uma solidão seqüestrada e olhada.(2)
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade
que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo
se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse
aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce;
enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao
mesmo tempo excessivo e
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muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba
vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. Por isso Bentham colocou o princípio de que o
poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de
onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre
pode sê-lo. Para tornar indecidível a presença ou a ausência do vigia, para que os prisioneiros, de suas celas, não
pudessem nem perceber uma sombra ou enxergar uma contraluz, previu Bentham, não só persianas nas janelas da sala
central de vigia, mas, por dentro, separações que a cortam em ângulo reto e, para passar de um quarto a outro, não portas,
mas biombos: pois a menor batida, uma luz entrevista, uma claridade numa abertura trairiam a presença do guardião.(3) O
Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na
torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto.(4)
Dispositivo importante, pois automatiza e desindividualiza o poder. Este tem seu princípio não tanto numa pessoa
quanto numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos
mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos. As cerimônias, os rituais, as marcas
pelas quais se manifesta no soberano o mais-poder são inúteis. Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o
desequilíbrio, a diferença. Pouco importa, conseqüentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase
tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do diretor, sua família, os que o cercam, seus amigos, suas
visitas, até seus criados.(5) Do mesmo modo que é indiferente o motivo que o anima: a curiosidade de um indiscreto, a
malícia de uma criança, o apetite de saber de um filósofo que quer percorrer esse museu da natureza humana, ou a
maldade daqueles que têm prazer em espionar e em punir. Quanto mais numerosos esses observadores anônimos e
passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado.
O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.
Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para
obrigar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à
observância das receitas. Bentham se maravilha de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves: fim das grades,
fim das correntes, fim das fechaduras pesadas: basta que as separações sejam nítidas e as aberturas bem distribuídas. O
peso das velhas "casas de segurança", com sua arquitetura de fortaleza, é substituído pela geometria simples e econômica
de uma "casa de
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certeza". A eficácia do poder, sua força limitadora, passaram, de algum modo, para o outro lado - para o lado de sua
superfície de aplicação. Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as
limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele
desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição. Em conseqüência disso mesmo,
o poder externo, por seu lado, pode-se aliviar de seus fardos físicos; tende ao incorpóreo; e quanto mais se aproxima desse
limite, mais esses efeitos são constantes, profundos, adquiridos em caráter definitivo e continuamente recomeçados:
vitória perpétua que evita qualquer defrontamento físico e está sempre decidida por antecipação.
Bentham não diz se se inspirou, em seu projeto, no zoológico que Lê Vaux construíra em Versalhes: primeiro
zoológico cujos elementos não estão, como tradicionalmente, espalhados em um parque(6): no centro, um pavilhão
octogonal que, no primeiro andar, só comportava uma peça, o salão do rei; todos os lados se abriam com largas janelas,
sobre sete jaulas (o oitavo lado estava reservado para a entrada), onde estavam encerradas diversas espécies de animais.
Na época de Bentham, esse zoológico desaparecera. Mas encontramos no programa do Panóptico a preocupação análoga
da observação individualizante, da caracterização e da classificação, da organização analítica da espécie. O Panóptico é
um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela
maquinaria de um poder furtivo. Fora essa diferença, o Panóptico, também, faz um trabalho de naturalista. Permite
estabelecer as diferenças: nos doentes, observar os sintomas de cada um, sem que a proximidade dos leitos, a circulação
dos miasmas, os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos; nas crianças, anotar os desempenhos (sem que haja
limitação ou cópia), perceber as aptidões, apreciar os caracteres, estabelecer classificações rigorosas e, em relação a uma
evolução normal, distinguir o que é "preguiça e teimosia" do que é "imbecilidade incurável"; nos operários, anotar as
aptidões de cada um, comparar o tempo que levam para fazer um serviço, e, se são pagos por dia, calcular seu salário em
vista disso.(7)
Este é um dos aspectos. Por outro lado, o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências,
modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. Experimentar remédios e verificar seus efeitos. Tentar
diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento, e procurar as mais eficazes. Ensinar
simultaneamente diversas técnicas aos operários, estabelecer qual é a melhor. Tentar experiências pedagógicas - e
particularmente abordar o famoso problema da educação reclusa, usando crianças encontradas; ver-se-ia o que acontece
quando aos dezesseis ou dezoito anos rapazes e moças se encontram; poder-se-ia verificar se, como pensa
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Helvetius, qualquer pessoa pode aprender qualquer coisa; poder-se-ia acompanhar "a genealogia de qualquer ideia
observável"; criar diversas crianças em diversos sistemas de pensamento, fazer alguns acreditarem que dois e dois não são
quatro e que a lua é um queijo, depois juntá-los todos quando tivessem vinte ou vinte e cinco anos; haveria então
discussões que valeriam bem os sermões ou as conferências para as quais se gasta tanto dinheiro; haveria pelo menos
ocasião de fazer descobertas no campo da metafísica. O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a
experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode
até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode
espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá
julgá-los continuamente, modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por
sua vez, poderá ser facilmente observado. Um inspetor que surja sem avisar no centro do Panóptico julgará com uma
única olhadela, e sem que se possa esconder nada dele, como funciona todo o estabelecimento. E aliás, fechado como está
no meio desse dispositivo arquitetural, o diretor não está comprometido com ele? O médico incompetente que tiver
deixado o contágio se espalhar, o diretor de prisão ou de oficina que tiver sido inábil serão as primeiras vítimas da
epidemia ou da revolta.
Meu destino, diz o mestre do Panóptico, está ligado ao deles (ao dos detentos) por todos os laços que pude
inventar.(8)
O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha
em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em
todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça.
Cidade pestilenta, estabelecimento panóptico, as diferenças são importantes. Elas marcam, com um século e meio de
distância, as transformações do programa disciplinar. Num caso, um situação de exceção: contra um mal extraordinário, o
poder se levanta; torna-se em toda parte presente e visível; inventa novas engrenagens; compartimenta, imobiliza,
quadrícula; constrói por algum tempo o que é ao mesmo tempo a contracidade e a sociedade perfeita; impõe um
funcionamento ideal, mas que no fim das contas se reduz, como o mal que combate, ao dualismo simples vida-morte: o
que se mexe traz a morte, e mata-se o que se mexe. O Panóptico ao contrário deve ser compreendido como um modelo
generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações
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do poder com a vida cotidiana dos homens. Bentham sem dúvida o apresenta como uma instituição particular, bem
fechada em si mesma. Muitas vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito. Diante das prisões arruinadas,
fervilhantes, e povoadas de suplícios gravadas por Piranese, o Panóptico aparece como jaula cruel e sábia. O fato de ele
ter, até nosso tempo, dado lugar a tantas variações projetadas ou realizadas, mostra qual foi durante quase dois séculos sua
intensidade imaginária. Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um
mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou
desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia
política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico.
É polivalente em suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir
os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação
dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos
centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos
hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve
impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado.
Ele é [ressalvadas as modificações necessárias] aplicável a todos os estabelecimentos onde, nos limites de um
espaço que não é muito extenso, é preciso manter sob vigilância um certo número de pessoas.(9)
Em cada uma de suas aplicações, permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias maneiras: porque pode
reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido.
Porque permite intervir a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam
cometidos. Porque, nessas condições, sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído, é constituir
um mecanismo de efeitos em cadeia. Porque sem outro instrumento físico que uma arquitetura e uma geometria, ele age
diretamente sobre os indivíduos; "dá ao espírito poder sobre o espírito". O esquema panóptico é um intensificador para
qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu
caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos. É uma maneira de obter poder
numa quantidade até então sem igual, um grande e novo instrumento de governo...; sua excelência consiste na
grande força que é capaz de dar a qualquer instituição a que seja aplicado.(10)
170 ▲
Uma espécie de "ovo de Colombo" na ordem da política. Ele é capaz com efeito de vir se integrar a uma função
qualquer (de educação, de terapêutica, de produção, de castigo); de aumentar essa função, ligando-se intimamente a ela;
de constituir um mecanismo misto no qual as relações de poder (e de saber) podem-se ajustar exatamente, e até nos
detalhes, aos processos que é preciso controlar; de estabelecer uma proporção direta entre o "mais-poder" e a "maisprodução".
Em suma, faz com que o exercício do poder não se acrescente de fora, como uma limitação rígida ou como um
peso, sobre as funções que investe, mas que esteja nelas presente bastante sutilmente para aumentar-lhes a eficácia
aumentando ele mesmo seus próprios pontos de apoio. O dispositivo panóptico não é simplesmente uma charneira, um
local de troca entre um mecanismo de poder e uma função; é uma maneira de fazer funcionar relações de poder numa
função, e uma função para essas relações de poder. O panoptismo é capaz de
reformar a moral, preservar a saúde, revigorar a indústria, difundir a instrução, aliviar os encargos públicos,
estabelecer a economia como que sobre um rochedo, desfazer, em vez de cortar, o nó górdio das leis sobre os pobres, tudo
isso com uma simples ideia arquitetural.(11)
Além disso, o arranjo dessa máquina é tal que seu fechamento não exclui uma presença permanente do exterior:
vimos que qualquer pessoa pode vir exercer na torre central as funções de vigilância, e que fazendo isso pode adivinhar a
maneira como é exercida a vigilância. Na realidade, qualquer instituição panóptica, mesmo que seja tão cuidadosamente
fechada quanto uma penitenciária, poderá sem dificuldade ser submetida a essas inspeções ao mesmo tempo aleatórias e
incessantes: e isso não só por parte dos controladores designados, mas por parte do público; qualquer membro da
sociedade terá direito de vir constatar com seus olhos como funcionam as escolas, os hospitais, as fábricas, as prisões.
Não há, conseqüentemente, risco de que o crescimento de poder devido à máquina panóptica possa degenerar em tirania;
o dispositivo disciplinar será democraticamente controlado, pois será sem cessar acessível "ao grande comité do tribunal
do mundo"(12) Esse panóptico, sutilmente arranjado para que um vigia possa observar, com uma olhadela, tantos
indivíduos diferentes, permite também a qualquer pessoa vigiar o menor vigia. A máquina de ver é uma espécie de
câmara escura em que se espionam os indivíduos; ela torna-se um edifício transparente onde o exercício do poder é
controlável pela sociedade inteira.
O esquema panóptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no
corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. A cidade pestilenta dava um modelo disciplinar
excepcional: perfeito mas absolutamente violento; à doença que trazia a morte, o poder opunha sua perpétua ameaça de
morte; a vida nela se reduzia a sua expressão mais simples; era contra o poder da morte o exercício minucioso do direito
de gládio. O Panóptico, ao contrário, tem um papel de amplificação; se organiza o poder, não é pelo próprio poder, nem
pela salvação
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imediata de uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as forças sociais - aumentar a produção,
desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar.
Como reforçar esse poder de tal maneira que, longe de atrapalhar esse processo, longe de pesar sobre ele com suas
exigências e seu peso, ele, ao contrário, o facilite? Que intensificador de poder poderá ao mesmo tempo ser um
multiplicador de produção? Como o poder, aumentando suas forças, poderá fazer crescer as da sociedade em vez de
confiscá-las ou freá-las? A solução do Panóptico para esse problema é que a majoração produtiva do poder só pode ser
assegurada se por um lado ele tem possibilidade de se exercer de maneira contínua nos alicerces da sociedade, até seu
mais fino grão, e se, por outro lado, ele funciona fora daquelas formas súbitas, violentas, descontínuas, que estão ligadas
ao exercício da soberania. O corpo do rei, com sua estranha presença material e mítica, com a força que ele mesmo exibe
ou transmite a alguns, está no extremo oposto dessa nova física do poder definida pelo panoptismo; seu campo é ao
contrário toda aquela região de baixo, a dos corpos irregulares, com seus detalhes, seus movimentos múltiplos, suas forças
heterogéneas, suas relações espaciais; são mecanismos que analisam distribuições, desvios, séries, combinações, e
utilizam instrumentos para tornar visível, registrar, diferenciar e comparar: física de um poder relacional e múltiplo, que
tem sua intensidade máxima não na pessoa do rei, mas nos corpos que essas relações, justamente, permitem
individualizar. Ao nível teórico, Bentham define outra maneira de analisar o corpo social e as relações de poder que o
atravessam; em termos de prática, ele define um processo de subordinação dos corpos e das forças que a utilidade do
poder deve majorar fazendo a economia do Príncipe. O panoptismo é o princípio geral de uma nova "anatomia política"
cujo objeto e fim não são a relação de soberania mas as relações de disciplina.
Na famosa jaula transparente e circular, com sua torre alta, potente e sábia, será talvez o caso para Bentham de
projetar uma instituição disciplinar perfeita; mas também importa mostrar como se pode "destrancar" as disciplinas e
fazê-las funcionar de maneira difusa, múltipla, polivalente no corpo social inteiro. Essas disciplinas que a era clássica
elabora em locais precisos e relativamente fechados - casernas, colégios, grandes oficinas - e cuja utilização global só fora
imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste, Bentham sonha fazer delas uma rede de
dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas, percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção. O arranjo
panóptico dá a fórmula dessa generalização. Ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível,
o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares.
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Duas imagens, portanto, da disciplina. Num extremo, a disciplina-bloco, a instituição fechada, estabelecida à
margem, e toda voltada para funções negativas: fazer parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo. No outro
extremo, com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do
poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir.
O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina de exceção ao de uma vigilância generalizada,
repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos
XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a
sociedade disciplinar.
Realizou-se uma generalização disciplinar, atestada pela física benthamia-na do poder, no decorrer da era clássica.
Comprova-o a multiplicação das instituições de disciplina, com sua rede que começa a cobrir uma superfície cada vez
mais vasta, e principalmente a ocupar um lugar cada vez menos marginal; o que era ilha, local privilegiado, medida
circunstancial ou modelo singular, torna-se fórmula geral; as regulamentações características dos exércitos protestantes e
piedosos de Guilherme de Orange ou de Gustavo Adolfo se transformaram em regulamentos para todos os exércitos da
Europa; os colégios modelos dos jesuítas, ou as escolas de Batencour e de Demia, depois da de Sturm, esboçam as formas
gerais da disciplina escolar; a ordem estabelecida nos hospitais Marítimos e militares serve de esquema para toda a
reorganização hospitalar do século XVIII.
Mas essa extensão das instituições disciplinares não passa sem dúvida do aspecto mais visível de diversos processos
mais profundos.
1) A inversão funcional das disciplinas: originalmente cabia-lhes principalmente neutralizar os perigos, fixar as
populações inúteis ou agitadas, evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas; agora se lhes atribui (pois se
tornaram capazes disso) o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos. A disciplina militar não é mais
um simples meio de impedir a pilhagem, a deserção, ou a desobediência das tropas; torna-se uma técnica de base para que
o exército exista, não mais como uma multidão ajustada, mas como uma unidade que tira dessa mesma unidade uma
majoração de forças; a disciplina faz crescer a habilidade de cada um, coordena essas habilidades, acelera os movimentos,
multiplica a potência de fogo, alarga as frentes de ataque sem lhes diminuir o vigor, aumenta as capacidades de
resistência, etc. A disciplina de oficina, sem deixar de ser uma maneira de fazer respeitar os regulamentos e as
autoridades, de impedir os roubos ou a dissipação, tende a fazer crescer as aptidões, as velocidades, os rendimentos e
portanto os lucros;
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ela continua a moralizar as condutas, mas cada vez mais ela modela os comportamentos e faz os corpos entrar numa
máquina, as forças numa economia. Quando no século XVII se desenvolveram as escolas de província ou as escolas
cristãs elementares, as justificações dadas eram principalmente negativas: os pobres, não tendo recursos para educar os
filhos, deixavam-nos "na ignorância de suas obrigações, e entregues ao simples cuidado de viver; e tendo eles mesmos
sido mal educados, não podem comunicar uma boa educação que jamais tiveram"; o que acarreta três inconvenientes
ponderáveis: a ignorância de Deus, a preguiça (com todo o seu cortejo de bebedeira, de impureza, de furtos, de
banditismo) e a formação dessas tropas de mendigos, sempre prontos a provocar desordens públicas e "que só servem
para esgotar os fundos do Hôtel-Dieu".(13) Mas, no começo da Revolução, a finalidade prescrita ao ensino primário será,
entre outras coisas, "fortificar", "desenvolver o corpo", dispor a criança "para qualquer trabalho mecânico no futuro", darlhe
"uma capacidade de visão rápida e global, uma mão firme, hábitos rápidos".(14) As disciplinas funcionam cada vez
mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis. Daí se libertarem elas de sua posição marginal nos confins da
sociedade, e se destacarem das formas de exclusão ou de expiação, de encarceramento ou retiro. Daí desfazerem elas
lentamente seu parentesco com as regularidades e os muros religiosos. Daí também tenderem a se implantar nos setores
mais importantes, mais centrais, mais produtivos da sociedade; e se fixarem em algumas das grandes funções essenciais:
na produção manufatureira, na transmissão de conhecimentos, na difusão das aptidões e do know-how, no aparelho de
guerra. Daí enfim a dupla tendência que vemos se desenvolver no decorrer do século XVIII de multiplicar o número das
instituições de disciplina e de disciplinar os aparelhos existentes.
2) A ramificação dos mecanismos disciplinares: enquanto por um lado os estabelecimentos de disciplina se
multiplicam, seus mecanismos têm uma certa tendência a se desinstitucionalizar, a sair das fortalezas fechadas onde
funcionavam e a circular em estado "livre"; as disciplinas maciças e compactas se decompõem em processos flexíveis de
controle, que se pode transferir e adaptar. Às vezes, são os aparelhos fechados que acrescentam à sua função interna e
específica um papel de vigilância externa desenvolvendo uma margem de controles laterais. Assim, a escola cristã não
deve simplesmente formar crianças dóceis; deve também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira de viver,
seus recursos, sua piedade, seus costumes. A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até
nos adultos e exercer sobre eles um controle regular: o mau comportamento de uma criança, ou sua ausência, é um
pretexto legítimo, segundo Demia, para se ir interrogar os vizinhos, principalmente se há razão para se pensar que a
família não dirá a verdade; depois os próprios pais, para verificar se eles sabem o catecismo e as
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orações, se estão decididos a arrancar os vícios das crianças, quantas camas há e como eles se repartem nelas durante a
noite; a visita termina eventualmente com uma esmola, o presente de uma imagem, ou a doação de camas
suplementares.(15) Da mesma maneira o hospital é concebido cada vez mais como ponto de apoio para a vigilância
médica da população externa; depois do incêndio do Hôtel-Dieu em 1772, muita gente pede que se substituam os grandes
estabelecimentos, tão pesados e desorganizados, por uma série de hospitais de pequena dimensão; teriam por função
recolher os doentes do bairro, mas também reunir informações, tomar conta dos fenómenos endémicos ou epidêmicos,
abrir dispensários, dar conselhos aos moradores e manter as autoridades a par do estado sanitário da região.(16) Vemos
também se difundirem os procedimentos disciplinares, não a partir de instituições fechadas, mas de focos de controle
disseminados na sociedade. Grupos religiosos, associações de beneficência muito tempo desempenharam esse papel de
"disciplinamento" da população. Desde a Contra-Reforma até à filantropia da monarquia de julho, multiplicaram-se
iniciativas desse tipo; tinham objetivos religiosos (a conversão e a moralização), económicos (o socorro e a incitação ao
trabalho), ou políticos (tratava-se de lutar contra o descontentamento ou a agitação). Que seja suficiente citar a título de
exemplo os regulamentos para as companhias de caridade das paróquias parisienses. O território a cobrir está dividido em
bairros e cantões, que são repartidos pêlos membros da companhia. Estes têm que visitá-los regularmente.
Eles trabalharão para impedir os maus locais, tabacarias, academias, jogos, escândalos públicos, blasfémias,
impiedades, e outras desordens que possam chegar a seu conhecimento.
Terão também que fazer visitas individuais aos pobres; e os pontos de informação são precisados no regulamento:
estabilidade de habitação, conhecimento das orações, frequência aos sacramentos, conhecimento de um ofício, moralidade
(e "se não caíram na pobreza por sua culpa"); enfim
é preciso se informar direito de que maneira se comportam em casa, se mantêm paz entre si e com os vizinhos, se
têm o cuidado de criar os filhos no temor de Deus... se não deitam os filhos crescidos de sexo diferente juntos e com eles,
se não há libertinagem e carícias nas famílias, principalmente para com as filhas crescidas. Se há dúvida de que sejam
casados, é preciso pedir-lhes uma certidão de casamento.(17)
3) A estatização dos mecanismos de disciplina: na Inglaterra, foram grupos privados de inspiração religiosa que,
muito tempo, realizaram as funções de disciplina social.(18) Na França, se uma parte desse papel ficou nas mãos das
sociedades de patronatos ou de auxílio, outra - e sem dúvida a mais considerável - foi muito cedo ocupada pelo sistema
policial.
A organização de uma polícia centralizada durante muito tempo foi considerada pêlos contemporâneos como a
expressão mais direta do absolutismo real; o soberano quisera ter
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um magistrado a quem pudesse confiar diretamente suas ordens, seus recados, suas intenções, e fosse encarregado da
execução das ordens e das cartas de prego.(19)
Com efeito ao mesmo tempo em que retomavam um certo número de funções preexistentes - procura dos
criminosos, vigilância urbana, controle económico e político - os chefes de polícia e a chefia geral que os coroava em
Paris as transpunham para uma máquina administrativa, unitária e rigorosa:
Todos os raios de força e de instrução que partem da circunferência chegam ao chefe geral... É ele que faz funcionar
as rodas cujo conjunto produz a ordem e a harmonia. Os efeitos de sua administração só podem ser bem comparados aos
movimentos dos corpos celestes.(20)
Mas se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado, e se foi mesmo
diretamente ligada ao centro da soberania política, o tipo de poder que exerce, os mecanismos que põe em funcionamento
e os elementos aos quais ela os aplica são específicos. É um aparelho que deve ser coextensivo ao corpo social inteiro, e
não só pêlos limites extremos que atinge, mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega. O poder policial
deve-se exercer "sobre tudo": não é entretanto a totalidade do Estado nem do reino como corpo visível e invisível do
monarca; é a massa dos acontecimentos, das ações, dos comportamentos, das opiniões -"tudo o que acontece"(21); o
objeto da polícia são essas "coisas de todo instante", essas "coisas à-toa" de que falava Catarina II em sua Grande
Instrução.(22) Com a polícia estamos no indefinido de um controle que procura idealmente atingir o grão mais elementar,
o fenómeno mais passageiro do corpo social:
O ministério dos magistrados e oficiais de polícia é dos mais importantes; os objetos que ele abarca são de certo
modo indefinidos, só podemos percebê-los por um exame suficientemente detalhado(23): o infinitamente pequeno do
poder político.
E para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente,
capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto que
transforme todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de olhos postados em toda parte, atenções móveis e
sempre alerta, uma longa rede hierarquizada, que, segundo Lê Maire, comporta para Paris os 48 comissários, os 20
inspetores, depois os "observadores", pagos regularmente, os "moscas abjetas" retribuídos por dia, depois os
denunciadores, qualificados de acordo com a tarefa, enfim as prostitutas. E essa incessante observação deve-se acumular
numa série de relatórios e de registros; ao longo de todo o século XVIII, um imenso texto policial tende a recobrir a
sociedade graças a uma organização documentária complexa.(24) E ao contrário dos métodos de escrita judiciária ou
administrativa, o que é assim registrado são comportamentos, atitudes, virtualidades, suspeitas - uma tomada de contas
permanente do comportamento dos indivíduos.
176 ▲
Ora, é preciso notar que esse controle policial, se está inteiro "na mão do rei", não funciona numa só direção. É na
realidade um sistema de entrada dupla: tem que responder, ligando o aparelho de justiça às vantagens imediatas do rei;
mas é também capaz de responder às solicitações de baixo; em sua imensa maioria, as famosas cartas de prego, que foram
muito tempo símbolo do arbítrio real e que politicamente desqualificaram a prática da detenção, eram na realidade
solicitadas por famílias, mestres, notáveis locais, habitantes de bairros, curas de paróquia e tinham por função fazer
sancionar com um internamento toda uma infrapenalidade, a da desordem, da agitação, da desobediência, do mau
comportamento; o que Ledoux queria expulsar de sua cidade arquite-turalmente perfeita, e que chamava os "delitos de
falta de vigilância". Em suma, a polícia do século XVIII, a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos criminosos e de
instrumento para o controle político dos complôs, dos movimentos de oposição ou das revoltas, acrescenta uma função
disciplinar. Função complexa, pois une o poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas na
sociedade; pois, entre essas diversas instituições fechadas de disciplina (oficinas, exércitos, escolas), estende uma rede
intermediária, agindo onde aquelas não podem intervir, disciplinando os espaços não disciplinares; mas que ela recobre,
liga entre si, garante com sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina. "O soberano, com uma polícia
disciplinada, acostuma o povo à ordem e à obediência".(25)
A organização do aparelho policial no século XVIII sanciona uma generalização das disciplinas que alcança as
dimensões do Estado. Se bem que a polícia tenha estado ligada da maneira mais explícita a tudo o que, no poder real,
excedia o exercício da justiça regulamentada, compreende-se por que a polícia pôde resistir com um mínimo de
modificações à reorganização do poder judiciário; e por que ela não parou de lhe impor cada vez mais pesadamente, até
hoje, suas prerrogativas; é sem dúvida porque ela é seu braço secular; mas é também porque bem melhor que a instituição
judiciária, ela se identifica, por sua extensão e seus mecanismos, com a sociedade de tipo disciplinar. Seria entretanto
inexato pensar que as funções disciplinares tenham sido confiscadas e absorvidas definitivamente por um aparelho de
Estado.
A "disciplina" não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma
modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de
aplicação, de alvos; ela é uma "física" ou uma "anatomia" do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo seja de
instituições "especializadas" (as penitenciárias, ou as casas de correção do século XIX) seja de instituições que dela se
servem como instrumento essencial para um fim determinado (as casas de educação, os hospitais), seja de instâncias
preexistentes que nela encontram maneira de reforçar ou de reorganizar seus mecanismos internos de poder (um
177 ▲
dia se precisará mostrar como as relações intrafamiliares, essencialmente na célula pais-filhos, se "disciplinaram",
absorvendo desde a era clássica esquemas externos, escolares, militares, depois médicos, psiquiátricos, psicológicos, que
fizeram da família o local de surgimento privilegiado para a questão disciplinar do normal e do anormal), seja de
aparelhos que fizeram da disciplina seu princípio de funcionamento interior (disciplinação do aparelho administrativo a
partir da época napoleônica), seja enfim de aparelhos estatais que têm por função não exclusiva mas principalmente fazer
reinar a disciplina na escala de uma sociedade (a polícia).
Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas
fechadas, espécie de "quarentena" social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do "panoptismo". Não que a
modalidade disciplinar do poder tenha substituído todas as outras; mas porque ela se infiltrou no meio das outras,
desqualificando-as às vezes, mas servindo-lhes de intermediária, ligando-as entre si, prolongando-as, e principalmente
permitindo conduzir os efeitos de poder até os elementos mais ténues e mais longínquos. Ela assegura uma distribuição
infinitesimal das relações de poder.
Poucos anos depois de Bentham, Julius redigia a certidão de nascimento dessa sociedade.(26) Falando do princípio
panóptico, dizia que nele se via bem mais que um talento arquitetural: um acontecimento na "história do espírito
humano". Aparentemente, não passa da solução de um problema técnico; mas através dela se constrói um tipo de
sociedade. A Antiguidade foi uma civilização do espetáculo. "Tornar acessível a uma multidão de homens a inspeção de
um pequeno número de objetos": a esse problema respondia a arquitetura dos templos, dos teatros e dos circos. Com o
espetáculo predominavam a vida pública, a intensidade das festas, a proximidade sensual. Naqueles rituais em que corria
sangue, a sociedade encontrava vigor e formava um instante como que um grande corpo único: A Idade Moderna coloca o
problema contrário:
Proporcionar a um pequeno número, ou mesmo a um só, a visão instantânea de uma grande multidão.
Numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública, mas os indivíduos
privados por um lado, e o Estado por outro, as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao
espetáculo:
No tempo moderno, estava reservado à influência sempre crescente do Estado, à sua intervenção cada dia mais
profunda em todos os detalhes e relações da vida social, aumentar e aperfeiçoar as garantias estatais, utilizando e
dirigindo para essa grande finalidade a construção e a distribuição de edifícios destinados a vigiar ao mesmo tempo uma
grande multidão de homens.
Julius via como um processo histórico cabalmente realizado o que Bentham descrevera como um programa técnico.
Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância; sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em
178 ▲
profundidade; atrás da grande abstração da troca, se processa o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os
circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo dos sinais define os pontos
de apoio do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo
é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos. Somos bem menos gregos que pensamos. Não
estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós
mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens. A importância, na mitologia histórica, da personagem napoleônica,
tem talvez aí uma de suas origens: encontra-se no ponto de junção do exercício monárquico e ritual da soberania e do
exercício hierárquico e permanente da disciplina indefinida. É aquele que descortina tudo com um só olhar, mas a que
nenhum detalhe, por ínfimo que seja, escapa jamais:
Podeis julgar que nenhuma parte do Império está privada de vigilância, que nenhum crime, nenhum delito, nenhuma
contravenção deve permanecer sem punição, e que o olho do génio que tudo sabe acender abarca o conjunto dessa vasta
máquina, sem que o mínimo detalhe lhe possa escapar.(27)
A sociedade disciplinar, no momento de sua plena eclosão, assume ainda com o Imperador o velho aspecto do poder
de espetáculo. Como monarca ao mesmo tempo usurpador do antigo trono e organizador do novo Estado, ele recolheu
numa figura simbólica e derradeira todo o longo processo pelo qual os faustos da soberania, as manifestações
necessariamente espetaculares do poder apagaram-se um por um no exercício cotidiano da vigilância, num panoptismo
em que a penetração dos olhares entrecruzados há de em breve tornar inúteis a águia e o sol.
A formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo número de amplos processos históricos no interior dos
quais ela tem lugar: económicos, jurídico-políticos, científicos, enfim.
1) De uma maneira global, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das
multiplicidades humanas. É verdade que não há nisso nada de excepcional, nem mesmo de característico: a qualquer
sistema de poder se coloca o mesmo problema. Mas o que é próprio das disciplinas, é que elas tentam definir em relação
às multiplicidades uma tática de poder que responde a três critérios: tornar o exercício do poder o menos custoso possível
(economicamente, pela parca despesa que acarreta; politicamente, por sua discrição, sua fraca exteriorização, sua relativa
invisibilidade, o pouco de resistência que suscita); fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados a seu
máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível, sem fracasso, nem lacuna; ligar enfim esse crescimento
"económico" do poder
179 ▲
e o rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exerce (sejam os aparelhos pedagógicos, militares, industriais,
médicos), em suma fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema. Esse triplo
objetivo das disciplinas responde a uma conjuntura histórica bem conhecida. É por um lado a grande explosão
demográfica do século XVIII: aumento da população flutuante (fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina; é um
processo de antinomadismo); mudança da escala quantitativa dos grupos que importa controlar ou manipular (do começo
do século XVII às vésperas da Revolução Francesa, a população escolar se multiplicou, como sem dúvida a população
hospitalizada; o exército em tempo de paz contava no fim do século XVIII mais de 200.000 homens). O outro aspecto da
conjuntura é o crescimento do aparelho de produção, cada vez mais extenso e complexo, cada vez mais custoso também e
cuja rentabilidade urge fazer crescer. O desenvolvimento dos modos disciplinares de proceder responde a esses dois
processos ou antes sem dúvida à necessidade de ajustar sua correlação. Nem as formas residuais do poder feudal, nem as
estruturas da monarquia administrativa, nem os mecanismos locais de controle, nem o emaranhado instável que formavam
todos juntos podia desempenhar esse papel: impedia-os de fazê-lo a extensão lacunosa e sem regularidade de sua rede, seu
funcionamento muitas vezes conflitante, mas principalmente o caráter "dispendioso" do poder exercido. Dispendioso em
vários sentidos: porque diretamente custava muito ao Tesouro, porque o sistema dos ofícios venais ou o da cobrança dos
impostos pesava de maneira indireta e muito sobre a população, porque as resistências que encontrava o arrastavam a um
ciclo de reforço perpétuo, porque procedia essencialmente por retirada (retirada de dinheiro ou de produtos pelo fisco
monárquico, senhorial, eclesiástico; retirada de homens ou de tempo pêlos serviços obrigatórios ou pêlos alistamentos,
pelo encarceramento de vagabundos ou seu banimento). O desenvolvimento das disciplinas marca a aparição de técnicas
elementares do poder que derivam de uma economia totalmente diversa: mecanismos de poder que, em vez de vir "em
dedução", integram-se de dentro à eficácia produtiva dos aparelhos, ao crescimento dessa eficácia, e à utilização do que
ela produz. As disciplinas substituem o velho princípio "retirada-violência" que regia a economia do poder pelo princípio
"suavidade-produção-lucro". Devem ser tomadas como técnicas que permitem ajustar, segundo esse princípio, a
multiplicidade dos homens e a multiplicação dos aparelhos de produção (e como tal deve-se entender não só "produção"
propriamente dita, mas a produção de saber e de aptidões na escola, a produção de saúde nos hospitais, a produção de
força destrutiva com o exército).
Nessa tarefa de ajustamento, a disciplina encontra alguns problemas a resolver, para os quais a antiga economia do
poder não estava suficientemente aparelhada. Pode fazer diminuir a "desutilidade" dos fenómenos de massa:
180 ▲
reduzir aquilo que, numa multiplicidade, faz com que esta seja muito menos manejável que uma unidade; reduzir o
que se opõe à utilização de cada um de seus elementos e de sua soma; reduzir tudo o que nela possa anular as vantagens
do número; é por isso que a disciplina fixa; ela imobiliza ou regulamenta os movimentos; resolve as confusões, as
aglomerações compactas sobre as circulações incertas, as repartições calculadas. Ela deve também dominar todas as
forças que se formam a partir da própria constituição de uma multiplicidade organizada; deve neutralizar os efeitos de
contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações
espontâneas, conluios - tudo o que pode se originar das conjunções horizontais. Daí o fato de as disciplinas utilizarem
processos de separação e de verticalidade, de introduzirem entre os diversos elementos de mesmo plano barreiras tão
estanques quanto possível, de definirem redes hierárquicas precisas, em suma de oporem à força intrínseca e adversa da
multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante. Elas devem também fazer crescer a utilidade singular
de cada elemento da multiplicidade, mas por meios que sejam os mais rápidos e menos custosos, ou seja, utilizando a
própria multiplicidade como instrumento desse crescimento: daí, para extrair dos corpos o máximo de tempo e de forças,
esses métodos de conjunto que são os horários, os treinamentos coletivos, os exercícios, a vigilância ao mesmo tempo
global e minuciosa. É preciso, além disso, que as disciplinas façam crescer o efeito de utilidade próprio às
multiplicidades, e que tornem cada uma delas mais útil que a simples soma de seus elementos; é para fazer crescer os
efeitos utilizáveis do múltiplo que as disciplinas definem táticas de distribuição, de ajustamento recíproco dos corpos, dos
gestos e dos ritmos, de diferenciação das capacidades, de coordenação recíproca em relação a aparelhos ou a tarefas.
Enfim, a disciplina tem que fazer funcionar as relações de poder não acima, mas na própria trama da multiplicidade, da
maneira mais discreta possível, articulada do melhor modo sobre as outras funções dessas multiplicidades, e também o
menos dispendiosamente possível: atendem a isso instrumentos de poder anónimos e coextensivos à multiplicidade que
regimentam, como a vigilância hierárquica, o registro contínuo, o julgamento e a classificação perpétuos. Em suma,
substituir um poder que se manifesta pelo brilho dos que o exercem, por um poder que objetiva insidiosamente aqueles
aos quais é aplicado; formar um saber a respeito destes, mais que patentear os sinais faustosos da soberania. Em uma
palavra, as disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das
multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que, justamente para torná-las úteis, deve regê-las. Uma
multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge o limiar da disciplina quando a relação
de uma para com a outra torna-se favorável.
181 ▲
Se a decolagem económica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, podese
dizer, talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação a
formas de poder tradicionais, rituais, dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma
tecnologia minuciosa e calculada da sujeição. Na verdade os dois processos, acumulação de homens e acumulação de
capital, não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o
crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mante-los e de utilizá-los; inversamente, as técnicas
que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o movimento de acumulação de capital. A um nível
menos geral, as mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do trabalho, e a elaboração das maneiras de
proceder disciplinares mantiveram um conjunto de relações muito próximas.(28) Cada uma das duas tornou possível a
outra, e necessária; cada uma das duas serviu de modelo para a outra. A pirâmide disciplinar constituiu a pequena célula
de poder no interior da qual a separação, a coordenação e o controle das tarefas foram impostos e tornaram-se eficazes; e
o quadriculamen-to analítico do tempo, dos gestos, das forças dos corpos, constituiu um esquema operatório que pôde
facilmente ser transferido dos grupos a submeter para os mecanismos da produção; a projeção maciça dos métodos
militares sobre a organização industrial foi um exemplo dessa modelação da divisão do trabalho a partir de esquemas de
poder. Mas em compensação a análise técnica do processo de produção, sua decomposição "maquinal" se projetaram
sobre a força de trabalho que tinha como tarefa realizá-lo: a constituição dessas máquinas disciplinares onde são
compostas e assim amplificadas as forças individuais que elas associam é o efeito dessa projeção. Digamos que a
disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ónus reduzida como força "política", e
maximalizada como força útil. O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder
disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja "anatomia política", em uma
palavra, podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas.
2) A modalidade panóptica do poder - ao nível elementar, técnico, humildemente físico em que se situa — não está
na dependência imediata nem no prolongamento direto das grandes estruturas jurídico-políticas de uma sociedade; ela não
é entretanto absolutamente independente. Historicamente, o processo pelo qual a burguesia se tornou no decorrer do
século XVIII a classe politicamente dominante, abrigou-se atrás da instalação de um quadro jurídico explícito, codificado,
formalmente igualitário, e através da organização de um regime de tipo parlamentar e representativo. Mas o
desenvolvimento e a
182 ▲
generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente, obscura, desse processo. A forma jurídica geral
que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e
físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas.
E se, de uma maneira formal, o regime representativo permite que direta ou indiretamente, com ou sem revezamento, a
vontade de todos forme a instância fundamental da soberania, as disciplinas dão, na base, garantia da submissão das
forças e dos corpos. As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas. O contrato
podia muito bem ser imaginado como fundamento ideal do direito e do poder político; o panoptismo constituía o processo
técnico, universalmente difundido, da coerção. Não parou de elaborar em profundidade as estruturas jurídicas da
sociedade, para fazer funcionar os mecanismos efetivos do poder ao encontro dos quadros formais de que este dispunha.
As "Luzes" que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas.
Aparentemente as disciplinas não constituem nada mais que um infradi-reito. Parecem prolongar, até um nível
infinitesimal das existências singulares, as formas gerais definidas pelo direito; ou, ainda, aparecem como maneiras de
aprendizagem que permitem aos indivíduos se integrarem a essas exigências gerais. Constituiriam o mesmo tipo de direito
fazendo-o mudar de escala, e assim tornando-o mais minucioso e sem dúvida mais indulgente. Temos antes que ver nas
disciplinas uma espécie de contradireito. Elas têm o papel preciso de introduzir assimetrias insuperáveis e de excluir
reciprocidades. Em primeiro lugar porque a disciplina cria entre os indivíduos um laço "privado", que é uma relação de
limitações inteiramente diferente da obrigação contratual; a aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de
contrato; a maneira como ela é imposta, os mecanismos que faz funcionar, a subordinação não reversível de uns em
relação aos outros, o "mais-poder" que é sempre fixado do mesmo lado, a desigualdade de posição dos diversos
"parceiros" em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o laço contratual, e permitem sistematicamente
falsear este último a partir do momento em que tem por conteúdo um mecanismo de disciplina. Sabemos, por exemplo,
quantos procedimentos reais acomodam a seus objetivos a função jurídica do contrato de trabalho: a disciplina de oficina
não é o menos importante. Além disso, enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas
universais, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno
de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limite, desqualificam e invalidam. De
qualquer modo, no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle e fazem funcionar as assimetrias de seu poder,
183 ▲
elas efetuam uma suspensão, nunca total, mas também nunca anulada, do direito. Por regular e institucional que seja, a
disciplina, em seu mecanismo, é um "contradireito". E se o juridismo universal da sociedade moderna parece fixar limites
ao exercício dos poderes, seu panoptismo difundido em toda parte faz funcionar, ao arrepio do direito, uma maquinaria ao
mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes e torna vãos os limites que
lhe foram traçados. As disciplinas ínfimas, os panoptismos de todos os dias podem muito bem estar abaixo do nível de
emergência dos grandes aparelhos e das grandes lutas políticas. Elas foram, na genealogia da sociedade moderna, com a
dominação de classe que a atravessa, a contrapartida política das normas jurídicas segundo as quais era redistribuído o
poder. Daí sem dúvida a importância que se dá há tanto tempo aos pequenos processos da disciplina, a essas espertezas àtoa
que ela inventou, ou ainda aos saberes que lhe emprestam uma face confessável; daí o receio de se desfazer delas se
não lhes encontramos substituto; daí a afirmação de que estão no próprio fundamento da sociedade, e de seu equilíbrio,
enquanto são uma série de mecanismos para desequilibrar definitivamente e em toda parte as relações de poder; daí o fato
de nos obstinarmos a fazê-las passar pela forma humilde mas concreta de qualquer moral, enquanto elas são um feixe de
técnicas físico-políticas.
E para voltar ao problema dos castigos legais, a prisão com toda a tecnologia corretiva de que se acompanha deve
ser recolocada aí: no ponto em que se faz a torsão do poder codificado de punir, em um poder disciplinar de vigiar; no
ponto que os castigos universais das leis vêm aplicar-se seletivamente a certos indivíduos e sempre aos mesmos; no ponto
em que a requalificação do sujeito de direito pela pena se torna treinamento útil do criminoso; no ponto em que o direito
se inverte e passa para fora de si mesmo, e em que o contradireito se torna o conteúdo efetivo e institucionalizado das
formas jurídicas. O que generaliza então o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de
direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos.
3) Tomados um por um, a maior parte desses processos tem uma longa história atrás de si. Mas o ponto da novidade,
no século XVIII, é que, compondo-se e regularizando-se, eles atingem o nível a partir do qual formação de saber e
majoração de poder se reforçam regularmente segundo um processo circular. As disciplinas atravessam então o limiar
"tecnológico". O hospital primeiro, depois a escola, mais tarde ainda a oficina, não foram simplesmente "postos em
ordem" pelas disciplinas; tornaram-se, graças a elas, aparelhos tais que qualquer mecanismo de objetivação pode valer
neles como instrumento de sujeição, e qualquer crescimento de poder dá neles lugar a conhecimentos possíveis; foi a
partir desse laço, próprio dos sistemas tecnológicos, que se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica, a
psiquiatria, a
184 ▲
psicologia da criança, a psicopedagogia, a racionalização do trabalho. Duplo processo, portanto: arrancada epistemológica
a partir de um afinamento das relações de poder; multiplicação dos efeitos de poder graças à formação e à acumulação de
novos conhecimentos.
A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo histórico: o desenvolvimento mais ou menos
na mesma época de várias outras tecnologias - agronómicas, industriais, económicas. Mas temos que reconhecer: ao lado
das indústrias mineiras, da química que nascia, dos métodos de contabilidade nacional, ao lado dos altos-fornos ou da
máquina a vapor, o panoptismo foi pouco celebrado. Só se reconhece nele uma pequena utopia estranha, o sonho de uma
maldade - um pouco como se Bentham tivesse sido o Fourier de uma sociedade policial, cujo Falanstério houvesse tido a
forma do Panóptico. E, entretanto, tinha-se aí a fórmula abstraia de uma tecnologia bem real, a dos indivíduos. Que ela
tenha colhido poucos elogios, há muitas razões que explicam; a mais evidente é que os discursos a que deu lugar
raramente adquiriram, a não ser para as classificações académicas, o status de ciências; mas a mais real é sem dúvida a de
que o poder que ela põe em funcionamento e que ela permite aumentar é um poder direto e físico que os homens exercem
uns sobre os outros. Para um ponto de chegada sem glória, uma origem difícil de confessar. Mas seria injusto confrontar
os processos disciplinares com invenções como a máquina a vapor ou o microscópio de Amici. Eles são muito menos; e
entretanto, de certo modo, são muito mais. Se fosse preciso encontrar para eles um equivalente histórico ou pelo menos
um ponto de comparação, seria antes do lado da técnica "inquisitorial".
O século XVIII inventou as técnicas da disciplina e o exame, um pouco sem dúvida como a Idade Média inventou o
inquérito judiciário. Mas por vias totalmente diversas. O processo do inquérito, velha técnica fiscal e administrativa, se
desenvolveu principalmente com a reorganização da Igreja e o crescimento dos Estados principescos nos séculos XII e
XIII. Foi então que ele penetrou com a amplitude que se sabe na jurisprudência dos tribunais eclesiásticos, depois nas
cortes leigas. O inquérito como pesquisa autoritária de uma verdade constatada ou atestada se opunha assim aos antigos
processos do juramento, da ordália, do duelo judiciário, do julgamento de Deus ou ainda da transação entre particulares. O
inquérito era o poder soberano que se arrogava o direito de estabelecer a verdade através de um certo número de técnicas
regulamentadas. Ora, embora o inquérito, desde aquele momento, se tenha incorporado à justiça ocidental (e até em
nossos dias), não se deve esquecer sua origem política, sua ligação com o nascimento dos Estados e da soberania
monárquica, nem tampouco sua derivação posterior e seu papel na formação do saber. O inquérito foi com efeito a peça
rudimentar e fundamental, para a
185 ▲
constituição das ciências empíricas; foi a matriz jurídico-política desse saber experimental, que, como se sabe, teve seu
rápido surto no fim da Idade Média. É talvez verdade que a matemática, na Grécia, nasceu das técnicas da medida; as
ciências da natureza, em todo caso, nasceram por um lado, no fim da Idade Média, das práticas do inquérito. O grande
conhecimento empírico que recobriu as coisas do mundo e as transcreveu na ordenação de um discurso indefinido que
constata, descreve e estabelece os "fatos" (e isto no momento em que o mundo ocidental começava a conquista económica
e política desse mesmo mundo) tem sem dúvida seu modelo operatório na Inquisição - essa imensa invenção que nosso
recente amolecimento colocou na sombra da memória. Ora, o que esse inquérito político-jurídico, administrativo e
criminal, religioso e leigo foi para as ciências da natureza, a análise disciplinar foi para as ciências do homem. Essas
ciências com que nossa "humanidade" se encanta há mais de um século têm sua matriz técnica na minúcia tateante e
maldosa das disciplinas e de suas investigações. Estas são talvez para a psicologia, a pedagogia, a psiquiatria, a
criminologia, e para tantos outros estranhos conhecimentos, o que foi o terrível poder de inquérito para o saber calmo dos
animais, das plantas ou da terra. Outro poder, outro saber. No limiar da era clássica, Bacon, o homem da lei e do Estado,
tentou fazer para as ciências empíricas a metodologia do inquérito. Quem será o Grande Vigia que fará a do exame, para
as ciências humanas? Tal não sucederá apenas se não for possível. Pois, se é verdade que o inquérito, ao se tornar uma
técnica para as ciências empíricas, se destacou do processo inquisitória! em que tinha suas raízes históricas, já o exame
permaneceu o mais próximo do poder disciplinar que o formou. É ainda e sempre uma peça intrínseca das disciplinas. É
claro, ele parece ter sofrido uma depuração especulativa, ao se integrar em ciências como a psiquiatria, a psicologia. E
efetivamente, sob a forma de testes, de entrevistas, de interrogatórios, de consultas, o vemos retificar aparentemente os
mecanismos da disciplina: a psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou
psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas
apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar a outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou
formalizada, o esquema de poder saber próprio a toda disciplina."9 O grande inquérito que deu lugar às ciências da
natureza destacou-se de seu modelo político-jurídico; o exame, em compensação, continua preso à tecnologia disciplinar.
O procedimento do inquérito na Idade Média foi imposto à velha justiça acusatória, mas por um processo vindo de
cima; já a técnica disciplinar invadiu, insidiosamente e como que por baixo, uma justiça penal que é ainda, em seu
princípio, inquisitória. Todos os grandes movimentos de derivação que caracterizam a penalidade moderna - a
problematização do criminoso por trás de
186 ▲
seu crime, a preocupação com uma punição que seja correção, terapêutica, normalização, a divisão do ato do julgamento
entre diversas instâncias que devem, segundo se espera, medir, avaliar, diagnosticar, curar, transformar os indivíduos -
tudo isso trai a penetração do exame disciplinar na inquisição judiciária.
O que agora é imposto à justiça penal como seu ponto de aplicação, seu objeto "útil", não será mais o corpo do
culpado levantado contra o corpo do rei; não será mais tampouco o sujeito de direito de um contrato ideal; mas o
indivíduo disciplinar. O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do
regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em
sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se
prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a
constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de
um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma
inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-la no infinito. O suplício completa logicamente um processo
comandado pela Inquisição. A "observação" prolonga naturalmente uma justiça invadida pêlos métodos disciplinares e
pêlos processos de exame. Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho
obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as
funções do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se
pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?
187 ▲
NOTAS
CAPÍTULO I
1. L. de Montgommery, La Milice française, edição de 1636, p. 6-7.
2. Ordenação de 20 de março de 1764.
3. Ibid.
4. Marechal de Saxe, Mês rêveries, t. I, avant-propos, p. 5.
5. J.-B. de La Salle, Traité sur lês obligations dês frères dês Écoles chrétiennes, edição de 1783, p. 238-239.
6. E. Geoffroy de Saint-Hilaire empresta essa declaração a Bonaparte, sobre a Introdução às Notions synthétiques et
historiques de philosophie naturelle.
7. J.B. de Treilhard, Motifs du code d'instruction criminelle, 1808, p. 14.
8. Escolherei os exemplos nas instituições militares, médicas, escolares e industriais. Outros exemplos poderiam ser
tomados na colonização, na escravidão, nos cuidados na primeira infância.
9. Cf. Ph. Aries, UEnfant et Ia famille, 1960, p. 308-313, e G. Snyders, La Pédagogie en France aux XVIIe etXVIIIe
siècles, 1965, p. 35-41.
10. L'ordonnance militairc. t. IXL, 25 de setembro de 1719. Cl. Ilustr. 5.
11. Daisy, Lê Royaume de France, 1745, p. 201 -209; memória anónima de 1775 (depósito da guerra, 3689 f. 156).
ANavereau,Lelogementetlesutensilesdesgensdeguerredel439àl789, 1924,p. 132-135. Cf. ilustrs. n° 5-6.
12. Projet de règlement pour Paciérie d'Amboise, Arquivos nacionais, f. 12, 1301.
13. Memória ao rei, a respeito da fábrica de tecido para velas de Angers, e in V. Dauphin, Recherches sur I'industrie
textile en anjou, 1913, p. 199.
14. Règlement pour Ia communauté dês files du Bom Pauster, in Delamare, Traité de Police, livro III, título V, p. 507. Cf.
também ilustr. n° 9.
15. Regulamento da fábrica de Saint-Maur, B.N. Ms, coleção Delamare. Manufactures III.
16. Cf. o que dizia La Métherie, visitando Lê Cresot: "Os edifícios para um tão belo estabelecimento e uma tão grande
quantidade de operários deviam ter uma extensão suficiente, para que não houvesse confusão entre os operários durante o
tempo de trabalho" (Journal de physique, t. XXX, 1787, p. 66).
17. Cf. C. de Rochemontei, Un collège au XVII siècle, 1889, t. III, p. 51s.
18. J.-B. de La Salle, Conduite dês écoles chrétiennes, B.N. Ms 11759, p. 248-249. Um pouco mais cedo Batencour
propunha que as salas de aula fossem divididas em três partes: "A mais respeitável para os que aprendem latim... É de se
desejar que haja tantos lugares nas mesas quantos escritores houver, para evitar as confusões que ordinariamente fazem os
preguiçosos". Em outra os que aprendem a ler: um banco para os ricos, um banco para os pobres, "para que os piolhos não
contaminem". Terceira localização, para os recém-chegados: "quando sua capacidade for reconhecida, ser-lhes-á atribuído
um lugar" (M.I.D.B., Instruction méthodique pour Pécole paroissiale, 1669, p. 56-57). Cf. ilustrações n° 10-11.
19. J.A. de Guibert, Essai general de tactique, 1772, vol. I, Discurso preliminar, p. XXXVI.
20. Artigo primeiro do regulamento da fábrica de Saint-Maur.
21. L. de Boussanelle, Lê Bom Militaire, 1770, p. 2. Sobre o caráter religioso da disciplina no exército sueco, cf. The
Swedish Discipline, Londres, 1632.
22. J.-B. de La Salle, Conduite dês écoles chrétiennes, B.N. Ms 11759, p. 27-28.
188 ▲
23. Bally, citado por R.R. Tronchot, L'Enseigement mutuei en France, tese datilografada, vol. I, p. 21.
24. Projet de réglement pour Ia fabrique d'Amboise, art. 2, Arquivos nacionais, F. 12 1301. Especifica-se que isso vale
também para os que trabalham com peças.
25. Regulamento provisório para a fábrica de M.S. Oppenheim 1809 art. 7-8, in Hayem, Mémoires et documents pour
revenir à Phistore du commerce.
26. Regulamento para a fábrica de M.S. Oppenheim, art. 16.
27. Projet de réglement pour Ia fabrique d'Amboise, art. 4.
28. L. de Montgommery, La Milice française, ed. de 1636, p. 86.
29. Ordonnance du ler janvier, 1766, pour régler Pexercice de Pinfanterie.
30. J.-B. de La Salle, Conduite dês écoles chrétiennes, ed. de 1828, p. 63-64. Cf. ilustração n° 8.
31. Ordonnance du ler janvier 1766, título XI, art. 2.
32. Só se pode atribuir o sucesso das tropas prussianas "à excelência de sua disciplina e de seu exercício; a escolha do
exercício não é portanto indiferente: foi trabalhando na Prússia durante quarenta anos, com uma aplicação sem descanso"
(Marechal de Saxe, carta ao conde d'Argenson, 25 de fevereiro de 1750. Arsenal. Ms 2701 e Mês rêveries, t. II, p. 249).
Cf. ilustrações nos 3 e 4.
33. Exercício de escrita: ... "9: Mão sobre os joelhos. Essa ordem é dada por um toque de campanhia; 10: mãos sobre a
mesa, cabeça alta; 11: limpar as lousas: todos limpam as lousas com um pouco de saliva, ou melhor, com um trapo; 12:
mostrar as lousas; 13 monitores, inspecionar. Eles vão ver as lousas de seus adjuntos e em seguida as de seu banco. Os
adjuntos visitam as de seu banco, e todos ficam no lugar.
34. Sammuel Bernard, Rapport du 30 octobre 1816 à Ia sociète de Penseigment mutuei.
35. J.A. de Guibert, Essai general de tactique, 1772,1, p. 21-22.
36. Essa mistura aparece claramente em certas classes do contrato de aprendizagem: o mestre é obrigado a dar ao aluno -
mediante seu dinheiro e seu trabalho - todo o seu saber, sem guardar nenhum segredo; senão, é passível de multa. Cf., por
exemplo, F. Grosrenaud, La Corporation ouorière à Besançon, 1907, p. 62.
37. Cf. E. Gerspach, La Manufacture dês Gobelins, 1892.
38. Era o projeto de J. Servan. Lê Soldat citoyen, 1780, p. 456.
39. Regulamento de 1743 para a infantaria prussiana, Arsenal. Ms. 4076.
40. F. de Ia Noue recomendava a criação de academias militares no fim do século XVI, pretendia que lá se aprendesse "a
manejar os cavalos, correr com a adaga no gibão, e às vezes armado, atirar, voltear, saltar; se se acrescentassem nadar e
lutar, só seria melhor, pois tudo isso torna a pessoa mais robusta e mais hábil". Discours politiques et militaires, ed. 1614,
p. 181-182.
41. Instruction pour 1'exercise de Pinfanterie, 14 de maio de 1754.
42. Ibid.
43. Demia, Réglement pour lês écoles de Ia ville de Lyon, 1716, p. 19-20.
44. Cf. G. Codina Meir, Aux sources de Ia pédagogie dês Jésuites, 1968, p. 160s.
45. Por intermédio das escolas de Liège, Devenport, Zwolle, Wesel; e graças também a Jean Sturm, a sua memória de
1533 para a organização de um ginásio em Estrasburgo. Cf. Bulletin de Ia société d'histoire du protestantisme, t. XXV, p.
499-505.
Note-se que as relações entre o exército, a organização religiosa e a pedagogia são muito complexas. A "decúria",
unidade do exército romano, é encontrada nos conventos beneditinos, como unidade de trabalho e sem dúvida de
vigilância. Os irmãos da vida comum a tomaram emprestada, e a transpuseram para sua organização pedagógica: os
alunos são agrupados por 10. Essa é a unidade que os jesuítas retomaram na cenografia de seus colégios, reintroduzindo aí
um modelo militar. Mas a decúria por sua vez foi dissolvida em proveito de um esquema ainda mais militar com fileiras,
colunas, linhas.
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46. J.A. de Guibert, Essai general de tactique, 1772, I, 18. Para dizer a verdade, esse velho problema retomara atualidade
no século XVIII, pelas razões económicas e técnicas que veremos; e o "preconceito" em questão muito frequentemente
discutido fora do próprio Guibert (em torno de Folard, de Pireh, de Mesnil-Durard).
47. No sentido em que esse termo foi empregado depois de 1759.
48. Pode-se datar grosso modo a partir da batalha de Steinkerque (1699) o movimento que generalizou o fuzil.
49. Sobre essa importância de geometria, ver J. de Beausobre: "A ciência da guerra é essencialmente geométrica... A
distribuição de um batalhão e de um esquadrão sobre toda uma frente e uma certa altura é apenas o efeito de uma
geometria profunda ainda ignorada" (Commentaires sur lês défenses dês places, 1757,1. II, p. 307).
50. K. Marx, Lê Capital, livro 1,4* seção, cap. XIII. Marx insiste várias vezes na analogia entre os problemas de divisão
do trabalho c os de tática militar. Por exemplo: "Da mesma forma que a força de ataque de um esquadrão de cavalaria ou
a força de resistência de um regimento de cavalaria diferem essencialmente da força das somas individuais... da mesma
maneira a soma das forças mecânicas de operários isolados difere da força mecânica que se desenvolve desde que eles
funcionam conjunta e simultaneamente numa só operação indivisa" (Ibid.).
51. J.A. de Guibert, Essai general de tactique, 1772, t. I, p. 27.
52. Ordenação sobre o exercício da infantaria, 6 de maio de 1755.
53. Harvouin, "Rapport sur Ia généralité de Tours", in P. Marchegay, Archives d'Anjou, t. II, p. 360.
54. Samuel Bernard, "Rapport du 30 octobre 1816, à Ia société de 1'Enseignement mutuei".
55. L. de Boussanelle, Lê Bom Militaire, 1770, p. 2.
56. J.-B. de La Salle, Conduite dês Écoles chrétiennes, 1828, p. 137-138. Cf. também Ch. Demia. Règlements pour lês
écoles de Ia ville de Lyon, 1716, p. 21.
57. Journal pour Pinstruction élémentaire, abril de 1816. Cf. R.R Tronchot, L'enseignement mutuei en
France, tese datilografada, I, que calculou que os alunos deviam receber mais de 200 ordens por dia (sem contar as ordens
excepcionais); só de manhã 26 ordens por voz, 23 por sinais, 37 batidas de campainha e 24 por apito, o que faz um toque
de campainha ou de apito cada 3 minutos.
58. J.A. de Guibert, Essai general de tactique, 1772, p. 4.
59. P. Joly de Maizeroy, Théorie de Ia guerre, 1777, p. 2.
60. J.A. de Guibert, Essai general de tactique, 1772, "Discours preliminares", p. XXIII-XXIV. Cf. o que dizia Marx a
respeito do exército e das formas da sociedade burguesa (carta a Engcls, 25 de setembro de 1857).
CAPÍTULO II
1. J.J. Walhausen, L'Art militaire pour Pinfanterie, 1615, p. 23.
2. Règlement pour Pinfanterie prussienne, trad. Franc., Arsenal, Ms. 1067, f. 144. Para os esquemas antigos, ver Praissac,
Lês discours militaires, 1623m, p. 27-28. Montgommery, La milice française, p. 77. Para os novos esquemas, cf. Beneton
de Morange, Histoire de Ia guerre, 1741, p. 61-64, e Dissertations sur lês Tentes; cf. também vários regulamentos como a
Instruction sur lê servicc dês règlements de Cavalerie dans lês camps, 29 de junho de 1753. Ver ilustração n° 7.
3. Citado em R. Laulan, L'École militaire de Paris, 1950, p. 117-118.
4. Arch. Nat. MM 666-669. J. Bentham conta que foi visitando a Escola Militar que seu irmão teve a primeira ideia do
Panopticon.
5. Ver ilustrações nos' 12, 13, 16.
6. Encyclopcdie, artigo "Manufacture".
190 ▲
7. Cournol, Considérations dMntérêt public sur lê droit d'exploiter lês mines, 1790, Arqu. Nac., A. XIII, 14.
8. Cf. K. Marx: "Essa função de vigilância, de direção e de mediação torna-se a função do capital, assim que o trabalho
que lhe é subordinado se torna cooperativo, e como função capitalista ela adquire características especiais" (O Capital,
livro I, quarta seção, cap. XIII).
9. Ml.D.B., Instruction méthodique pour Pécole paroissiale, 1669, p. 68-83.
10. Ch. Demia, Règlement pour lês écoles de Ia ville de Lyon, 1716, p. 27-29. Poderíamos notar um fenómeno do mesmo
género na organização dos colégios: durante muito tempo os "prefeitos" eram, independentemente dos professores,
encarregados da responsabilidade moral dos pequenos grupos de alunos. Depois de 1762, principalmente, vemos aparecer
um tipo de controle ao mesmo tempo mais administrativo e mais integrado à hierarquia: fiscais, mestres de bairro, mestes
subalternos. Cf. Dupont-Ferrier, Du colège de Clermont au lyeée Louisle-Grand, vol. I, p. 254 e 476.
11. Pictet de Rochemont, Journal de Genève, 5 dejaneiro de 1788.
12. Regulamento provisório para a fábrica de M. Oppenheim, 29 de setembro de 1809.
13. J.B. de Ia Salle, Conduite dês Écoles chrétiennes (1828), p. 204-205.
14. Ibidem.
15. Ch. Demia, Règlement pour lês écoles de Ia ville de Lyon, 1716, p. 17.
16. J.-B. de Ia Salle, Conduite dês Écoles chrétiennes, B.N., Ms. 11759, p. 156s. Temos aí a transposição do sistema das
indulgências.
17. Archives nationales, MM 658, 30 de março de 1758, e MM 666, 15 de setembro de 1763.
18. Sobre esse ponto é necessário se reportar às páginas essenciais de G. Canguilhem, Lê normal et lê pathologique, ed.
de 1866, p. 171-191.
19. Registre dês délibérations du bureau de 1'Hôtel-Dieu.
20. J.-B. de La Salle, Conduite dês Écoles chrétiennes, 1828, p. 160.
21. Cf. L'Enseignement et Ia diffusion dês sciences au XVIIIe, 1964, p. 360.
22. Sobre essa medalha, cf. o artigo de J. Jucquiot inLe Club français de Ia médaille, 4° trimestre de 1970, p. 50-54. Ver
ilustração n° 2.
23. Kropotkine, Autour d'une vie, 1902, p, 9. Devo essa referência a M.G. Ganguilhem.
24. M.I.D.B., Instruction méthodique pour 1'ccole paroissiale, 1669, p. 64.
CAPÍTULO III
1. Archives militaires de Vinccnnes, A 151691 se. Peça. Esse regulamento está, no essencial, de acordo com toda uma
série de outros que datam desta mesma época ou de um período anterior.
2. J. Bentham, Panopticon, Works, ed. Bowring, t. IV, p. 60-64. Ver ilustração n° 17.
3. No Post-script to the Panopticon, 1791, Bentham acrescenta galerias escuras pintadas de preto que fazem a volta ao
prédio de vigilância, permitindo cada uma observar dois andares de celas.
4. Ver ilustração n° 17. Bentham, em sua primeira versão do Panopticon, imagina também uma vigilância acústica, por
tubos que iam das celas à torre central. Abandonou-a no Post-script, talvez porque não pudesse introduzir assimetria e
impedir que os prisioneiros ouvissem o vigia tão bem quanto este os ouvia. Julius tentou aperfeiçoar um sistema de escuta
assimétrica (Leçons sur lês prisons, trad. Francesa, 1831, p. 18).
5. J. Bentham, Panopticon, Works, t. IV, p. 45.
6. G. Loisel, Histoire dês ménageries, 1912, vol. II, p. 104-107. Ver ilustração n° 14.
7. Ibid., p. 60-64.
191 ▲
8. J. bentham, Panopticon versus New South Wales. Works, ed. Bowring, t. IV, p. 177.
9. Ibid.. p. 40. Se Bentham deu destaque ao exemplo da penitenciária, é porque esta tem funções múltiplas para exercer
(vigilância, controle automático, confmamento, solidão, trabalho forçado, instrução).
10. Ibid., p. 65.
11. Ibid., p. 39.
12. Ao imaginar esse fluxo contínuo de visitantes que penetravam por um subterrâneo até a torre central, e de lá
observavam a paisagem circular do Panóptico, Bentham conheceria os Panoramas que Barkcr construía exatamente na
mesma época (o primeiro parece datar de 1787), e nos quais os visitantes, que vinham ocupar o lugar central, viam em
toda sua volta se desenrolar uma paisagem, uma cidade, uma batalha. Os visitantes ocupavam exatamente o lugar do olhar
soberano.
13. Ch. Demia, Règlement pour lês écoles de Ia ville de Lyon, 1716, p. 60-61.
14. Relatório de Talleyrand à Constituinte, 10 de setembro de 1791. Citado por A. Léon, La Révolution française et
1'éducation technique, 1968, p. 106.
15. Ch. Demia, Règlement pour lês écoles de Ia ville de Lyon, 1716, p. 39-40.
16. Na segunda metade do século XVIII, pensou-se muito em utilizar o exército como instância de vigilância e de
policiamento geral, permitindo vigiar a população. O exército, ainda a disciplinar no século XVII, é concebido como
"disciplinante". Cf. por ex. J. Servan, Lê Soldat citoyen, 1780.
17. Arsenal, ms. 2565. Nessa numeração, encontram-se numerosos regulamentos para as companhias de caridade dos
séculos XVII e XVIII.
18. Cf. L. Radzinovitz, The English Criminal Law, 1956, t. II, p. 203-214.
19. Nota de Duval, primeiro secretário de chefia de polícia, citada por Funck-Brentano, Catalogue dês manuscrits de Ia
bibliotèque de 1'Arsenal, t. IX, p. 1.
20. N.T. Dês Essarts, Dictionnaire universal de police, 1787, p. 344, 528.
21. Lê Maire, numa memória redigida a pedido de Sartine, para responder a dezesseis perguntas de Joseph II sobre a
polícia parisiense. Essa memória foi publicada por Gazier em 1879.
22. Suplemento à Instruction pour Ia rédaction d'un nouveau code, 1769, § 535.
23. N. Delamare, Traité de Ia police, 1705, prefácio sem numeração de página.
24. Sobre os registros da polícia no século XVIII, podemos nos reportar a M. Chassaigne, La Lieutenance générale de
police, 1906.
25. E. de Vattel, Lê Droit dês gens, 1768, p. 162.
26. N.H. Julius, Leçons sur lês prisons, trad. Francesa, 1831, vol. I, p. 384-386.
27. J.B. Treilhard, Motifs du code d'instruction criminelle, 1808, p. 14.
28. Cf. K. Marx, O Capital, livro I, 4* seção, cap. XIII. E a análise muito interessante de F. Guerry e D. Deleule, Lê Corps
productif, 1973.
29. Cf., quanto a este assunto, Michel Tort, Q.1,1974.
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Quarta Parte
PRISÃO
CAPÍTULO I
INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS
A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos. A forma-prisão
preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram,
por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar
deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los
numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir
sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e
úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena
por excelência. No fim do século XVIII e princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de detenção, é
verdade; e era coisa nova. Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos de coerção já elaborados em outros
lugares. Os "modelos" da detenção penal - Gand, Gloucester, Walnut Street -marcam os primeiros pontos visíveis dessa
transição, mais que inovações ou pontos de partida. A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente
um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à "humanidade". Mas também um momento importante
na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que
aqueles colonizam a instituição judiciária. Na passagem dos dois séculos, uma nova legislação define o poder de punir
como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada um
deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação
característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz "igual", um aparelho judiciário que se pretende
"autónomo", mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão,
"penadas sociedades civilizadas"(1).
Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo assumiu. Desde os primeiros anos do
século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade; e entretanto ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o
próprio funcionamento da sociedade, que relegou ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do
século XVIII haviam imaginado. Pareceu sem alternativa, e levada pelo próprio movimento da história:
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Não foi o acaso, não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e o edifício quase inteiro de
nossa escala penal atual: foi o progresso das ideias e a educação dos costumes.(2)
E se, em pouco mais de um século, o clima de obviedade se transformou, não desapareceu. Conhecem-se todos os
inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não "vemos" o que pôr em seu lugar.
Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.
Essa "obviedade" da prisão, de que nos destacamos tão mal, se fundamenta em primeiro lugar na forma simples da
"privação de liberdade". Como não seria a prisão a pena por excelência numa sociedade em que a liberdade é um bem que
pertence a todos da mesma maneira e ao qual cada um está ligado por um sentimento "universal e constante"?(3) Sua
perda tem portanto o mesmo preço para todos; melhor que a multa, ela é o castigo "igualitário". Clareza de certo modo
jurídica da prisão. Além disso ela permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do tempo. Há uma formasalário
da prisão que constitui, nas sociedades industriais, sua "obviedade" económica. E permite que ela pareça como
uma reparação. Retirando tempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a ideia de que a infração lesou,
mais além da vítima, a sociedade inteira. Obviedade econômico-moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em
dias, em meses, em anos e estabelece equivalências quantitativas delitos-duração. Daí a expressão tão frequente, e que
está tão de acordo com o funcionamento das punições, se bem que contrária à teoria estrita do direito penal, de que a
pessoa está na prisão para "pagar sua dívida". A prisão é "natural" como é "natural" na nossa sociedade o uso do tempo
para medir as trocas.(4)
Mas a obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel, suposto ou exigido, de aparelho para transformar
os indivíduos. Como não seria a prisão imediatamente aceita, pois se só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar
dócil, é reproduzir, podendo sempre acentuá-los um pouco, todos os mecanismos que encontramos no corpo social? A
prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de
qualitativamente diferente. Esse duplo fundamento - jurídico-econômico por um lado, técnico-disciplinar por outro - fez a
prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo funcionamento que lhe
deu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, é clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria
dado em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma "detenção legal" encarregada de um
suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer
funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento penal, desde o início do século
196 ▲
XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos.
Lembremos um certo número de fatos. Nos códigos de 1808 e de 1810, e nas medidas que os seguiram ou os
precederam imediatamente, o encarceramento nunca se confunde com a simples privação de liberdade. É, ou deve ser em
todo caso, um mecanismo diferenciado e finalizado. Diferenciado pois não deve ter: a mesma forma, consoante se trate de
um indiciado ou de um condenado, de um contraventor ou de um criminoso: cadeia, casa de correção, penitenciária
devem em princípio corresponder mais ou menos a essas diferenças, e realizar um castigo não só graduado em
intensidade, mas diversificado em seus objetivos. Pois a prisão tem um fim, apresentado de saída:
Como a lei inflige penas umas mais graves que outras, não pode permitir que o indivíduo condenado a penas leves
se encontre preso no mesmo local que o criminoso condenado a penas mais graves...; se a pena infligida pela lei tem como
objetivo principal a reparação do crime, ela pretende também que o culpado se emende.(5)
E deve-se requerer essa transformação aos efeitos internos do encarceramento. Prisão-castigo, prisão-aparelho:
A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar os condenados; os vícios da
educação, o contágio dos maus exemplos, a ociosidade... originaram crimes. Pois bem, tentemos fechar todas essas fontes
de corrupção; que sejam praticadas regras de sã moral nas casas de detenção; que, obrigados a um trabalho de que
terminarão gostando, quando dele recolherem o fruto, os condenados contraiam o hábito, o gosto e a necessidade da
ocupação; que se dêem respectivamente o exemplo de uma vida laboriosa; ela logo se tornará uma vida pura; logo
começarão a lamentar o passado, primeiro sinal avançado de amor pelo dever.(6)
As técnicas corretivas imediatamente fazem parte da armadura institucional da detenção penal.
Devemos lembrar também que o movimento para reformar as prisões, para controlar seu funcionamento, não é um
fenómeno tardio. Não parece sequer ter nascido de um atestado de fracasso devidamente lavrado. A "reforma" da prisão é
mais ou menos contemporânea da própria prisão. Ela é como que seu programa. A prisão se encontrou, desde o início,
engajada numa série de mecanismos de acompanhamento, que aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer
parte de seu próprio funcionamento, de tal modo têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de sua história.
Houve, imediatamente, uma tecnologia loquaz da prisão. Inquéritos: o de Chaptal já em 1801 (quando se tratava de fazer
o levantamento do que se podia utilizar para implantar na França o aparelho carcerário), a de Decazes em 1819, o livro de
Villermé publicado em 1820, o relatório sobre as penitenciárias preparado por Martignac em 1829, os inquéritos
conduzidos nos Estados Unidos por Beau-mont de Tocqueville em 1831, por Demetz e Blouet em 1835, os questionários
dirigidos por Montalivet aos diretores de penitenciárias e aos conselhos gerais
197 ▲
quando se está em pleno debate sobre o isolamento dos detentos. Sociedades, para controlar o funcionamento das prisões
e propor sua melhora: em 1818, é a muito oficial "Sociedade para a melhoria das prisões", um pouco mais tarde a
"sociedade das prisões" e diversos grupos filantrópicos. Inúmeras providências - portarias, instruções ou leis: desde a
reforma que a primeira Restauração havia previsto logo no mês de setembro de 1814, e que nunca foi aplicada, até à lei de
1844, preparada por Tocqueville e que por algum tempo encerrou um longo debate sobre os meios de tornar eficaz a
prisão. Programas para assegurar o funcionamento da máquina-prisão(7): programas de tratamento para os detentos;
modelos de arranjo material, alguns permanecendo puros projetos como os de Danjou, de Blouet, de Harou-Romain,
outros tomando forma em instruções (como a circular de 9 de agosto de 1841 sobre as construções das cadeias), outras
tornando-se arquiteturas muito reais, como a Petite Roquette, onde pela primeira vez na França foi organizado o
encarceramento celular.
A que se devem ainda acrescentar as publicações mais ou menos direta-mente saídas da prisão e redigidas ou por
filantropos, como appert, ou um pouco mais tarde por "especialistas"(8) assim como osAnnales de Ia Charite, ou ainda
por antigos detentos; Pauvre Jacques no fim da Restauração, ou a Gazette de Sainte-Pélagie no começo da monarquia de
julho.(9)
A prisão não deve ser vista como uma instituição inerte, que volta e meia teria sido sacudida por movimentos de
reforma. A "teoria da prisão" foi seu modo de usar constante, mais que sua crítica incidente - uma de suas condições de
funcionamento. A prisão fez sempre parte de um campo ativo onde abundaram os projetos, os remanejamentos, as
experiências, os discursos teóricos, os testemunhos, os inquéritos. Em torno da instituição carcerária, toda uma
prolixidade, todo um zelo. A prisão, região sombria e abandonada? O simples fato de que não se pare de dizê-lo há cerca
de dois séculos prova que ela não o era? Ao se tornar punição legal, ela carregou a velha questão jurídico-política do
direito de punir com todos os problemas, todas as agitações que surgiram em torno das tecnologias corretivas do
indivíduo.
"Instituições completas e austeras", dizia Baltard.(10) A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em
vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o
trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina
ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é "onidisciplinar". Além disso a prisão é sem exterior nem
lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser
ininterrupta: disciplina
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incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo:
disciplina despótica. Leva à mais forte intensidade todos os processos que encontramos nos outros dispositivos de
disciplina. Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de
ação é a coação de uma educação total:
Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do detento; a partir daí, concebe-se a potência
da educação que, não em só um dia, mas na sucessão dos dias e mesmo dos anos pode regular para o homem o tempo da
vigília e do sono, da atividade e do repouso, o número e a duração das refeições, a qualidade e a ração dos alimentos, a
natureza e o produto do trabalho, o tempo da oração, o uso da palavra e, por assim dizer, até o do pensamento, aquela
educação que, nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina, da oficina à cela, regula os movimentos do corpo e até
nos momentos de repouso determina o horário, aquela educação, em uma palavra, que se apodera do homem inteiro, de
todas as faculdades físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está.(11)
Esse "reformatório" integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da pura privação jurídica de
liberdade e bem diferente também da simples mecânica de representações com que sonhavam os reformadores na época
da Ideologia.
1) Primeiro princípio, o isolamento. Isolamento do condenado em relação ao mundo exterior, a tudo o que motivou a
infração, às cumplicidades que a facilitaram. Isolamento dos detentos uns em relação aos outros. Não somente a pena
deve ser individual, mas também individualizante. E isso de duas maneiras. Em primeiro lugar, a prisão deve ser
concebida de maneira a que ela mesma apague as consequências nefastas que atrai ao reunir num mesmo local
condenados muito diversos: abafar os complôs e revoltas que se possam formar, impedir que se formem cumplicidades
futuras ou nasçam possibilidades de chantagem (no dia em que os detentos se encontrarem livres), criar obstáculo à
imoralidade de tantas "associações misteriosas". Enfim, que a prisão não forme, a partir dos malfeitores que reúne, uma
população homogénea e solidária:
Existe entre nós neste momento uma sociedade organizada de criminosos... formam uma pequena nação no seio da
grande. Quase todos esses homens se conheceram nas prisões ou nelas se encontram. São os membros dessa sociedade
que importa hoje dispersar.(12)
Além disso, a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma. Pela reflexão que suscita, e pelo remorso que
não pode deixar de chegar:
Jogado na solidão o condenado reflete. Colocado a sós em presença de seu crime, ele aprende a odiá-lo, e se sua
alma ainda não estiver empedernida pelo mal é no isolamento que o remorso virá assaltá-lo.(13)
Pelo fato também de que a solidão realiza uma espécie de auto-regulação da pena, e permite uma como que
individualização espontânea do castigo: quanto mais o condenado é capaz de refletir, mais ele foi culpado de cometer
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seu crime; mas mais também o remorso será vivo, e a solidão dolorosa; em compensação, quando estiver profundamente
arrependido, e corrigido sem a menor dissimulação, a solidão não lhe será mais pesada:
Assim, segundo essa admirável disciplina, cada inteligência e cada moralidade levam em si mesmas o princípio e a
medida de uma repressão cuja certeza e invariável equidade não poderiam ser alteradas pelo erro e pela falibilidade
humanas... Não é em verdade como o selo de uma justiça divina e providencial?(14)
Enfim, e talvez principalmente, o isolamento dos condenados garante que se possa exercer sobre eles, com o
máximo de intensidade, um poder que não será abalado por nenhuma outra influência; a solidão é a condição primeira da
submissão total:
Imagine-se [dizia Charles Lucas, evocando o papel do diretor, do professor, do sacerdote e das "pessoas caridosas"
sobre o detento isolado], imagine-se a força da palavra humana que intervém no meio da terrível disciplina do silêncio
para falar ao coração, à alma, à pessoa humana.(15)
O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exerce sobre ele.
E nesse ponto que se situa a discussão sobre os dois sistemas americanos de encarceramento, o de Auburn e o de
Filadélfia. Na realidade, essa discussão que ocupa tanto lugar(16) só se refere à realização de um isolamento, admitido
por todos.
O modelo de Auburn prescreve a cela individual durante a noite, o trabalho e as refeições em comum, mas, sob a
regra do silêncio absoluto, os detentos só podendo falar com os guardas, com a permissão destes e em voz baixa.
Referência clara tomada ao modelo monástico; referência também tomada à disciplina de oficina. A prisão deve ser um
microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral, mas onde sua reunião
se efetua num enquadramento hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendo fazer comunicação no
sentido vertical. Vantagem do sistema auburniano segundo seus partidários: é uma repetição da própria sociedade. A
coação é assegurada por meios materiais mas sobretudo por uma regra que se tem que aprender a respeitar e é garantida
por uma vigilância e punições. Mais que manter os condenados "a sete chaves como uma fera em sua jaula", deve-se
associá-lo aos outros, "fazê-los participar em comum de exercícios úteis, obrigá-los em comum a bons hábitos,
prevenindo o contágio moral por uma vigilância ativa, e mantendo o recolhimento pela regra do silêncio". Esta regra
habitua o detendo a "considerar a lei como um preceito sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legítimo".(17)
Assim esse jogo do isolamento, da reunião sem comunicação, e da lei garantida por um controle ininterrupto, deve
requalificar o criminoso como indivíduo social: ele o treina para uma "atividade útil e resignada"(18); devolve-lhe
"hábitos de sociabilidade".(19)
200 ▲
No isolamento absoluto - como em Filadélfia - não se pede a requalifica-ção do criminoso ao exercício de uma lei
comum, mas à relação do indivíduo com sua própria consciência e com aquilo que pode iluminá-lo de dentro.(20)
Sozinho em sua cela o detento está entregue a si mesmo; no silêncio de suas paixões e do mundo que o cerca, ele
desce à sua consciência, interroga-a e sente despertar em si o sentimento moral que nunca perece inteiramente no coração
do homem.(21)
Não é portanto um respeito exterior pela lei ou apenas o receio da punição que vai agir sobre o detento, mas o
próprio trabalho de sua consciência. Antes uma submissão profunda que um treinamento superficial; uma mudança de
"moralidade" e não de atitude. Na prisão pensilvaniana, as únicas operações da correção são a consciência e a arquitetura
muda contra a qual ela esbarra. Em Cherry Hill, "os muros são a punição do crime; a cela põe o detento em presença de si
mesmo; ele é forçado a ouvir sua consciência". Donde o fato de que o trabalho é aí antes um consolo que uma obrigação;
que os vigias não têm que exercer uma coação que é realizada pela materialidade das coisas, e que sua autoridade,
conseqüentemente, pode ser aceita:
A cada visita, algumas palavras benevolentes saem dessa boca honesta e levam ao coração do detento, junto com o
reconhecimento, a esperança e o consolo; ele ama seu guarda; e o ama porque este é suave e tem compaixão. Os muros
são terríveis e o homem é bom.(22)
Nessa cela fechada, sepulcro provisório, facilmente crescem os mitos da ressurreição. Depois da noite e do silêncio,
a vida regenerada. Auburn era a própria vida renovada em seus vigores essenciais. Cherry Hill, a vida aniquilada e
recomeçada. O catolicismo recupera rapidamente em seus discursos essa técnica quaker.
Só vejo em vossa cela um horroroso sepulcro, no qual, em lugar dos vermes, os remorsos e o desespero avançam em
vossa direção para roer-vos e fazer de vossa existência um inferno antecipado. Mas... aquilo que para o prisioneiro sem
religião não passa de uma tumba, um ossário repulsivo, torna-se, para o detento sinceramente cristão, o próprio berço da
imortalidade bem-aventurada.(23)
Na oposição entre esses dois modelos, veio se fixar toda uma série de conflitos diferentes: religioso (deve a
conversão ser a peça principal da correção?), médico (o isolamento completo enlouquece?), económico (onde está o
menor custo?), arquitetural e administrativo (qual é a forma que garante a melhor vigilância?). Donde, sem dúvida, o
tamanho da polémica. Mas no centro das discussões, e tornando-as possíveis, este objetivo primeiro da ação carceral: a
individualização coercitiva, pela ruptura de qualquer relação que não seja controlada pelo poder ou ordenada de acordo
com a hierarquia.
2) O trabalho que se alterna com as refeições acompanha o detento até à oração da noite; então um novo sono lhe dá
um repouso agradável que não vem perturbar os fantasmas de uma imaginação desregrada. Assim se passam seis dias da
semana. São seguidos por um dia exclusivamente consagrado à oração, à instrução e a meditações salutares. É assim que
se sucedem e se substituem as semanas, os meses, os anos; assim o prisioneiro que, em sua entrada para o estabelecimento
era
201 ▲
um homem inconstante ou que só tinha convicção de sua irregularidade, procurando destruir sua existência pela variedade
de seus vícios, torna-se pouco a pouco pela força de um hábito inicialmente puramente exterior, mas logo transformado
em segunda natureza, tão familiarizado com o trabalho e os gozos dele decorrentes que, por pouco que uma instrução
sábia tenha aberto sua alma ao arrependimento, ele poderá ser exposto com mais confiança às tentações que lhe serão
trazidas pela recuperação de sua liberdade.(24)
O trabalho é definido, junto com o isolamento, como um agente da transformação carcerária. E isso desde o código
de 1808:
Se a pena infligida pela lei tem por objetivo a reparação do crime, ela pretende também que o culpado se emende, e
esse duplo objetivo será cumprido se o malfeitorfor arrancado a essa ociosidade funesta que, tendo-o atirado à prisão, aí
viria encontrá-lo de novo e dele se apoderar para conduzi-lo ao último grau da depravação.(25)
O trabalho não é nem uma adição nem um corretivo ao regime de detenção: quer se trate de trabalhos forçados, da
reclusão, do encarceramento, é concebido, pelo próprio legislador, como tendo que acompanhá-la necessariamente. Mas
uma necessidade que justamente não é aquela de que falavam os reformadores do século XVIII, quando queriam fazer da
prisão ou um exemplo para o público, ou uma reparação útil para a sociedade. No regime carcerário a ligação do trabalho
e da punição é de outro tipo.
Várias polémicas surgidas na Restauração ou durante a monarquia de julho esclarecem a função que se empresta ao
trabalho penal. Discussão em primeiro lugar sobre o salário. O trabalho dos detentos era remunerado na França.
Problema: se uma retribuição recompensa o trabalho em prisão, é porque esta não faz realmente parte da pena; e o detento
pode então recusá-lo. Além disso, o benefício recompensa a habilidade do operário e não a regeneração do culpado:
Os piores elementos são quase em toda parte os mais hábeis operários; são os mais retribuídos, conseqüentemente os
mais intemperantes e os menos aptos ao arrependimento.(26)
A discussão que nunca se encerrou totalmente recomeça, e muito vivamente, nos anos 1840-1845: época de crise
económica, época de agitação operária, época também em que começa a se cristalizar a oposição do operário e do
delinquente.(27) Há greves contra as oficinas de prisão: quando um fabricante de luvas de Chaumont arranja para
organizar uma oficina em Clairvaux, os operários protestam, declaram que seu trabalho está desonrado, ocupam a
manufatura e forçam o patrão a renunciar a seu projeto.(28) Há também uma campanha de imprensa nos jornais operários
sobre o tema de que o governo favorece o trabalho penal para fazer baixar os salários "livres"; sobre o tema de que os
inconvenientes dessas oficinas de prisão são ainda mais graves para as mulheres, a quem eles retiram o trabalho, levandoas
à prostituição, portanto à prisão, onde essas mesmas mulheres, que não podiam mais trabalhar quando eram livres, vêm
então fazer concorrência às que ainda têm serviço(29); sobre o tema de que se reservam aos detentos os trabalhos mais
seguros - "os ladrões
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vivendo em prisões bem aquecidas e bem abrigados executam os trabalhos de chapelaria e de marcenaria", enquanto o
chapeleiro reduzido ao desemprego tem que ir "ao abatedouro humano fabricar alvaiade a 2 francos por dia"(30); sobre o
tema de que a filantropia dá muita importância às condições de trabalho dos detentos, mas negligencia as do trabalhador
livre: "Temos certeza de que, se os prisioneiros trabalhassem com mercúrio, por exemplo, a ciência seria bem mais rápida
do que é para encontrar meios de preservar os trabalhadores do perigo de suas emanações: 'Esses pobres condenados!',
diria aquele que quase não fala dos operários douradores. Que se há de fazer, é preciso ter matado ou roubado para atrair a
compaixão ou o interesse dos outros". Sobre o tema principalmente de que se a prisão tender a se tornar uma oficina, logo
para lá serão enviados os mendigos e os desempregados, reconstituindo assim os velhos "hospitais gerais" da França ou as
workhouses da Inglaterra.(31) Houve ainda, principalmente depois da votação da lei de 1844, petições e cartas - uma
petição é recusada pela Câmara de Paris, que "achou desumano que se propusesse empregar assassinos, ladrões, em
trabalhos que pertencem agora a alguns milhares de operários"; "a Câmara preferiu Barrabás a nós"(32); operários
tipógrafos enviam uma carta ao ministro ao tomarem conhecimento de que foi instalada uma gráfica na Central de Melun:
Tendes a escolher entre reprovados justamente atingidos pela lei, e cidadãos que sacrificam seus dias, na abnegação
e na probidade, à existência de suas famílias, tanto quanto à riqueza da pátria.(33)
Ora, a toda essa campanha as respostas dadas pelo governo e pela administração são muito constantes. O trabalho
penal não pode ser criticado pelo desemprego que provocaria: com sua parca extensão, seu fraco rendimento, ele não pode
ter incidência geral sobre a economia. Não é como atividade de produção que ele é intrinsecamente útil, mas pêlos efeitos
que toma na mecânica humana. É um princípio de ordem e de regularidade; pelas exigências que lhe são próprias, veicula,
de maneira insensível, as formas de um poder rigoroso; sujeita os corpos a movimentos regulares, exclui a agitação e a
distração, impõe uma hierarquia e uma vigilância que serão ainda mais bem aceitas, e penetrarão ainda mais
profundamente no comportamento dos condenados, por fazerem parte de sua lógica: com o trabalho,
a regra é introduzida numa prisão, ela reina sem esforço, sem emprego de nenhum meio repressivo e violento.
Ocupando-se o detento, são-lhe dados hábitos de ordem e de obediência; tornamo-lo diligente e ativo, de preguiçoso que
era... com o tempo, ele encontra no movimento regular da casa, nos trabalhos manuais a que foi submetido... um remédio
certo contra os desvios de sua imaginação.(34)
O trabalho penal deve ser concebido como sendo por si mesmo uma maquinaria que transforma o prisioneiro
violento, agitado, irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade. A prisão não é uma
oficina; ela é, ela tem que ser em si mesma uma máquina de que os detentos-
203 ▲
operários são ao mesmo tempo as engrenagens e os produtos; ela os "ocupa" e isso
continuamente, mesmo se fora com o único objetivo de preencher seus momentos. Quando o corpo se agita, quando
o espírito se aplica a um objeto determinado, as ideias importunas se afastam, a calma renasce na alma.(35)
Se, no fim das contas, o trabalho da prisão tem um efeito económico, é produzindo indivíduos mecanizados segundo
as normas gerais de uma sociedade industrial:
O trabalho é a providência dos povos modernos; serve-lhes como moral, preenche o vazio das crenças e passa por
ser o princípio de todo bem. O trabalho devia ser a religião das prisões. A uma sociedade-máquina, seriam necessárias
meios de reforma puramente mecânicas.(36)
Fabricação de indivíduos-máquinas, mas também de proletários; efetiva-mente, quando o homem possui apenas "os
braços como bens", só poderá viver "do produto de seu trabalho, pelo exercício de uma profissão, ou do produto do
trabalho alheio, pelo ofício do roubo"; ora, se a prisão não obrigasse os malfeitores ao trabalho, ela reproduziria em sua
própria instituição, pelo fisco, essa vantagem de uns sobre o trabalho de outros:
A questão da ociosidade é a mesma que na sociedade; é do trabalho dos outros que têm que viver os detentos, se não
vivem do seu próprio.(37)
O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil. E é
nesse ponto que intervém a utilidade de uma retribuição pelo trabalho penal; ela impõe ao detento a forma "moral" do
salário como condição de sua existência. O salário faz com que se adquira "amor e hábito" ao trabalho(38); dá a esses
malfeitores que ignoram a diferença entre o meu e o teu o sentido da propriedade - "daquela que se ganhou com o suor do
rosto"(39); ensina-lhes também, a eles que viveram na dissipação, o que é a previdência, a poupança, o cálculo do
futuro(40); enfim, propondo uma medida do trabalho feito, permite avaliar quantitativamente o zelo do detento e os
progressos de sua regeneração.(41) O salário do trabalho penal não retribui uma produção; funciona como motor e marca
transformações individuais: uma ficção jurídica, pois não representa a "livre" cessão de uma força de trabalho, mas um
artifício que se supõe eficaz nas técnicas de correção.
A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição
de uma relação de poder, de uma forma económica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a
um aparelho de produção.
Imagem perfeita do trabalho de prisão: a oficina de mulheres em Clair-vaux; a exatidão silenciosa da maquinaria
humana atinge aí o rigor regulamentar do convento:
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Num púlpito, acima do qual há um crucifixo, está sentada uma freira; diante dela, e alinhadas em duas fileiras, as
prisioneiras efetuam a tarefa que lhes é imposta, e como domina quase exclusivamente o trabalho de agulha, resulta que o
mais rigoroso silêncio é constantemente mantido... Parece que nessas salas tudo respira a penitência e a expiação. Ocorrenos,
como por um movimento espontâneo, os tempos dos veneráveis hábitos desta tão antiga habitação; lembra-nos os
penitentes voluntários que aqui se fechavam para dizer adeus ao mundo.(42)
3) Mas a prisão excede a simples privação de liberdade de uma maneira mais importante. Ela tende a tornar-se um
instrumento de modulação da pena: um aparelho que, através da execução da sentença de que está encarregado, teria o
direito de retomar, pelo menos em parte, seu princípio. É claro que esse "direito" não foi recebido pela instituição
carcerária no século XIX, nem mesmo ainda no XX, salvo sob uma forma fragmentária (por via das liberações
condicionais, das semiliberdades, da organização das centrais de reforma). Mas deve-se notar que foi muito cedo
reclamado pêlos responsáveis pela administração penitenciária, como a própria condição de um bom funcionamento da
prisão, e de sua eficácia nessa tarefa de regeneração que a própria justiça lhe confia.
Assim para a duração do castigo: ela permite quantificar exatamente as penas, graduá-las segundo as circunstâncias,
e dar ao castigo legal a forma mais ou menos explícita de um salário; mas corre o risco de não ter valor corretivo, se for
fixada em caráter definitivo, ao nível do julgamento. A extensão da pena não deve medir o "valor de troca" da infração;
ela deve se ajustar à transformação "útil" do detento no decorrer de sua condenação. Não um tempo-me-dida, mas um
tempo com meta prefixada. Mais que a forma do salário, a forma da operação.
Do mesmo modo que o médico prudente pára a medicação ou continua com ela conforme o doente tenha ou não
chegado à cura perfeita, assim também, na primeira dessas duas hipóteses, a expiação deveria cessar diante da
regeneração completa do condenado; pois, nesse caso, qualquer detenção se terá tornado inútil, e portanto tão desumana
para com o regenerado quanto inútil e onerosa para o Estado.(43)
A justa duração da pena deve portanto variar não só com o ato e suas circunstâncias, mas com a própria pena tal
como ela se desenrola concretamen-te. O que equivale a dizer que, se a pena deve ser individualizada, não é a partir do
indivíduo-infrator, sujeito jurídico de seu ato, autor responsável do delito, mas a partir do indivíduo punido, objeto de uma
matéria controlada de transformação, o indivíduo em detenção inserido no aparelho carcerário, modificado por este ou a
ele reagindo.
O importante é apenas reformar o mau. Uma vez operada essa reforma, o criminoso deve voltar à sociedade.(44)
A qualidade e o conteúdo da infração não deveriam tampouco ser determinados só pela natureza da infração. A
gravidade jurídica de um crime não
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tem absolutamente valor de sinal unívoco para o caráter corrigível ou não do condenado. Particularmente a distinção
crime-contravenção, a que o código faz corresponder a distinção entre prisão e reclusão ou trabalhos forçados, não é
operatória em termos de regeneração. É a opinião quase geral formulada pêlos diretores de penitenciárias, quando de uma
pesquisa feita pelo ministério em 1836:
Os contraventores são em geral os mais viciosos... Entre os criminosos, encontram-se muitos homens que
sucumbiram à violência de suas paixões e às necessidades de uma família numerosa. O comportamento dos criminosos é
bem melhor que o dos contraventores; os primeiros são mais submissos, mais laboriosos que os últimos, que são em geral
ladinos, devassos, preguiçosos.(45)
Donde a idéia de que o rigor punitivo não deve estar em proporção direta com a importância penal do ato
condenado. Nem determinado de uma vez por todas.
Operação corretora, o encarceramento tem suas exigências e peripécias próprias. Seus efeitos é que devem
determinar suas etapas, agravações temporárias, atenuações sucessivas; o que Charles Lucas chamava "a classificação
móvel das moralidades". O sistema progressivo aplicado em Genebra desde 1825(46) foi muitas vezes reclamado na
França. Sob a forma, por exemplo, dos três setores: o de prova para a generalidade dos detentos, o setor de punição e o
setor de recompensa para os que estão no caminho da melhora.(47) Ou sob a forma das quatro fases: período de
intimidação (privação de trabalho e de qualquer relação interior ou exterior); período de trabalho (isolamento mas
trabalho que depois da fase de ociosidade forçada seria acolhido como um benefício); regime de moralização
("conferências" mais ou menos frequentes com os diretores e os visitantes oficiais); período de trabalho em comum.(48)
Se o princípio da pena é sem dúvida uma decisão de justiça, sua gestão, sua qualidade e seus rigores devem pertencer a
um mecanismo autónomo que controla os efeitos da punição no próprio interior do aparelho que os produz. Todo um
regime de punições e de recompensas que não é simplesmente uma maneira de fazer respeitar o regulamento da prisão,
mas de tornar efetiva a ação da prisão sobre os detentos. Acontece que a própria autoridade judiciária o reconheça:
Náo devemos, dizia a Corte de Cassação, consultada a respeito do projeto de lei sobre as prisões, nos espantar com a
ideia de conceder recompensas que poderão consistir seja num pecúlio maior, seja num melhor regime alimentar, seja
mesmo em abreviações de pena. Se alguma coisa há que possa despertar no espírito dos condenados as noções de bem e
de mal, levá-los a considerações
morais e elevá-los um pouco a seus próprios olhos, é a possibilidade de conseguir alguma
recompensa. (49)
E para todos esses atos que retificam a pena, à medida que ela se desenrola, é forçoso admitir que as instâncias
judiciárias não podem ter autoridade imediata. Trata-se com efeito de medidas que por definição só poderiam intervir
depois do julgamento e só podem agir sobre as coisas que não sejam infrações.
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Autonomia indispensável, por conseguinte, do pessoal que gere a detenção quando importa individualizar e variar a
aplicação da pena; fiscais, um diretor de estabelecimento, um sacerdote ou um professor são mais capazes de exercer essa
função corretiva que os detentores do poder penal. É seu julgamento (entendido como constatação, diagnóstico,
caracterização, precisão, classificação diferencial) e não mais um veredicto em forma de determinação de culpa, que deve
servir de suporte a essa modulação interna da pena - a sua atenuação ou mesmo a sua interrupção. Quando Bonneville em
1846 apresentou seu projeto de liberdade condicional, ele a definiu como
o direito que teria a administração, com opinião favorável da autoridade judiciária, de pôr em liberdade provisória
depois de um tempo suficiente de expiação e mediante certas condições o condenado completamente regenerado, com a
possibilidade de reintegrá-lo à prisão à mínima queixa fundamentada.(50)
Todo aquele "arbitrário" que, no antigo regime penal, permitia aos juizes modular a pena e aos príncipes
eventualmente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se
reconstituir, progressivamente, do lado do poder que gere e controla a punição. Soberania sábia do guardião:
Verdadeiro magistrado chamado a reinar soberanamente na casa... e que deve, para não estar abaixo de sua missão,
unir à mais eminente virtude uma ciência profunda dos homens.(51)
E chegamos, formulado claramente por Charles Lucas, a um princípio que bem poucos juristas ousariam hoje
admitir sem reticências, se bem que ele marque a direção essencial do funcionamento penal moderno; chamemo-lo a
Declaração de Independência carcerária - que reivindica o direito de ser um poder que tem não somente sua autonomia
administrativa, mas como que uma parte da soberania punitiva. Essa afirmação dos direitos da prisão coloca em princípio:
que o julgamento criminal é uma unidade arbitrária; que tem que ser decomposta; que os redatores dos códigos já tiveram
razão de distinguir o nível legislativo (que classifica os atos e lhes atribui as penas), e o nível do julgamento (que exara as
sentenças); que a tarefa hoje é analisar por sua vez esse último nível; que é preciso distinguir nele o que é propriamente
judiciário (apreciar menos os atos que os agentes, medir "as intencionalidades que dão aos atos humanos tantas
moralidades diversas", e portanto retificar, se possível, as avaliações do legislador); e dar autonomia ao "julgamento
penitenciário", o que é talvez o mais importante; em relação a ele, a avaliação do tribunal não passa de uma "maneira de
prejulgar", pois a moralidade do agente só pode ser apreciada quando "posta à prova. O juiz precisa portanto, por sua vez,
de um controle necessário e retificativo de suas avaliações; e é esse controle que a prisão penitenciária deve fornecer"(52).
Pode-se portanto falar de um excesso ou de uma série de excessos do encarceramento em relação à detenção legal do
"carcerário" em relação ao "judiciário". Ora, esse excesso é desde muito cedo
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constatado, desde o nascimento da prisão, seja sob a forma de práticas reais, seja sob a forma de projetos. Ele não veio,
em seguida, como um efeito secundário. A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão.
Podemos bem ver o sinal dessa autonomia nas violências "inúteis" dos guardas ou no despotismo de uma administração
que tem os privilégios das quatro paredes. Sua raiz está em outra parte: no fato, justamente, de que se pede à prisão que
seja "útil", no fato de que a privação de liberdade - essa retirada jurídica sobre um bem ideal - teve, desde o início, que
exercer um papel técnico positivo, realizar transformações nos indivíduos. E para essa operação o aparelho carcerário
recorreu a três grandes esquemas: o esquema político-moral do isolamento individual e da hierarquia; o modelo
económico da força aplicada a um trabalho obrigatório; o modelo técnico-médico da cura e da normalização. A cela, a
oficina, o hospital. A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar. E
esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico, é a isso, em suma, que se chama o "penitenciário".
Este acréscimo não foi aceito sem problemas. Questão que foi primeiro de princípio: a pena não deve ser mais nada
além da privação da liberdade; como nossos atuais governantes, Decazes o dizia, mas com o brilho de sua linguagem: "A
lei deve seguir o culpado à prisão onde o levou".(53) Mas rapidamente - e isso é um fato característico - esses debates se
tornarão batalha para a apropriação do controle desse "suplemento" penitenciário; os juizes pedirão direito de vista sobre
os mecanismos carcerários:
A moralização dos detentos exige numerosos cooperadores; só com visitas de inspeção, comissões de fiscalização,
sociedades patrocinadoras ela pode se realizar. Precisa então de auxiliares e é a magistratura que deve fornecê-los.(54)
Desde aquela época, a ordem penitenciária adquiria consistência bastante para que se pudesse procurar não desfazêla,
mas toma-la a seu cargo. Eis então o juiz assaltado pelo desejo da prisão. Disso nascerá, um século depois, um filho
bastardo, e entretanto disforme: o juiz da aplicação das penas.
Mas se o penitenciário, em seu "excesso" em relação à detenção, pôde de fato se impor, bem mais, apanhar toda a
justiça penal e trancar os próprios juizes, é porque ele conseguiu introduzir a justiça criminal em relações de saber que
agora se tornaram para ela seu labirinto infinito.
A prisão, local de execução da pena, é ao mesmo tempo local de observação dos indivíduos punidos. Em dois
sentidos. Vigilância, é claro. Mas também conhecimento de cada detento, de seu comportamento, de suas disposições
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profundas, de sua progressiva melhora; as prisões devem ser concebidas como um local de formação para um saber
clínico sobre os condenados;
o sistema penitenciário não pode ser uma concepção a priori; é uma indução do estado social. Há doenças morais
assim como acidentes da saúde em que o tratamento depende do foco e da direção do mal.(55)
O que implica em dois dispositivos essenciais. É preciso que o prisioneiro possa ser mantido sob um olhar
permanente; é preciso que sejam registradas e contabilizadas todas as anotações que se possa tomar sobre eles. O tema do
Panóptico - ao mesmo tempo vigilância e observação, segurança e saber, individualização e totalização, isolamento e
transparência-encontrou na prisão seu local privilegiado de realização. Se é verdade que os processos panópticos, como
formas concretas de exercício do poder, tiveram, pelo menos em estado disperso, larga difusão, foi só nas instituições
penitenciárias que a utopia de Bentham pôde, num bloco, tomar forma material. O Panóptico tornou-se, por volta dos anos
1830-1840, o programa arquitetural da maior parte dos projetos de prisão. Era a maneira mais direta de traduzir "na pedra
a inteligência da disciplina"(56); de tornar a arquitetura transparente à gestão do poder(57); de permitir que a força ou as
coações violentas fossem substituídas pela eficácia suave de uma vigilância sem falha; de ordenar o espaço segundo a
recente humanização dos códigos e a nova teoria penitenciária:
A autoridade, por um lado, e o arquiteto, por outro, têm que saber se as prisões devem ser combinadas no sentido da
suavização das penas ou num sistema de regeneração dos culpados, e em conformidade com uma legislação que,
remontando à origem dos vícios do povo, se torna um princípio regenerador das virtudes que este deve praticar.(58)
No total, constituir uma prisão-máquina com uma cela de visibilidade onde o detento se encontrará preso como "na
casa de vidro do filósofo grego"(60) e um ponto central de onde um olhar permanente possa controlar ao mesmo tempo os
prisioneiros e o pessoal. Em torno dessas duas exigências, muitas variações possíveis: o Panóptico benthamiano em sua
forma estrita, ou em semicírculo, ou em forma de cruz, ou a disposição em estrela.(61) No meio de todas essas discussões,
o ministro do Interior em 1841 lembra os princípios fundamentais:
A sala central de inspeção é o eixo do sistema. Sem ponto central de inspeção, a vigilância deixa de ser assegurada,
contínua e geral; pois é impossível ter inteira confiança na atividade, no zelo e na inteligência do preposto que vigia
imediatamente as celas... O arquiteto deve então colocar toda a sua atenção nesse objeto; há aí ao mesmo tempo uma
questão de disciplina e de economia. Quanto mais for exata e fácil a vigilância, menos será necessário procurar na força
dos edifícios garantias contra as tentativas de evasão e contra as comunicações dos detentos entre si. Ora, a vigilância será
perfeita se de uma sala central o diretor ou o preposto em chefe, sem mudar de lugar, vê sem ser visto não só a entrada de
todas as celas e até o interior do maior número de celas quando a porta está toda aberta, mas ainda os vigias destacados à
guarda dos prisioneiros em todos os andares... com a fórmula das prisões circulares ou semicirculares, seria
aparentemente possível ver de um centro único todos os prisioneiros em suas celas, e os guardas nas galerias de
vigilância.(62)
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Mas o Panóptico penitenciário é também um sistema de documentação individualizante e permanente. No mesmo
ano em que se recomendava as variantes do sistema benthamiano para construir as prisões, tornava-se obrigatório o
sistema de "conta moral": boletim individual de modelo uniforme em todas as prisões, e no qual o diretor ou o chefe dos
guardas, o sacerdote, o professor são chamados a inscrever suas observações a respeito de cada detento:
É de certo modo a vade-mécum da administração da prisão, que lhe dá condições de avaliar cada caso, cada
circunstância, e de tornar claro em consequência o tratamento a ser aplicado a cada prisioneiro individualmente.(63)
Muitos outros sistemas de registro, bem mais completos, foram projetados ou tentados.(64) Trata-se de qualquer
maneira de fazer da prisão um local de constituição de um saber que deve servir de princípio regulador para o exercício da
prática penitenciária. A prisão não tem só que conhecer a decisão dos juizes e aplicá-la em função dos regulamentos
estabelecidos: ela tem que coletar permanentemente do detento um saber que permitirá transformar a medida penal em
uma operação penitenciária; que fará da pena tornada necessária pela infração uma modificação do detento, útil para a
sociedade. A autonomia do regime carcerário e o saber que ela torna possível permitem multiplicar essa utilidade da pena
que o código colocara no princípio de sua filosofia punitiva:
Quanto ao diretor, ele não pode perder nenhum detento de vista, porque em qualquer setor que se encontre o
detento, esteja ele entrando, esteja ele saindo, ou que fique, o diretor deve igualmente justificar os motivos de sua
manutenção em tal classe ou de sua passagem para tal outra. É um verdadeiro contador. Cada detento é para ele, na esfera
da educação individual, um capital colocado no interesse penitenciário.(65)
A prática penal, tecnologia sábia, rentabiliza o capital investido no sistema penal e a construção das pesadas prisões.
Correlatamente, o delinquente torna-se indivíduo a conhecer. Esta exigência de saber não se insere, em primeira
instância, no próprio ato jurídico, para melhor fundamentar a sentença e determinar na verdade a medida da culpa. É
como condenado, e a título de ponto de aplicação de mecanismos punitivos, que o infrator se constitui como objeto de
saber possível.
Mas isso implica em que o aparelho penitenciário, com todo o programa tecnológico de que é acompanhado, efetue
uma curiosa substituição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é
a infração, é claro, nem mesmo exatamente o infrator, mas um objeto um pouco diferente, e definido por variáveis que
pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva.
Esse outro personagem, que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado, é o delinquente.
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O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza. A
operação penitenciária, para ser uma verdadeira reeducação, deve totalizar a existência do delinquente, tornar a prisão
uma espécie de teatro artificial e coercitivo onde é preciso refazê-la totalmente. O castigo legal se refere a um ato; a
técnica punitiva a uma vida; cabe-lhe por conseguinte reconstituir o ínfimo e o pior na forma do saber; cabe-lhe modificar
seus efeitos ou preencher suas lacunas, através de uma prática coercitiva. Conhecimento da biografia, e técnica da
existência retreina-da. A observação do delinquente
deve remontar não só às circunstâncias, mas às causas de seu crime; procurá-las na história de sua vida, sob o triplo
ponto de vista da organização, da posição social e da educação, para conhecer e constatar as inclinações perigosas da
primeira, as predisposições nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira. Esse inquérito biográfico é parte
essencial da instrução judiciária para a classificação das penalidades antes de se tornar uma condição do sistema
penitenciário para a classificação das moralidades. Deve acompanhar o detento do tribunal à prisão, onde o ofício do
diretor é não somente recolher, mas também completar, controlar e retif içar seus elementos no decorrer da detenção.(66)
Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidade de um delito, revela-se o caráter
delinquente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do "biográfico" é importante na
história da penalidade. Porque ele faz existir o "criminoso" antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. E porque a
partir daí uma causalidade psicológica vai, acompanhando a determinação jurídica da responsabilidade, confundir-lhe os
efeitos. Entramos então no dédalo "criminológico" de que estamos bem longe de ter saído hoje em dia: qualquer causa
que, como determinação, só pode diminuir a responsabilidade, marca o autor da infração com uma criminalidade ainda
mais temível e que exige medidas penitenciárias ainda mais estritas. À medida que a biografia do criminoso acompanha
na prática penal a análise das circunstâncias, quando se trata de medir o crime, vemos os discursos penal e psiquiátrico
confundirem suas fronteiras; e aí, em seu ponto de junção, forma-se aquela noção de indivíduo "perigoso" que permite
estabelecer uma rede de causalidade na escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredicto de puniçãocorreção.(
67)
O delinquente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato (autor responsável em
função de certos critérios da vontade livre e consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios
complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria
mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime. O delinquente, manifestação singular de um fenómeno global de
criminalidade, se distribui em classes quase naturais, dotadas cada uma de suas características definidas e a cada uma
cabendo um
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tratamento específico, como o que Marquet-Wasselot chamava em 1841 de Ethnographie dês prisons:
Os condenados são... outro povo num mesmo povo: que tem seus hábitos, seus instintos, seus costumes à parte.(68)
Estamos aí ainda muito próximos das descrições "pitorescas" do mundo dos malfeitores - velha tradição que
remonta longe e se revigora na primeira metade do século XIX, no momento em que a percepção de outra forma de vida
vem se articular sobre a de outra classe e outra espécie humana. Uma zoologia das subespécies sociais, uma etnologia das
civilizações de malfeitores, com seus ritos e língua, se esboçam numa forma de paródia. Mas aí se manifesta entretanto o
trabalho de constituição de uma nova objetividade onde o criminoso pertence a uma tipologia ao mesmo tempo natural e
desviante. A delinquência, desvio patológico da espécie humana, pode ser analisada como síndromes mórbidas ou como
grandes formas teratológicas. Com a classificação de Ferrus, temos uma das primeiras conversões da velha "etnografia"
do crime em uma tipologia sistemática dos delinquentes. É uma análise rápida, é verdade, mas nela vemos funcionar
claramente o princípio de que a delinquência deve ser especificada menos em função da lei que da norma. Três tipos de
condenados:
Há os que são dotados "de recursos intelectuais superiores à média de inteligência que estabelecemos", mas que se
tornam perversos quer pelas "tendências de sua organização" e "predisposição inata"; quer por uma "lógica perniciosa",
por uma "moral iníqua", por uma "perigosa apreciação dos deveres sociais". Para esses seria necessário o isolamento de
dia e de noite, o passeio solitário, e quando for preciso mante-los em contato com os outros, usar "uma máscara leve em
tela metálica, parecida com as que se usam para cortar pedras ou na esgrima". A segunda categoria é feita de condenados
"viciosos, limitados, embrutecidos ou passivos que são arrastados ao mal por indiferença pela vergonha como pelo bem,
por covardia, por preguiça, digamos, e falta de resistência às más incitações": o regime que lhes convém é mais de
educação do que de repressão, e se possível de educação mútua: isolamento de noite, trabalho em comum de dia,
conversas permitidas, só em voz alta, leituras em comum, seguidas de interrogações recíprocas, sancionadas por
recompensas. Enfim, há os condenados "inaptos ou incapazes" que uma "organização incompleta torna impróprios para
qualquer ocupação que exija esforços pensados e força de vontade, que se encontram então na impossibilidade de
sustentar a concorrência do trabalho com os operários inteligentes, e não tendo nem instrução bastante para conhecer os
deveres sociais, nem inteligência bastante para compreendê-los e combater seus instintos pessoais, são levados ao crime
por sua própria incapacidade. Para esses, a solidão só serviria para fomentar a inércia; devem portanto viver em comum,
mas de maneira a formar grupos pouco numerosos, sempre estimulados por ocupações coletivas, e submetidos a uma
vigilância rígida.(69)
Assim se estabelece progressivamente um conhecimento "positivo" dos delinquentes e de suas espécies, muito
diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias: mas distinto também do conhecimento médico que
permite ressaltar a loucura do indivíduo e apagar, conseqüentemente, o caráter delituoso do ato. Ferrus enuncia
claramente o princípio:
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Os criminosos considerados em massa são apenas loucos; haveria injustiça para com esses últimos, se os
confundíssemos com homens coincidentemente perversos.
Nesse novo saber importa qualificar "cientificamente" o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto
delinquente. Surge a possibilidade de uma criminologia.
O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa; é o delinquente,
unidade biográfica, núcleo de "periculosidade", representante de um tipo de anomalia. E se é verdade que à detenção
privativa de liberdade que o direito definira a prisão acrescentou o "suplemento" do penitenciário, este por sua vez
introduziu um personagem a mais, que se meteu entre aquele que a lei condena e aquela que executa essa lei. Onde
desapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do supliciado, apareceu o corpo do prisioneiro,
acompanhado pela individualidade do "delinquente", pela pequena alma do criminoso, que o próprio aparelho do castigo
fabricou como ponto de aplicação do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência penitenciária.
Dizem que a prisão fabrica delinquentes; é verdade que ela leva de novo, quase fatalmente, diante dos tribunais aqueles
que lhe foram confiados. Mas ela os fabrica no outro sentido de que ela introduziu no jogo da lei e da infração, do juiz e
do infrator, do condenado e do carrasco, a realidade incorpórea da delinquência que os liga uns aos outros e, há um século
e meio, os pega todos juntos na mesma armadilha.
A técnica penitenciária e o homem delinquente são de algum modo irmãos gémeos. Ninguém creia que foi a
descoberta do delinquente por uma raciona-lidade científica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das
técnicas penitenciárias. Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a
existência "objetiva" de uma delinquência que a abstração e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber. Elas
apareceram as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta o objeto
a que aplica seus instrumentos. E é essa delinquência, formada nos subterrâneos do aparelho judiciário, ao nível das
"obras vis" de que a justiça desvia os olhos, pela vergonha que sente de punir os que condena, é ela que se faz presente
agora nos tribunais serenos e na majestade das leis; ela é que tem que ser conhecida, avaliada, medida, diagnosticada,
tratada, quando se proferem sentenças, é ela agora, essa anomalia, esse desvio, esse perigo inexorável, essa doença, essa
forma de existência, que deverão ser considerados ao se reelaborarem os códigos. A delinquência é a vingança da prisão
contra a justiça. Revanche tão temível que pode fazer calar o juiz. É então que os criminologistas se impõem.
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Mas devemos não esquecer que a prisão, figura concentrada e austera de todas as disciplinas, não é um elemento
endógeno no sistema penal definido entre os séculos XVIII e XIX. O tema de uma sociedade punitiva e de uma
semiotécnica geral da punição que sustentou os códigos "ideológicos" - bec-carianos ou benthamianos - não fazia apelo ao
uso universal da prisão. Essa prisão vem de outro lugar - dos mecanismos próprios a um poder disciplinar. Ora, apesar
dessa heterogeneidade, os mecanismos e os efeitos da prisão se difundiram ao longo de toda a justiça criminal moderna; a
delinquência e os delinquentes a infestaram toda. Será necessário procurar a razão dessa temível "eficácia" da prisão. Mas
já podemos anotar uma coisa: a justiça penal definida no século XVIII pêlos reformadores traçava duas linhas de
objetivação possíveis do criminoso, mas duas linhas divergentes: uma era a série dos "monstros", morais ou políticos,
caídos do pacto social; outra, a do sujeito jurídico requa-lificado pela punição. Ora, o "delinquente" permite justamente
unir as duas linhas e constituir com a caução da medicina, da psicologia ou da criminologia, um indivíduo no qual o
infrator da lei e o objeto de uma técnica científica se superpõem - aproximadamente. Que o enxerto da prisão no sistema
penal não tenha acarretado reação violenta de rejeição se deve sem dúvida a muitas razões. Uma delas é que, ao fabricar
delinquência, ela deu à justiça criminal um campo unitário de objetos, autentificado por "ciências" e que assim lhe
permitiu funcionar num horizonte geral de "verdade".
A prisão, essa região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se
exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar
em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber. Compreende-se que a justiça tenha
adotado tão facilmente uma prisão que não fora entretanto filha de seus pensamentos. Ela lhe era agradecida por isso.
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CAPÍTULO II
ILEGALIDADE E DELINQUÊNCIA
No que se refere à lei, a detenção pode ser privação de liberdade. O encarceramento que a realiza sempre comportou
um projeto técnico. A passagem dos suplícios, com seus rituais de ostentação, com sua arte misturada à cerimónia do
sofrimento, a penas de prisões enterradas em arquiteturas maciças e guardadas pelo segredo das repartições, não é
passagem a uma penalidade indiferenciada, abstraia e confusa; é a passagem de uma arte de punir a outra, não menos
científica que ela. Mutação técnica. Dessa passagem, um sintoma e um resumo: a substituição, em 1837, da cadeia dos
forçados pelo carro celular.
A cadeia, tradição que remontava à época das galeras, ainda subsistia sob a monarquia de julho. A importância que
parece ter adquirido como espetáculo no começo do século XIX talvez esteja ligada ao fato de que ela juntava numa só
manifestação dois modos de castigo: o caminho para a detenção se desenrolava como um cerimonial de suplício.(1) Os
relatos da "última cadeia" - na verdade, as que cruzaram a França em todos os sentidos no verão de 1836 - e de seus
escândalos permitem encontrar esse funcionamento, bem estranho às regras da "ciência penitenciária". À saída, um ritual
de cadafalso; é a selagem das coleiras de ferro e das cadeias, no pátio de Bicêtre: o forçado fica com a nuca virada sobre a
bigorna, como uma estaca de ferro; mas desta vez a arte do carrasco, ao martelar, é não esmagar a cabeça - habilidade
invertida que sabe não dar a morte.
O grande pátio de Bicêtre exibe os instrumentos do suplício: várias fileiras de cadeias com suas gargantilhas. Os
artoupans (chefes dos guardas), ferreiros temporários, dispõem a bigorna e o martelo. À grade do caminho da ronda estão
coladas todas aquelas cabeças com uma expressão indiferente ou atrevida, e que o operador vai rebitar. Mais alto, em
todos os andares da prisão, vêem-se pernas e braços pendurados pelas grades dos cubículos, parecendo um bazar de carne
humana; são os detentos que vêm assistir à toalete de seus companheiros da véspera... ei-los na atitude do sacrifício. Estão
sentados no chão, emparelhados ao acaso e de acordo com o tamanho; esses ferros de que cada um deve levar 8 libras por
seu lado pesam-lhes sobre os joelhos. O operador passa-os em revista tomando a medida das cabeças e adaptando os
enormes colares de uma polegada de espessura. Para rebitar uma gargantilha é necessário o concurso de três carrascos:
um aguenta a bigorna, o outro mantém reunidos os dois lados do colar de ferro e preserva com os dois braços estendidos a
cabeça do paciente, e o terceiro bate com pancadas redobradas e achata o cravo sob seu martelo maciço. Cada golpe abala
a cabeça e o corpo... aliás, não se pensa no perigo que a vítima poderia correr se o martelo se desviasse; esta impressão é
nula, ou antes ela se desfaz diante da impressão profunda de horror que se experimenta ao contemplar a criatura de Deus
num tal rebaixamento.(2)
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Depois é a dimensão do espetáculo público; segunda a Gazette dês tribunaux(3), mais de 100.000 pessoas vêem a
cadeia partir de Paris a 19 de julho: "A descida da Courtille ao Mardi Gras..." A ordem e a riqueza vêm ver passar de
longe a grande tribo nómade acorrentada, essa outra espécie, a "raça diferente que tem o privilégio de povoar os campos
de trabalhos forçados e as prisões". Já os espectadores populares, como no tempo dos suplícios públicos, levam avante
com os condenados as trocas ambíguas de injúrias, de ameaças, de encorajamentos, de golpes, de sinais de ódio ou de
cumplicidade. Qualquer coisa de violento se ergue e não pára de correr ao longo de toda a procissão: cólera contra uma
justiça severa ou indulgente em excesso; gritos contra criminosos detestados; movimentos a favor dos prisioneiros
conhecidos e que são saudados; defrontações com a polícia:
Durante todo o trajeto percorrido desde a barreira de Fontainebleau, grupos de exaltados davam gritos de indignação
contra Delacollonge: Abaixo o padre, diziam, abaixo esse homem execrável; deveriam ter feito justiça com ele. Sem a
energia e a firmeza da guarda municipal, poderiam ter sido cometidas graves desordens. Em Vaugirard, eram as mulheres
que estavam mais furiosas. Gritavam: Abaixo o mau padre! Abaixo o monstro Delacollonge! Os delegados de polícia de
Montrouge, de Vaugirard e vários prefeitos e seus assessores acorreram com a Echarpe aberta para fazer respeitar a
decisão da justiça. A pouca distância de Issy, François, percebendo M. Allard e os agentes da brigada, lançou sobre eles
sua gamela de madeira. Lembraram-se então que a família de alguns antigos companheiros desse condenado morava em
Ivry. Desde esse momento os inspetores do serviço se escalonaram pela estrada e acompanharam de perto a carroça dos
forçados. Os do cordão de Paris, sem exceção, lançaram cada um sua gamela de madeira à cabeça dos agentes, e alguns
foram atingidos. Nesse momento, a multidão se encolerizou, e uns se atiravam contra os outros.(4)
Entre Bicêtre e Sèvres um número considerável de casas teria sido pilhado durante a passagem da cadeia.(5)
Nessa festa dos condenados que partem, há um pouco dos ritos do bode expiatório que é surrado ao ser banido, um
pouco da festa dos loucos onde se pratica a inversão dos papéis, uma parte das velhas cerimónias de cadafalso onde a
verdade deve brilhar em plena luz do dia, uma parte também daqueles espetáculos populares, onde se vêm reconhecer os
personagens famosos ou os tipos tradicionais: jogo da verdade e da infâmia, desfile da notoriedade e da vergonha,
invectivas contra os culpados que se desmascaram, e, por outro lado, alegre confissão dos crimes. Todos procuram
reconhecer o rosto dos criminosos que tiveram sua glória; folhas volantes recordam os crimes dos que se vêem passar; os
jornais, com antecedência, dão seus nomes e contam suas vidas; às vezes fazem a descrição deles, descrevem sua roupa,
para que sua identidade não possa escapar: programas para os espectadores.(6) O povo vem também contemplar tipos de
criminosos, tentar distinguir pelo traje ou pelo rosto a "profissão" do condenado, se é assassino ou ladrão: jogo de
máscaras e marionetes, mas onde se introduz também, para olhares mais educados, como que uma etnografia empírica do
crime. Dos espetáculos de saltimbancos à
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frenologia de Gall, utilizam-se, de acordo com o meio a que se pertence, as semiologias do crime de que se dispõe:
As fisionomias são tão variadas quanto os trajes: aqui, uma cabeça majestosa, como as figuras de Murillo; lá, um
rosto depravado, enquadrado por sobrancelhas espessas, que anuncia uma energia de um celerado específico... acolá uma
cabeça de árabe se ergue sobre um corpo de garoto. Aqui vemos traços femininos e suaves, são cúmplices; olhai essas
figuras lustrosas de devassidão, são os preceptores.(7)
A esse jogo respondem os próprios condenados, arvorando seus crimes e dando a representação de sua falta: é uma
das funções da tatuagem, vinheta de sua proeza ou de seu destino:
Eles levam as insígnias, seja uma guilhotina tatuada no braço esquerdo, seja no peito um punhal enterrado num
coração que sangra.
Ao passar representam em gestos a cena de seu crime, debocham dos juizes ou da polícia, gabam-se de malfeitos
que não foram descobertos. François, o antigo cúmplice de Lacenaire, conta que é o inventor de um método para matar
um homem sem fazê-lo gritar, e sem derramar uma gota de sangue. A grande feira ambulante do crime tinha seus truões e
suas máscaras, onde a afirmação cómica da verdade respondia à curiosidade e às invectivas. Toda uma série de cenas,
naquele verão de 1836, em torno de Delacollonge: a seu crime (ele cortara em pedaços a amante grávida) sua qualidade
de sacerdote dera muita ostentação; permitira-lhe também escapar do cadafalso. Parece que foi perseguido por um grande
ódio popular. Já antes, na carroça que o levara a Paris em junho de 1836, ele fora insultado e não conseguira reter as
lágrimas; não quisera entretanto ser transportado de carro, considerando que a humilhação fazia parte de seu castigo. À
partida de Paris,
não se pode imaginar o que a multidão esgotou como indignação virtuosa, cólera moral e covardia sobre esse
homem; ele foi coberto de terra e de lama; as pedras choviam-lhe em cima com os gritos da fúria pública. Era uma
incrível explosão de raiva; as mulheres principalmente, verdadeiras fúrias, mostravam uma inacreditável exaltação de
ódio.(8)
Para protegê-lo, mandam-no trocar de roupa. Alguns espectadores enganados pensam reconhecê-lo em François.
Que, de brincadeira, aceita o papel; mas, à comédia do crime que não cometeu, ele acrescenta a do padre que não é; ao
relato de "seu" crime, mistura orações e grandes gestos de bênção dirigidos à multidão que o invectiva e ri. A alguns
passos de lá, o verdadeiro Delacollonge, "que parecia um mártir", sofria a dupla afronta dos insultos que não recebia mas
lhe eram dirigidos, e do ridículo que fazia reaparecer, sob a forma de outro criminoso, o padre que ele era e que quisera
esconder. Sua paixão era representada, sob seus olhos, por um bufão assassino a que estava acorrentado.
Em todas as cidades por onde passava, a cadeia trazia consigo a festa; eram as saturnais do castigo; nela a pena
virava privilégio. E por uma curiosa
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tradição, que, de seu lado, parece escapar aos ritos comuns dos suplícios, provocava nos condenados menos as marcas
obrigadas do arrependimento que a explosão de uma alegria louca que negava a punição. Ao ornamento da coleira e dos
ferros os próprios forçados juntavam o enfeite de fitas, de palha trançada, de flores ou de uma roupa preciosa. A cadeia é
a roda e a dança; é o acasalamento também, o casamento forçado no amor proibido. Núpcias, festa e sagração sob as
correntes:
Eles acorrem diante dos ferros com um buque na mão, fitas ou borlas de palha enfeitam seus bonés e os mais hábeis
preparam capacetes com cimeira... Outros usam meias com aberturas em tamancos, ou um colete na moda por baixo de
uma blusa de trabalho.(9)
E, durante toda a tarde que se seguia à ferração, a cadeia formava uma grande farândola, que girava sem parar no
pátio de Bicêtre:
Ai dos vigias se a cadeia os reconhecesse; ela os embrulhava e os sufocava em seus anéis; os forçados permaneciam
donos do campo de batalha até o fim do dia.(10)
O sabá dos condenados respondia ao cerimonial da justiça com faustos que inventava. In vertia os esplendores, a
ordem do poder e seus sinais, as formas do prazer. Mas alguma coisa do sabá político não estava longe. Só sendo surdo
para não se ouvir um pouco desses novos acentos. Os forçados cantavam canções de marcha, de celebridade rápida e que
durante muito tempo foram repetidas em toda parte. Encontrava-se aí sem dúvida o eco das queixas emprestadas aos
criminosos pelas folhas volantes - afirmação do crime, heroi-cização negra, evocação de castigos terríveis e do ódio geral
que os cerca:
Fama, a nós as trombetas... Coragem, crianças, soframos sem estremecer o destino horrível que paira sobre nossas
cabeças... Nossos ferros são pesados, mas nós os suportaremos. Para os forçados, não há voz que se eleve: aliviemo-los.
Há entretanto nesses cantos coletivos uma outra tonalidade; inverte-se o código moral a que obedecia a maior parte
das velhas queixas. O suplício, em vez de trazer o remorso, aguça a vaidade; a justiça que condenou é recusada, e recebe
vitupérios a multidão que vem contemplar o que ela pensa ser arrependimentos ou humilhações:
Tão longe dos lares, às vezes, gememos. Nossas frontes sempre severas farão empalidecer nossos juizes... Ávidos de
desgraça, vossos olhares em nosso meio procuram encontrar uma raça vencida que chora e se humilha. Mas nossos
olhares são orgulhosos.
Encontramos aí também a afirmação de que a vida nos trabalhos forçados, com seus companheirismos, reserva
prazeres que a liberdade não conhece.
Acorrentemos os prazeres com o tempo. Sob os ferrolhos nascerão dias de festa... Os prazeres são fugitivos. Fugirão
dos carrascos, seguirão as canções.
E principalmente a ordem atual não durará para sempre; não só os condenados serão libertados e recobrarão seus
direitos, mas seus acusadores virão
118 ▲
tornar-lhes o lugar. Entre os criminosos e os juizes, virá o dia do grande julgamento às avessas:
A nós, forçados, o desprezo pêlos homens. A nós também todo o ouro que eles deificam. Esse ouro, um dia, passará
a nossas mãos. Nós o compramos pelo preço de nossa vida. Outros retomarão essas cadeias que hoje vós nos fazeis levar;
eles se tornarão escravos. Nós, rompendo os encraves, o astro de liberdade terá reluzido para nós... Adeus, pois
desprezamos tanto vossos ferros quanto vossas leis.(11)
O teatro piedoso imaginado pelas folhas volantes, e onde o condenado exortava a multidão a nunca imitá-lo, está se
tornando uma cena ameaçadora onde a multidão é obrigada a escolher entre a barbárie dos carrascos, a injustiça dos juizes
e a desgraça dos condenados vencidos hoje, mas que triunfarão um dia.
O grande espetáculo da cadeia se relacionava com a antiga tradição dos suplícios públicos; relacionava-se também
com aquela múltipla representação do crime dada na época pêlos jornais, pasquins, palhaços, teatros de bulevar(12); mas
relacionava-se igualmente com defrontações e lutas cujo estrondo carrega consigo; ele lhes dá como que uma saída
simbólica: o exército da desordem, aterrorizado pela lei, promete voltar; o que foi expulso pela violência da ordem trará
ao retornar a reviravolta libertadora. "Fiquei apavorado de ver tantas faíscas reaparecerem naquelas cinzas".(13) A
agitação que sempre cercara os suplícios entra em ressonância com ameaças precisas. Compreende-se que a monarquia de
julho tenha decidido suprimir a cadeia pelas mesmas razões -mas mais precisas - que exigiam, no século XVIII, a
abolição dos suplícios:
Não faz parte de nossos costumes levar homens desta maneira; deve-se evitar proporcionar nas cidades atravessadas
pela caravana um espetáculo tão feio que aliás náo é de nenhuma instrução para a população.(14)
Necessidade portanto de romper com esses ritos públicos; de fazer as transferências de condenados passarem pela
mesma mutação que os próprios castigos; e de colocá-los, a eles também, sob o signo do pudor administrativo.
Ora, o que foi adotado, em junho de 1837, para substituir a cadeia, não foi a simples carroça coberta de que se falara
um momento, mas uma máquina bem cuidadosamente elaborada. Uma carruagem concebida como prisão ambulante. Um
equivalente móvel do Panóptico, dividido em todo o comprimento por um corredor central: de um lado e de outro, seis
celas onde os detentos estão sentados de frente. Seus pés são passados em anéis forrados de lã por dentro e reunidos entre
si por cadeias de 18 polegadas; as pernas são presas em j oelheiras de metal. O condenado fica sentado sobre "uma
espécie de funil de zinco e carvalho aberto sobre a via pública". Acela não tem nenhuma janela para fora; é inteiramente
forrada de chapas metálicas; só um basculante, também de lata furada, dá passagem a "uma corrente de ar conveniente".
Do lado do corredor,
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a porta de cada cela é guarnecida de um guichê com um compartimento duplo: um para os alimentos, outro, de grades,
para a vigilância.
A abertura e a direção oblíqua dos guichês são combinadas de tal modo que os guardas mantêm constantemente os
olhos sobre os prisioneiros, e entendem suas menores palavras, sem que estes possam chegar a se ver ou se ouvir entre si.
[De tal maneira que] a mesma viatura pode, sem o menor inconveniente, conter ao mesmo tempo um forçado e um
simples acusado, homens e mulheres, crianças e adultos. Qualquer que seja o comprimento do trajeto, uns e outros são
levados a seu destino sem poder ter se visto nem se falado.
Enfim a vigilância constante dos dois guardas que estão armados com uma pequena maça de carvalho "com grandes
cravos de diamante, rombudos", permite fazer funcionar um sistema de punições, conforme o regulamento interno da
carruagem: regime de pão e água, dedos polegares amarrados, privação da almofada para dormir, os dois braços
amarrados. "É proibida qualquer leitura senão a dos livros de moral".
Houvera ela tido apenas sua suavidade e rapidez, essa máquina "teria feito honra à sensibilidade de seu autor"; mas
seu mérito é ser uma verdadeira carruagem penitenciária. Por seus efeitos externos ela é de uma perfeição toda
benthamiana:
Na passagem rápida dessa prisão sobre rodas que em seus lados silenciosos e sombrios só leva como inscrição as
palavras: Transporte de Forçados, há qualquer coisa de misterioso e lúgubre que Bentham requer na execução das
sentenças criminais e que deixa no espirito dos espectadores uma impressão mais salutar e durável que a visão daqueles
cínicos e alegres viajantes.(15)
Ela tem também efeitos internos: já nos poucos dias de transporte (durante os quais os detentos não ficam soltos um
só instante), funciona como um aparelho de correção. Sai-se dela espantosamente bem comportado:
Do ponto de vista moral esse transporte, que entretanto dura só setenta e duas horas, é um suplício horrível cujo
efeito age durante muito tempo, ao que parece, sobre o prisioneiro. [Os próprios forçados são testemunhas disso]: No
carro celular, quando não estamos dormindo, só podemos pensar. De tanto pensar, parece que me arrependo do que fiz;
afinal, entendem, eu teria medo de me tornar melhor e não quero.(16)
Breve história a da carruagem panóptica. Entretanto, a maneira como ela substitui a cadeia e as razões dessa
substituição resumem todo o processo pelo qual em oitenta anos a detenção penal tomou o lugar dos suplícios: como uma
técnica pensada para modificar os indivíduos. A carruagem celular é um aparelho de reforma. O que substituiu o suplício
não foi um encarceramento maciço, foi um dispositivo disciplinar cuidadosamente articulado. Pelo menos em princípio.
220 ▲
Pois logo a seguir a prisão, em sua realidade e seus efeitos visíveis, foi denunciada como o grande fracasso da
justiça penal. Estranhamente, a história do encarceramento não segue uma cronologia ao longo da qual se sucedessem
logicamente: o estabelecimento de uma penalidade de detenção, depois o registro de seu fracasso; depois a lenta subida
dos projetos de reforma, que chegariam à definição mais ou menos coerente de técnica penitenciária; depois a
implantação desse projeto; enfim a constatação de seus sucessos ou fracassos. Houve na realidade uma superposição ou
em todo caso outra distribuição desses elementos. E do mesmo modo que o projeto de uma técnica corretiva acompanhou
o princípio de uma detenção punitiva, a crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo, nesses mesmos anos de
1820-1845; ela aliás se fixa num certo número de formulações que - a não ser pêlos números - se repetem hoje sem quase
mudança nenhuma.
- As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a
quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta:
Avalia-se na França em cerca de 108 mil o número de indivíduos que estão em condição de hostilidade flagrante à
sociedade. Os meios de repressão de que dispomos são: a forca, o pelourinho, 3 campos de trabalhos forçados, 19 casas
centrais, 86 casas de justiça, 362 cadeias, 2.800 prisões de cantão, 2.238 quartos de segurança nos postos de polícia.
Apesar desta série de meios, o vício conserva sua audácia. O número de crimes não diminui;... o número de reincidências
aumenta mais que decresce.(17)
- A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, se têm mais chance que antes de voltar para ela, os
condenados são, em proporção considerável, antigos detentos; 38% dos que saem das casas centrais são condenados
novamente e 33% são forçados(18); de 1828 a 1834, de cerca de 35.000 condenados por crime, perto de 7.400 eram
reincidentes (ou seja, um em cada 4,7 condenados); em mais de 200.000 contraventores, quase 35 mil o eram também (l
em cada 6); no total, um reincidente para 5,8 condenados(19); em 1831, em 2.174 condenados por reincidência, 350
haviam saído dos trabalhos forçados, 1.682 das casas centrais, 142 das 4 casas de correção submetidas ao mesmo regime
que as centrais.(20) E o diagnóstico torna-se cada vez mais pesado ao longo de toda a monarquia de julho: em 1835,
contam-se l .486 reincidentes em 7.223 condenados criminosos; em 1839, 1749 em 7.858; em 1844, 1.821 em 7.195.
Entre os 980 detentos de Loos havia 570 reincidentes e, em Melun, 745 dos 1.088 prisioneiros.(21) A prisão,
conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos:
7.000 pessoas entregues cada ano à sociedade..., são 7.000 princípios de crimes ou de corrupção espalhados no
corpo social. E quando pensamos que essa população cresce sem parar, que ela vive e se agita em torno de nós, pronta
para aproveitar todas as chances de desordem, e a se prevalecer de todas as crises da sociedade para experimentar suas
forças, podemos permanecer impassíveis diante de tal espetáculo?(22)
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- A prisão não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem:
que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, é de
qualquer maneira não "pensar no homem em sociedade; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa";
queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente
como objetivo agir contra o desejo da natureza?(23) A prisão fabrica também delinquentes impondo aos detentos
limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se
desenrola no sentido do abuso de poder. Arbitrário da administração:
O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável seu
caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado
habitual de cólera contra tudo o que o cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade: não pensa mais ter sido
culpado; acusa a própria justiça.(24)
Corrupção, medo e incapacidade dos guardas:
1.000 a 5.000 vigias que só mantêm alguma segurança contando com a delação, ou seja, com a corrupção que eles
mesmos têm o cuidado de semear. Quem são esses guardas? Soldados que receberam baixa, homens sem instrução, sem
inteligência de sua função, que guardam os malfeitores por profissão.(25)
Exploração por um trabalho penal, que nessas condições não pode ter nenhum caráter educativo:
Fala-se muito contra o tráfico de negros. Como eles, os detentos não são vendidos pêlos empresários e comprados
pêlos comerciantes?... Os prisioneiros recebem neste ponto lições de probidade? Não ficam mais desencorajados por esses
exemplos de abominável exploração?(26)
- A prisão torna possível, ou melhor, favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si,
hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras:
A sociedade proíbe as associações de mais de 20 pessoas... e ela mesma constitui associações de 200, de 500, de
1.200 condenados nas casas centrais que são para eles construídas ad hoc, e que para seu maior conforto ela divide em
oficinas, em pátios, refeitórios comuns... e multiplica-se portoda a superfície da França, de tal modo que, onde houver
uma prisão, há uma associação... outros tantos clubes anti-sociais.(27)
E nesses clubes é feita a educação do jovem delinquente que está em sua primeira condenação:
O primeiro desejo que nele nascerá será de aprender com os colegas hábeis como se escapa aos rigores da lei; a
primeira lição será tirada dessa lógica cerrada dos ladrões que os leva a considerar a sociedade como inimiga; a primeira
moral será a delação, a espionagem honrada nas nossas prisões; a primeira paixão que nele será excitada virá assustar a
jovem natureza por aquelas monstruosidades que devem ter nascido nas masmorras e que a pena se recusa a citar... ele
agora rompeu com tudo o que o ligava à sociedade.(28)
222 ▲
Faucher falava dos "quartéis do crime".
- As condições dadas aos detentos libertados condenam-nos fatalmente à reincidência: porque estão sob a vigilância
da polícia; porque têm designação de domicílio, ou proibição de permanência; porque só
saem da prisão com um passaporte que têm que mostrar em todo lugar onde vão e que menciona a condenação que
sofreram.(29)
A quebra de banimento, a impossibilidade de encontrar trabalho, a vadiagem são os fatores mais frequentes da
reincidência. A Gazette dês tribunaux, mas também os jornais operários citam muitas vezes casos semelhantes, como o
daquele operário condenado por roubo, posto sob vigilância em Rouen, preso novamente por roubo, e que os advogados
desistiram de defender; ele mesmo toma então a palavra diante do tribunal, faz o histórico de sua vida, explica como,
saído da prisão e com determinação de residência, não consegue recuperar seu ofício de dourador, sendo recusado em
toda parte por sua qualidade de presidiário; a polícia recusa-lhe o direito de procurar trabalho em outro lugar; ele se viu
preso a Rouen e fadado a morrer aí de fome e miséria como efeito dessa vigilância opressiva. Pediu trabalho à prefeitura;
ficou ocupado 8 dias nos cemitérios por 14 soldos por dia:
Mas, diz ele, sou moço, tenho bom apetite, eu comia mais de duas libras de pão a 5 soldos a libra; que fazer com 14
soldos para me alimentar, lavar roupa e morar? Estava reduzido ao desespero, queria voltar a ser um homem honesto; a
vigilância me fez mergulhar de novo na desgraça. Desgostei-me de tudo; foi então que conheci Lemaïtre que também está
na miséria; tínhamos que viver e a má ideia de roubar nos voltou.(30)
- Enfim a prisão fabrica indiretamente delinquentes, ao fazer cair na miséria a família do detento:
A mesma ordem que manda para a prisão o chefe de famflia reduz cada dia a mãe à penúria, os filhos ao abandono,
a família inteira à vagabundagem e à mendicância. Sob esse ponto de vista o crime ameaça prolongar-se.(31)
Devemos notar que essa crítica monótona da prisão é feita constantemente em duas direções: contra o fato de que
prisão não era efetivamente corretora, que a técnica penitenciária nela permanecia em estado rudimentar; contra o fato de
que, ao querer ser corretiva, ela perde sua força de punição(32), que a verdadeira técnica penitenciária é o rigor(33), e que
a prisão é um duplo erro económico: diretamente pelo custo intrínseco de sua organização e indiretamente pelo custo da
delinquência que ela não reprime.(34) Ora, a essas críticas, a resposta foi invariavelmente a mesma: a recondução dos
princípios invariáveis da técnica penitenciária. Há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu
próprio remédio; a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente; a
realização do projeto corretivo como o único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade.
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Um fato o comprova: as revoltas de detentos, nas últimas semanas, que a reforma definida em 1945 nunca se
efetuara realmente; que era então necessário voltar a seus princípios fundamentais. Ora, esses princípios, de que ainda
hoje se esperam efeitos tão maravilhosos, são conhecidos: constituem há quase 150 anos as sete máximas universais da
boa "condição penitenciária".
1) A detenção penal deve então ter por função essencial a transformação do comportamento do indivíduo:
A recuperação do condenado como objetivo principal da pena é um princípio sagrado cuja aparição formal no
campo da ciência e principalmente no da legislação é bem recente (Congresso Penitenciário de Bruxelas, 1847). [E a
comissão amor, de maio de 1945, repete fielmente]: A pena privativa de liberdade tem como objetivo principal a
recuperação e a reclassificação social do condenado (Princípio da correção).
2) Os detentos devem ser isolados ou pelo menos repartidos de acordo com a gravidade penal de seu ato, mas
principalmente segundo sua idade, suas disposições, as técnicas de correção que se pretende utilizar para com eles, as
fases de sua transformação.
Deve-se levar em conta, no uso dos meios modificadores, das grandes diferenças físicas e morais, que comportam a
organização dos condenados, de seu grau de perversidade, das chances desiguais de correção que podem oferecer
(fevereiro de 1850). [1945]: a repartição nos estabelecimentos penitenciários dos indivíduos com pena inferior a um ano
tem por base o sexo, a personalidade e o grau de perversão do delinquente (Princípio da classificação).
3) As penas, cujo desenrolar deve poder ser modificado segundo a individualidade dos detentos, os resultados
obtidos, os progressos ou as recaídas.
Sendo o objetivo principal da pena a reforma do culpado, seria desejável que se pudesse soltar qualquer condenado
quando sua regeneração moral estivesse suficientemente garantida (Ch. Lucas, 1836). [1945]: É aplicado um regime
progressivo... com vistas a adaptar o tratamento do prisioneiro à sua atitude e ao seu grau de regeneração. Este regime vai
da colocação em cela à semiliberdade... O benefício da liberdade condicional é estendido a todas as penas temporárias
(Princípio da modulação das penas).
4) O trabalho deve ser uma das peças essenciais da transformação e da socialização progressiva dos detentos. O
trabalho penal
não deve ser considerado como o complemento e, por assim dizer, como uma agravação da pena, mas sim como
uma suavização cuja privação seria totalmente possível. Deve permitir aprender ou praticar um ofício, e dar recursos ao
detento e a sua família (Ducpétiaux, 1857). [1945]: Todo condenado de direito comum é obrigado ao trabalho... Nenhum
pode ser obrigado a permanecer desocupado (Princípio do trabalho como obrigação e como direito).
5) A educação do detento é, por parte do poder público, ao mesmo tempo uma precaução indispensável no interesse
da sociedade e uma obrigação para com o detento.
Só a educação pode servir de instrumento penitenciário. A questão do encarceramento penitenciário é uma questão
de educação (Ch. Lucas, 1838). [1945]: O tratamento infligido ao
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prisioneiro, fora de qualquer promiscuidade corruptora... deve tender principalmente à sua instrução geral e profissional e
à sua melhora (Princípio da educação penitenciária).
6) O regime da prisão deve ser, pelo menos em parte, controlado e assumido por um pessoal especializado que
possua as capacidades morais e técnicas de zelar pela boa formação dos indivíduos. Ferrus, em 1850, a respeito do médico
da prisão:
Seu concurso é útil com todas as formas de encarceramento... ninguém mais intimamente que um médico poderia
possuir a confiança dos detentos, conhecer melhor seu temperamento, exercer ação mais eficaz sobre seus sentimentos,
aliviando-lhes os males físicos e aproveitando essa forma de ascendência para fazê-los ouvir palavras severas ou
encorajamentos úteis. [1945]: em todo estabelecimento penitenciário funciona um serviço social e médico-psicológico
(Princípio do controle técnico da detenção).
7) O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e de assistência até a readaptação definitiva do
antigo detento. Seria necessário não só vigiá-lo à sua saída da prisão,
mas prestar-ihe apoio e socorro (Boulet e Benquot na Câmara de Paris). [1945]: É dada assistência aos prisioneiros
durante e depois da pena com a finalidade de facilitar sua reclassificação (Princípio das instituições anexas).
Palavra por palavra, de um século a outro, as mesmas proposições fundamentais se repetem. E são dadas a cada vez
como a formulação enfim obtida, enfim aceita de uma reforma até então sempre fracassada. Poder-se-ia ter tomado as
mesmas frases ou quase as mesmas de outros períodos "fecundos" da reforma: o fim do século XIX, e o "movimento da
defesa social"; ou ainda os anos mais recentes, com as revoltas dos detentos.
Não devemos então conceber a prisão, seu "fracasso" e sua reforma mais ou menos bem aplicada como três tempos
sucessivos. Devemos antes pensar num sistema simultâneo que historicamente se sobrepôs à privação jurídica da
liberdade: um sistema de quatro termos que compreende: o "suplemento" disciplinar da prisão - elemento de sobrepoder; a
produção de uma objetivida-de, de uma técnica, de uma "racionalidade" penitenciária - elemento do saber conexo; a
recondução de fato, se não a acentuação de uma criminalidade que a prisão devia destruir - elemento de eficácia inversa;
enfim a repetição de uma reforma que é isomorfa, apesar de sua "idealidade", ao funcionamento disciplinar da prisão -
elemento do desdobramento utópico. É este conjunto complexo que constitui o "sistema carcerário" e não só a instituição
da prisão, com seus muros, seu pessoal, seus regulamentos e sua violência. O sistema carcerário junta numa mesma figura
discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis,
programas para corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência. O pretenso fracasso não faria então
parte do funcionamento da prisão? Não deveria ser inscrito naqueles efeitos de poder que a disciplina e a tecnologia
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conexa do encarceramento induziram no aparelho de justiça, de uma maneira mais geral na sociedade e que podemos
agrupar sob o nome de "sistema carcerário"? Se a instituição-prisão resistiu tanto tempo, e em tal imobilidade, se o
princípio da detenção penal nunca foi seriamente questionado, é sem dúvida porque esse sistema carcerário se enraizava
em profundidade e exercia funções precisas. Dessa solidez tomemos como testemunho um fato recente: a prisão modelo
que foi aberta em Fleury-Mérogis em 1969 apenas se serviu em sua distribuição de conjunto da estrela panóptica que em
1836 dera à Petite-Roquette a fama que esta teve. É a mesma maquinaria de poder que aí se concretiza e assume forma
simbólica. Mas para desempenhar que papel?
Vamos admitir que a lei se destine a definir infrações, que o aparelho penal tenha como função reduzi-las e que a
prisão seja o instrumento dessa repressão; temos então que passar um atestado de fracasso. Ou antes - pois para
estabelecê-la em termos históricos seria preciso poder medir a incidência da penalidade de detenção no nível global da
criminalidade - temos que nos admirar de que há 150 anos a proclamação do fracasso da prisão se acompanhe sempre de
sua manutenção. A única alternativa realmente apontada foi a deportação que a Inglaterra abandonara desde o começo do
século XIX e que a França retomou sob o Segundo Império, mas antes como uma forma ao mesmo tempo rigorosa e
longínqua de encarceramento.
Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade
desses diversos fenómenos que a crítica, continuamente, denuncia: manutenção da delinquência, indução em reincidência,
transformação do infrator ocasional em delinquência. Talvez devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo
da instituição penal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena, continua a segui-los através de toda uma série
de marcações (vigilância que era de direito antigamente e o é de fato hoje; passaportes dos degredados de antes, e agora
folha corrida) e que persegue assim como "delinquente" aquele que quitou sua punição como infrator? Não podemos ver
aí mais que uma contradição, uma consequência? Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem
dúvida, os castigos, não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que
visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das
leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de
tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar
estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não "reprimiria"
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pura e simplesmente as ilegalidades; ela as "diferenciaria", faria sua "economia" geral. E se podemos falar de uma justiça
não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão
diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os castigos legais
devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades. O "fracasso" da prisão pode sem dúvida ser compreendido
a partir daí.
O esquema geral da reforma penal foi aplicado no fim do século XVIII na luta contra as ilegalidades: rompeu-se o
equilíbrio de tolerâncias, de apoios e de interesses recíprocos, que sob o Antigo Regime mantivera umas ao lado das
outras as ilegalidades de diversas camadas sociais. Formara-se então a utopia de uma sociedade universal e publicamente
punitiva onde mecanismos penais sempre em atividade funcionariam sem atraso nem mediação nem incerteza; uma lei,
duplamente ideal, pois perfeita em seus cálculos e presente na representação de cada cidadão, bloquearia, desde a origem,
quaisquer práticas de ilegalidade. Ora, na passagem do século XVIII ao XIX, e contra os novos códigos, surge o perigo de
um novo ilegalismo popular. Ou mais exatamente, talvez, as ilegalidades populares se desenvolvam então segundo
dimensões novas: as que trazem consigo todos os movimentos que, desde os anos 1780 até às revoluções de 1848,
entrecruzam os conflitos sociais, as lutas contra os regimes políticos, a resistência ao movimento de industrialização, os
efeitos das crises económicas. Esquematicamente, podemos definir três processos característicos. Em primeiro lugar, o
desenvolvimento da dimensão política das ilegalidades populares; e isso de duas maneiras: práticas até então localizadas e
de certo modo limitadas a elas mesmas (como a recusa do imposto, do recrutamento, das cobranças, das taxações; a
confiscação violenta de mercadorias desapropriadas; a pilhagem de lojas e a venda autoritária dos produtos pelo "justo
preço"; as defrontações com os representantes do poder) resultaram durante a Revolução em lutas diretamente políticas,
que tinham por finalidade, não simplesmente fazer ceder o poder ou transferir uma medida intolerável, mas mudar o
governo e a própria estrutura do poder. Em contraposição, certos movimentos políticos apoiaram-se de maneira explícita
nas formas existentes de ilegalidade (como a agitação realista do oeste ou do sul da França utilizou a recusa dos
camponeses das novas leis sobre a propriedade, a religião, o recrutamento); essa dimensão política da ilegalidade se
tornará ao mesmo tempo mais complexa e mais marcada nas relações entre o movimento operário e os partidos
republicanos no século XIX, na passagem das lutas operárias (greves, conluios proibidos, associações ilícitas) à revolução
política. Em todo caso, no horizonte dessas práticas ilegais - e que se multiplicam com legislações cada vez mais
restritivas - entrevêem-se as lutas propriamente políticas; nem todas têm em mira a eventual derrubada do poder, longe
disso; mas boa parte
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delas pode se capitalizar para combates políticos de conjunto e às vezes até conduzir diretamente a isso.
Por outro lado, através da recusa da lei ou dos regulamentos, reconhecem-se facilmente as lutas contra aqueles que
os estabelecem em conformidade com seus interesses: não se luta mais contra os arrendatários de impostos, o pessoal das
finanças, os agentes do rei, os oficiais prevaricadores ou os maus ministros, contra todos os agentes da injustiça; mas
contra a própria lei e a justiça que é encarregada de aplicá-la, contra os proprietários próximos e que impõem os novos
direitos; contra os empregadores que se entendem entre si, mas mandam proibir os conluios; contra os chefes de empresa
que multiplicam as máquinas, baixam os salários, prolongam as horas de trabalho, tornam cada vez mais rigorosos os
regulamentos de fábricas. Foi sem dúvida contra o novo regime de propriedade da terra - instaurado pela burguesia, que
aproveitou a Revolução - que se desenvolveu a ilegalidade camponesa que sem dúvida conheceu suas formas mais
violentas do Termidor ao consulado, mas não desapareceu então; foi contra o novo regime de exploração legal do trabalho
que se desenvolveram as ilegalidades operárias no começo do século XIX: desde os mais violentos, como as quebras de
máquinas, ou os mais duráveis como a constituição de associações, até os mais cotidianos como o absenteísmo, o
abandono do serviço, a vadiagem, as fraudes nas matérias-primas, na quantidade e qualidade do trabalho terminado. Uma
série de ilegalidades surge em lutas onde sabemos que se defrontam ao mesmo tempo a lei e a classe que a impôs.
Enfim, se é verdade que no decorrer do século XVIII vimos(35) a criminalidade tender para formas especializadas,
inclinar-se cada vez mais para o roubo fácil e tornar-se em parte coisa de marginais, isolados no meio de uma população
que lhes era hostil - pudemos assistir, nos últimos anos do século XVIII, à reconstituição de certos laços ou ao
estabelecimento de novas relações; não, como diziam os contemporâneos, que os líderes da agitação popular tivessem
sido criminosos, mas porque as novas formas do direito, os rigores da regulamentação, as exigências ou do Estado, ou dos
proprietários, ou dos empregadores, e as técnicas mais cerradas de vigilância, multiplicavam as ocasiões de delito, e
faziam se bandear para o outro lado da lei muitos indivíduos que, em outras condições, não teriam passado para a
criminalidade especializada; foi tendo por fundo as novas leis sobre a propriedade, tendo também por fundo o
recrutamento recusado, que uma ilegalidade camponesa se desenvolveu nos últimos anos da Revolução, multiplicando as
violências, as agressões, os roubos, as pilhagens, e até as grandes formas de "banditismo político"; foi também tendo por
fundo uma legislação ou regulamento muito pesados (referentes ao certificado de reservista, aos aluguéis, aos horários, às
ausências) que se desenvolveu uma vagabundagem operária que muitas vezes ia de par com a estrita delinquência. Toda
uma série de práticas ilegais que durante o
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século anterior tinham tido tendência a se decantar e se isolar parecem agora reatar relações para formar uma nova
ameaça.
Tríplice generalização das ilegalidades populares na passagem dos dois séculos (e fora mesmo de uma extensão
quantitativa que é problemática e ainda fica por medir): trata-se de sua inserção num horizonte político geral; de sua
articulação explícita sobre lutas sociais; da comunicação entre diferentes formas e níveis de infração. Esses processos não
seguiram sem dúvida um desenvolvimento pleno; certamente não se formou no começo do século XIX uma ilegalidade
maciça, ao mesmo tempo política e social. Mas em sua forma esboçada e apesar de sua dispersão foram suficientemente
marcados para servir de suporte ao grande medo de uma plebe que se acredita toda em conjunto criminosa e sediciosa, ao
mito da classe bárbara, imoral e fora da lei que, do império à monarquia de julho, está continuamente no discurso dos
legisladores, dos filantropos, ou dos pesquisadores da vida operária. São processos que encontramos atrás de toda uma
série de afirmações bem estranhas à teoria penal do século XVIII: que o crime não é uma virtualidade que o interesse ou
as paixões introduziram no coração de todos os homens, mas que é coisa quase exclusiva de uma certa classe social; que
os criminosos, que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais, saem agora "quase todos da última fileira
da ordem social"(36); "que nove décimos de matadores, de assassinos, de ladrões e de covardes procedem do que
chamamos a base social"(37); que não é o crime que torna estranho à sociedade, mas antes que ele mesmo se deve ao fato
de que se está na sociedade como um estranho, que se pertence àquela "raça abastarda" de que falava Target, àquela
"classe degradada pela miséria cujos vícios se opõem como um obstáculo invencível às generosas intenções que querem
combatê-la"(38); que nessas condições seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em
nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela é feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela
obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao
contrário do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma forma(39); que nos
tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem
sanciona outra fadada à desordem:
Percorrei os locais onde se julga, se prende, se mata... Um fato nos chama a atenção sempre; em toda parte vedes
duas classes bem distintas de homens, dos quais uns se encontram sempre nos assentos dos acusadores e dos juizes, e os
outros nos bancos dos réus e dos acusados.
O que é explicado pelo fato de que os últimos, por falta de recursos e de educação, não sabem permanecer nos
limites da probidade legal(40), tanto que a linguagem da lei que se pretende universal é, por isso mesmo, inadequada; ela
deve ser, se é para ser eficaz, o discurso de uma classe a outra, que não tem nem as mesmas ideias que ela, nem as
mesmas palavras:
229 ▲
Ora, com nossas línguas pudicas, desdenhosas, e embaraçadas com a etiqueta, será fácil fazer-se compreender por
aqueles que nunca ouviram senão o dialeto rude, pobre, irregular, mas vivo, franco, pitoresco do mercado, dos cabarés e
da feira... Que língua, que método seria preciso usar na redação das leis para agir de maneira eficaz sobre o espírito
inculto dos que podem menos resistir às tentações do crime?(41)
A lei e a justiça não hesitam em proclamar sua necessária dissimetria de classe.
Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente "fracassar", não erra seu objetivo; ao contrário, ela o atinge na medida
em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e
organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável. Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível,
marcada, irredutível a um certo nível e secretamente útil - rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha
uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se
quer ou se deve tolerar. Essa forma é a delinqüência propriamente dita. Não devemos ver nesta a forma mais intensa e
mais nociva da ilegalidade, aquela que o aparelho penal deve mesmo tentar reduzir pela prisão por causa do perigo que
representa; ela é antes um efeito da penalidade (e da penalidade de detenção) que permite diferenciar, arrumar e controlar
as ilegalidades. Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade; em todo caso, tem suas raízes nela; mas é
uma ilegalidade que o "sistema carcerário", com todas as suas ramificações, investiu, recortou, penetrou, organizou,
fechou num meio definido e ao qual deu um papel instrumental, em relação às outras ilegalidades. Em resumo, se a
oposição jurídica ocorre entre a legalidade e a prática ilegal, a oposição estratégica ocorre entre as ilegalidades e a
delinqüência.
O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve talvez ser substituído pela hipótese de que a prisão
conseguiu muito bem produzir a delinqüência, tipo especificado, forma política ou economicamente menos perigosa -
talvez até utilizável - de ilegalidade; produzir os delinqüentes, meio aparentemente marginalizado mas centralmente
controlado; produzir o delinqüente como sujeito patologizado. O sucesso da prisão: nas lutas em torno da lei e das
ilegalidades, especificar uma "delinqüência". Vimos como o sistema carcerário substituiu o infrator pelo "delinqüente". E
afixou também sobre a prática jurídica todo um horizonte de conhecimento possível. Ora, esse processo de constituição da
delinqüência-objeto se une à operação política que dissocia as ilegalidades e delas isola a delinquência. A prisão é o elo
desses dois mecanismos; permite-lhes se reforçarem perpetuamente um ao outro, objetivar a delinquência por trás da
infração, consolidar a delinqüência no movimento das ilegalidades. O sucesso é tal que, depois de um século e meio de
"fracasso",
230 ▲
a prisão continua a existir, produzindo os mesmos efeitos e que se têm os maiores escrúpulos em derrubá-la.
A penalidade de detenção fabricaria - daí sem dúvida sua longevidade - uma ilegalidade fechada, separada e útil. O
circuito da delinqüência não seria o subproduto de uma prisão que, ao punir, não conseguisse corrigir; seria o efeito direto
de uma penalidade que, para gerir as práticas ilegais, investiria algumas delas num mecanismo de "punição-reprodução"
de que o encarceramento seria uma das peças principais. Mas por que e como teria sido a prisão chamada a funcionar na
fabricação de uma delinqüência que seria de seu dever combater?
A instituição de uma delinqüência que constitua como que uma ilegalidade fechada apresenta com efeito um certo
número de vantagens. É possível, em primeiro lugar, controlá-la (localizando os indivíduos, infiltrando-se no grupo,
organizando a delação mútua): a agitação imprecisa de uma população que pratica uma ilegalidade de ocasião que é
sempre susceptível de se propagar, ou ainda aqueles bandos incertos de vagabundos que recrutam segundo o itinerário ou
as circunstâncias, desempregados, mendigos, refratários e que crescem às vezes - isso fora visto no fim do século XVIII -
até formar forças temíveis de pilhagem e de motim, são substituídos por um grupo relativamente restrito e fechado de
indivíduos sobre os quais se pode efetuar vigilância constante. É possível além disso orientar essa delinquência fechada
em si mesma para as formas de ilegalidade que são menos perigosas: mantidos pela pressão dos controles nos limites da
sociedade, reduzidos a precárias condições de existência, sem ligação com uma população que poderia sustentá-los (como
se fazia antigamente para os contrabandistas ou certas formas de banditismo(43), os delinquentes se atiram fatalmente a
uma criminalidade localizada, sem poder de atração, politicamente sem perigo e economicamente sem consequência. Mas
essa ilegalidade concentrada, controlada e desarmada é diretamente útil. Ela o pode ser em relação a outras ilegalidades:
isolada e junto a elas, voltada para suas próprias organizações internas, fadada a uma criminalidade violenta cujas
primeiras vítimas são muitas vezes as classes pobres, acoçada de todos os lados pela polícia, exposta a longas penas de
prisão, depois a uma vida definitivamente "especializada". A delinquência, esse outro mundo, perigoso e muitas vezes
hostil, bloqueia ou ao menos mantém a um nível bastante baixo as práticas ilegais correntes (pequenos roubos, pequenas
violências, recusas ou desvios cotidianos da lei), impede que elas resultem em formas amplas e manifestas, um pouco
como se o efeito de exemplo que antigamente se exigia da ostentação dos suplícios fosse procurado agora menos no rigor
das punições que na existência visível, marcada, da própria delinquência: ao se diferenciar das outras ilegalidades
populares, a delinquência pesa sobre elas.
231 ▲
Mas a delinquência é também capaz de utilização direta. Ocorre-nos o exemplo da colonização. Mas não é o que
melhor comprova; com efeito, se a deportação dos criminosos foi várias vezes pedida sob a Restauração, tanto pela
Câmara dos Deputados, quanto pêlos Conselhos Gerais, foi essencialmente para aliviar os encargos financeiros exigidos
por todo o aparelho da detenção; e apesar de todos os projetos que se pôde fazer sob a monarquia de julho para que os
delinquentes, os soldados indisciplinados, as prostitutas e as crianças abandonadas pudessem participar da colonização da
Argélia, esta foi formalmente excluída pela lei de 1854 que criava os campos de trabalhos forçados nas colónias; na
realidade a deportação para a Guiana ou mais tarde para a Nova Caledónia não teve importância económica real, apesar
de serem os condenados obrigados a permanecer na colónia onde haviam cumprido pena um número de anos pelo menos
igual a seu tempo de detenção (em certos casos, deviam mesmo permanecer toda a vida).43 Na realidade a utilização da
delinquência como meio ao mesmo tempo separado e manejável foi feita principalmente nas margens da legalidade. Ou
seja, instalou-se também no século XIX uma espécie de ilegalidade subordinada, cuja docilidade é garantida por sua
organização em delinquência, com todas as vigilâncias em que isto implica. A delinquência, ilegalidade dominada, é um
agente para a ilegalidade dos grupos dominantes. A implantação das redes de prostituição no século XIX é característica a
respeito(44): os controles de polícia e de saúde sobre as prostitutas, sua passagem regular pela prisão, a organização em
grande escala dos lupanares, a hierarquia cuidadosa que era mantida no meio da prostituição, seu enquadramento por
delinqüentes-indicadores, tudo isso permitia canalizar e recuperar, através de uma série de intermediários, os enormes
lucros sobre um prazer sexual que uma moralização cotidiana cada vez mais insistente votava a uma semiclandestini-dade
e tornava naturalmente dispendioso; na computação do preço do prazer, na constituição de lucro da sexualidade reprimida
e na recuperação desse lucro, o meio delinquente era cúmplice de um puritanismo interessado: um agente fiscal ilícito
sobre práticas ilegais.(45) Os tráficos de armas, os de álcool nos países de lei seca, ou mais recentemente os de droga,
mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da "delinquência útil"; a existência de uma proibição legal cria em
torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de
elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em delinquência. Esta é um instrumento para gerir e
explorar as ilegalidades.
É também um instrumento para a ilegalidade que o próprio exercício do poder atrai a si. A utilização política dos
delinquentes - sob a forma de espias, denunciantes, provocadores - era fato sabido bem antes do século XIX.(46) Mas
depois da Revolução essa prática tomou dimensões completamente diversas: a infiltração nos partidos políticos e
associações operárias, o recrutamento de
232 ▲
homens de ação contra os grevistas e amotinados, a organização de uma subpolítica - que trabalha em relação direta com
a polícia legal e suscetível, em último caso, de se tornar uma espécie de exército paralelo - todo um funcionamento
extralegal do poder foi em parte realizado pela massa de manobra constituída pêlos delinquentes: polícia clandestina e
exército de reserva do poder. Na França, parece que foi em torno da Revolução de 1848 e da tomada do poder de Luís
Napoleão que essas práticas atingiram seu pleno florescimento.(47) Pode-se dizer que a delinquência, solidificada por um
sistema penal centrado sobre a prisão, representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos da
classe dominante.
A organização de uma ilegalidade isolada e fechada na delinquência não teria sido possível sem o desenvolvimento
dos controles policiais. Fiscalização geral da população, vigilância
muda, misteriosa, desapercebida... é o olho do governo incessantemente aberto e velando indistintamente sobre
todos os cidadãos, sem para isso submetê-los a qualquer medida coercitiva... ela não tem necessidade de estar escrita na
lei.(48)
Controle particular e previsto pelo código de 1810 dos criminosos libertados e de todos aqueles que, tendo já
passado pela justiça por fatos graves, presume-se legalmente que devam atentar de novo contra o repouso da sociedade.
Mas a vigilância também de meios e de grupos considerados como perigosos pêlos espias ou indicadores, que são quase
todos antigos delinquentes, controlados como tais pela polícia: a delinquência, objeto entre outros da vigilância policial, é
um dos instrumentos privilegiados dessa mesma vigilância. Todas essas vigilâncias pressupõem a organização de uma
hierarquia em parte oficial, em parte secreta (era essencialmente na polícia parisiense o "serviço de segurança" que
compreendia, além dos "agentes ostensivos" -inspetores e cabos - os "agentes secretos" e indicadores movidos pelo receio
do castigo ou pela atração de uma recompensa).(49) Pressupõem também a organização de um sistema de documentação
cujo centro se constitui pela localização e identificação dos criminosos: descrição obrigatória juntada aos mandados de
prisão e às decisões do tribunal do júri, descrição anotada nos registros de entrada das prisões, cópia de registros do
tribunal do júri e de juizes de execução, dirigidas de três em três meses aos Ministérios da Justiça e da Polícia Geral, um
pouco mais tarde, no Ministério do Interior, organização de um fichário com lista alfabética recapitulando esses registros,
e por volta de 1833, segundo o método "dos naturalistas, dos bibliotecários, dos negociantes, dos comerciantes",
utilização de um sistema de fichas ou boletins individuais, que permite facilmente integrar novos dados e ao mesmo
tempo, com o nome do indivíduo procurado, todas as informações que poderiam ser utilizadas.(50) A delinquência, com
os agentes ocultos que proporciona mas também com a quadriculagem geral que autoriza, constitui em meio de vigilância
perpétua da
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população: um aparelho que permite controlar, através dos próprios delinquentes, todo o campo social. A delinquência
funciona como um observatório político. Os estatísticos e os sociólogos dela se utilizaram por sua vez, bem depois dos
policiais.
Mas essa vigilância só pôde funcionar conjugada com a prisão. Porque esta facilita o controle dos indivíduos quando
são libertados, porque permite o recrutamento dos indicadores e multiplica as denúncias mútuas, porque coloca os
infratores em contato uns com os outros, ela precipita a organização de um meio delinquente fechado em si mesmo, mas
que é fácil de controlar: e todos os efeitos de desinserção que acarreta (desemprego, proibição de permanência,
residências forçadas, disponibilidades) abrem largamente a possibilidade de impor aos antigos detentos as tarefas que lhes
são determinadas. Prisão e polícia formam um dispositivo geminado; sozinhas elas realizam em todo o campo das
ilegalidades a diferenciação, o isolamento e a utilização de uma delinquência. Nas ilegalidades, o sistema polícia-prisão
corresponde a uma delinquência manejável. Esta, com sua especificidade, é um efeito do sistema; mas torna-se também
uma engrenagem e um instrumento daquele. De maneira que se deveria falar de um conjunto cujos três termos (políciaprisão-
delinqüência) se apoiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é interrompido. A vigilância policial
fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que
regularmente mandam alguns deles de volta à prisão.
Não há uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que, para isso, utilizasse a polícia como
auxiliar, e a prisão como instrumento punitivo, podendo deixar no rastro de sua ação o resíduo inassimilável da
"delinquência". Deve-se ver nessa justiça um instrumento para o controle diferencial das ilegalidades. Em relação a este, a
justiça criminal desempenha o papel de caução legal e princípio de transmissão. Ela é um ponto de troca numa economia
geral das ilegalidades, cujas outras peças são (não abaixo dela, mas a seu lado) a polícia, a prisão e a delinquência. A
invasão da justiça pela polícia, a força de inércia que a instituição carcerária opõe à justiça, não é coisa nova, nem efeito
de uma esclerose ou de um progressivo deslocamento do poder; é um traço de estrutura que marca os mecanismos
punitivos nas sociedades modernas. Podem falar os magistrados; a justiça penal com todo o seu aparelho de espetáculo é
feita para atender à demanda cotidiana de um aparelho de controle meio mergulhado na sombra que visa engrenar uma
sobre a outra polícia e delinquência. Os juizes são os empregados, que quase não se rebelam, desse mecanismo.(51)
Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinquência, ou seja, a diferenciação das ilegalidades, o
controle, a colonização e a utilização de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante.
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Desse processo que se desenvolveu nos trinta ou quarenta primeiros anos do século XIX, duas figuras dão
testemunho. Vidocq em primeiro lugar. Ele foi(52) o homem das velhas ilegalidades, um Gil Blas do outro extremo do
século e que descamba rápido para o pior: turbulências, aventuras, vigarices, de que o mais das vezes foi ele a vítima,
rixas e duelos; alistamentos e deserções em série, encontros com o meio da prostituição, do jogo, dos batedores de
carteira, e logo do grande banditismo. Mas a importância quase mítica que ele teve aos próprios olhos de seus
contemporâneos não se deve a esse passado, talvez enfeitado demais; não se deve sequer ao fato de que, pela primeira vez
na história, um antigo forçado, alforriado ou comprado, se tenha tornado chefe de polícia; mas antes ao fato de que nele a
delinquência assumiu verdadeiramente seu estatuto ambíguo de objeto e instrumento para um aparelho de polícia que
trabalha contra ela e com ela. Vidocq marca o momento em que a delinquência, destacada das outras ilegalidades, é
investida pelo poder, e voltada para o outro lado. É então que se opera a acoplagem direta e institucional da polícia e da
delinquência. Momento inquietante em que a criminalidade se torna uma das engrenagens do poder. Uma figura era
constante nas épocas anteriores, a do rei monstruoso, fonte de toda justiça e entretanto maculado de crimes; aparece outro
medo, o de um acordo escondido e torpe entre os que fazem valer a lei e os que a violam. Terminada a era shakespearina
em que a soberania se defrontava com a abominação num mesmo personagem; breve começará o melodrama cotidiano do
poderio policial e das cumplicidades que o crime estabelece com o poder.
Em frente a Vidocq, seu contemporâneo Lacenaire. Sua presença marcada para sempre no paraíso dos estetas do
crime tem razões para surpreender: apesar de toda a sua boa vontade, seu zelo de neófito, nunca conseguiu cometer, e
com bastante inabilidade, senão alguns crimes sem grandeza; suspeitava-se tanto que ele fosse um delator, que a
administração teve que protegê-lo contra os detentos da Força que procuravam matá-lo(53), e foi a alta roda do Paris de
Luís Filipe que fez para ele, antes de sua execução, uma festa ao lado da qual muitas ressurreições literárias depois não
passaram de homenagens académicas. Sua glória não deve nada à vastidão de seus crimes nem à arte de sua concepção; o
que espanta é seu balbucio. Mas deve muito ao jogo visível, em sua existência e seus discursos, entre a ilegalidade e a
delinquência. Lacenaire é o tipo do "delinquente" por fraude, deserção, pequeno furto, prisão, reconstituição das amizades
de cela, chantagem mútua, reincidências até à última tentativa falha de assassinato. Mas trazia consigo, pelo menos em
estado virtual, um horizonte de ilegalidades que, ainda recentemente, haviam sido ameaçadoras: esse pequeno-burguês
arruinado, que sabia falar e escrever, uma geração antes teria sido revolucionário, jacobino, regicida(54); contemporâneo
de Robespierre, sua recusa das leis poderia ter tido efeito num campo imediatamente histórico.
235 ▲
Nascido em 1800, quase como Julien Sorel, seu personagem tem a marca dessas possibilidades; mas elas
descambaram para o roubo, o assassinato e a denúncia. Todas aquelas virtualidades se tornaram uma delinquência de bem
pouca envergadura: nesse sentido, Lacenaire é um personagem tranquilizador. E se reaparecem, é no discurso que ele faz
sobre a teoria do crime. No momento da morte, Lacenaire manifesta o triunfo da delinquência sobre a ilegalidade, ou
antes a figura de uma ilegalidade confiscada por um lado na delinquência e deslocada por outro para uma estética do
crime, ou seja, para uma arte das classes privilegiadas. Simetria de Lacenaire com Vidocq que na mesma época permitia
fechar a delinquência em si mesma, constituindo-a como ambiente fechado e controlável, e deslocando para as técnicas
policiais a prática delinquente que se torna ilegalidade lícita do poder. Há uma razão que explica por que a burguesia
parisiense festejou Lacenaire, por que sua cela foi aberta para visitantes famosos, por que ele foi coberto de homenagens
durante os últimos dias de sua vida, ele que a plebe da Força, antes dos juizes, quisera levar à morte, ele que fizera tudo,
no tribunal, para arrastar seu cúmplice François ao cadafalso. É que se celebrava a figura simbólica de uma ilegalidade
submetida na delinquência e transformada em discurso - ou seja, tornada duas vezes inofensiva; a burguesia aí inventava
um novo prazer, cujo exercício ela ainda está longe de esgotar. Não devemos esquecer que essa tão famosa morte de
Lacenaire vinha bloquear a repercussão do atentado de Fieschi, o mais recente dos regicidas que representa a figura
inversa de uma pequena criminalidade que resulta na violência política. Não devemos tampouco esquecer que ela
aconteceu alguns meses antes da partida da última cadeia e das manifestações tão escandalosas que a haviam
acompanhado. Essas duas festas se cruzaram na história; e aliás François, o cúmplice de Lacenaire, foi um dos
personagens mais em evidência da cadeia de 19 de julho.(55) Uma prolongava os rituais antigos dos suplícios, com o
risco de reativar em torno dos criminosos as ilegalidades populares. Seria proibida, pois o criminoso não devia mais ter
lugar a não ser no espaço apropriado da delinquência. A outra iniciava o jogo teórico de uma ilegalidade de privilegiados;
ou antes, ela marcava o momento em que as ilegalidades políticas e económicas praticadas pela burguesia de fato iam ser
acompanhadas pela representação teórica e estética: a "Metafísica do crime", como se diz a respeito de Lacenaire.
L'Assassinai considere coinme un dês Beaux-Arts foi publicado em 1849.
Essa produção da delinquência e seu investimento pelo aparelho penal devem ser tomados pelo que são: não
resultados definitivos, mas táticas que se deslocam na medida em que nunca atingem inteiramente seu objetivo. O corte
entre sua delinquência e as outras ilegalidades, o fato de que ela se tenha voltado
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contra elas, sua colonização pelas ilegalidades dominantes - outros tantos efeitos que aparecem claramente na maneira
como funciona o sistema polícia-prisão - não cessaram, entretanto, de encontrar resistências; suscitaram lutas e
provocaram reações. Erguer a barreira que deveria separar os delinquentes de todas as camadas populares de que saíam e
com as quais permaneciam ligados era uma tarefa difícil, principalmente sem dúvida nos meios urbanos.(56) Demorou
muito tempo e exigiu obstinação. Foram usados os processos gerais daquela "moralização" das classes pobres que teve
aliás importância capital tanto do ponto de vista económico quanto político (aquisição do que se poderia chamar uma
"legalidade de base", indispensável a partir do momento em que o sistema do código substituíra os costumes; aprendizado
das regras elementares da propriedade e da poupança; treinamento para a docilidade no trabalho, para a estabilidade da
habitação e da família, etc.). Recorreu-se a processos mais particulares para alimentar a hostilidade dos menos populares
contra os delinquentes (usando os antigos detentos como indicadores, espias, furadores de greve ou homens de ação).
Foram sistematicamente confundidos os delitos de direito comum e aquelas infrações à pesada legislação sobre as
carteiras de reservista, as greves, os conluios, as associações(57) para as quais os operários pediam o reconhecimento de
um estatuto político. Com muita frequência as ações operárias eram acusadas de serem animadas, senão manipuladas, por
simples criminosos.(58) Mostrou-se nos veredictos muitas vezes maior severidade contra os operários que contra os
ladrões.(59) Misturaram-se nas prisões as duas categorias de condenados, e foi dado tratamento preferencial ao direito
comum, enquanto que os jornalistas ou políticos detidos tinham direito, a maior parte do tempo, de serem postos
separados. Em resumo, toda uma tática de confusão que tinha como finalidade um estado de conflito permanente.
A isso se acrescentava um longo trabalho para impor à percepção que se tinha dos delinquentes contornos bem
determinados: apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis. É a função do
noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais.(60) A notícia policial, por sua
redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade; conta dia a
dia uma espécie de batalha interna contra o inimigo sem rosto; nessa guerra, constitui o boletim cotidiano de alarme ou de
vitória. O romance de crime, que começa a se desenvolver nos folhetins e na literatura barata, assume um papel
aparentemente contrário. Tem por função principalmente mostrar que o delinquente pertence a um mundo inteiramente
diverso, sem relação com a existência cotidiana e familiar. Essa excepcionalidade caracterizou primeiro o bas-fond (Lês
Mystères de Paris, Rocambole), depois a loucura (sobretudo na segunda metade do século), enfim o crime dourado, a
delinquência de "grande envergadura" (Arsène Lupin). O noticiário policial, junto com a literatura de
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crimes, vem produzindo há mais de um século uma quantidade enorme de "histórias de crimes" nas quais principalmente
a delinquência aparece como muito familiar e, ao mesmo tempo, totalmente estranha, uma perpétua ameaça para a vida
cotidiana, mas extremamente longínqua por sua origem, pelo que a move, pelo meio onde se mostra, cotidiana e exótica.
Pela importância que lhe é dada e o fausto discursivo de que se acompanha, traça-se em torno dela uma linha que, ao
exaltá-la, põe-na à parte. Nessa delinquência tão temível, e vinda de um céu tão estranho, que ilegalidade poderia
reconhecer?...
Essa tática múltipla não ficou sem efeito: provam-no as campanhas dos jornais populares contra o trabalho
penal(61), contra o "conforto das prisões", para que sejam reservados aos detentos os trabalhos mais duros e mais
perigosos, contra o excesso de interesse que a filantropia dedica aos delinquentes, contra a literatura que exalta o
crime(62); prova-o também a desconfiança experimentada em geral em todo o movimento operário em relação aos
antigos condenados de direito comum.
Ao despertar do século XX [escreve Michèle Perrot], cercada de desprezo, a mais altaneira das muralhas, a prisão,
acaba-se fechando a um povo impopular.(63)
Entretanto, essa tática está longe de ter triunfado, ou em todo caso de ter obtido uma ruptura total entre os
delinquentes e as camadas populares. As relações das classes populares com a infração, a posição recíproca do
proletariado e da plebe urbana deveriam ser estudadas. Mas uma coisa é certa: a delinquência e a repressão são
consideradas, no movimento operário dos anos 1830-1850, como um trunfo importante. Hostilidade aos delinquentes sem
dúvida; mas batalha em torno da penalidade. Os jornais populares propõem muitas vezes uma análise política da
criminalidade que se opõe termo por termo à descrição familiar dos filantropos (probreza-dissipação-preguiça-bebedeiravício-
roubo-crime). O ponto de origem da delinquência é por eles determinado não no indivíduo criminoso (este é apenas
a ocasião ou a primeira vítima) mas na sociedade:
O homem que vos traz a morte não é livre de não trazê-la. A sociedade é a culpada, ou, para dizer melhor, a má
organização social.(64)
E isto, seja porque ela não está apta a prover a suas necessidades fundamentais, seja porque ela destrói ou apaga nele
possibilidades, aspirações ou exigências que surgirão em seguida no crime:
A falsa instrução, as aptidões e as forças não consultadas, a inteligência e o coração comprimidos por um trabalho
forçado numa idade muito tenra.(65)
Mas essa criminalidade de necessidade ou de repressão mascara com o brilho que lhe é dado e a desconsideração de
que é cercada, outra criminalidade que é às vezes causa dela, e sempre a amplificação. É a delinquência de cima, exemplo
escandaloso, fonte de miséria e princípio de revolta para os pobres.
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Enquanto a miséria cobre de cadáveres vossas ruas, de ladrões e assassinos vossas prisões, que vemos da parte dos
escroques da fina sociedade? ... os exemplos mais corruptores, o mais revoltante cinismo, o banditismo mais
desavergonhado... Não receais que o pobre que é citado ao banco dos criminosos por ter arrancado um pedaço de pão
pelas grades de uma padaria se indigne o bastante, algum dia, para demolir pedra por pedra a Bolsa, um antro selvagem
onde se roubam impunemente os tesouros do Estado, a fortuna das famílias.(66)
Ora, essa delinquência própria à riqueza é tolerada pelas leis, e, quando lhe acontece cair em seus domínios, ela está
segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa.(67) Daí a ideia de que os processos criminais podem se
tornar ocasião para um debate político, que é preciso aproveitar os processos de opinião ou ações intentadas contra os
operários para denunciar o funcionamento geral da justiça penal:
O recinto dos tribunais não é mais apenas, como antigamente, um local de exibição das misérias e pragas de nossa
época, uma espécie de marca onde vêm se exibir lado a lado as tristes vítimas de nossa desordem social; é uma arena onde
ressoa o grito dos combatentes.(68)
Daí também a ideia de que os prisioneiros políticos, já que têm, como os delinquentes, experiência direta do sistema
penal, mas que estão em condições de se fazer ouvir, têm o dever de ser porta-vozes de todos os detentos: a eles cabe
esclarecer "o bom burguês da França que nunca conheceu as penas que se infligem senão por meio de pomposas frases de
um procurador geral".(69)
Nesse questionamento da justiça penal e dos limites que ela estabelece cuidadosamente em torno da delinquência, é
característica a tática do que poderíamos chamar o "contranoticiário policial". Para os jornais populares, o importante era
transformar o uso que se dava aos crimes ou aos processos nos jornais que, à maneira da Gazette dês tribunaux,
"alimentam de sangue", se "alimentam de prisão" e fazem representar todo dia "um repertório de melodrama".(70) O
contranoticiário policial destaca sistematicamente os fatos de delinquência da burguesia, mostrando que ela é a classe
submetida à "degenerescência física", à "podridão moral"(71), substitui os relatos de crimes cometidos por gente do povo
pela descrição da miséria em que caem os que os exploram e que, no sentido estrito, os deixam com fome e os assassinam
; mostra nos processos criminais contra os operários a parte de responsabilidade que deve ser atribuída aos empregadores
e à sociedade inteira. Enfim, empenha-se todo esforço para transformar esse discurso monótono sobre o crime,
procurando ao mesmo tempo isolá-lo como uma monstruosidade e fazendo cair todo o seu escândalo sobre a classe mais
pobre.
No curso dessa polémica antipenal, os partidários de Fourier foram sem dúvida mais longe que os outros.
Elaboraram, os primeiros talvez, uma teoria política que é ao mesmo tempo uma valorização positiva do crime. Se este é,
segundo eles, um efeito da "civilização", é igualmente e pela mesma razão uma arma contra ela. Traz consigo um vigor e
um futuro.
239 ▲
A ordem social dominada pela fatalidade de seu princípio compressivo continua a matar pela máo do carrasco ou
com as prisões aqueles cujo natural robusto rejeita ou desdenha suas prescrições, aqueles que por serem fortes demais
para ficar presos nesses cueiros acanhados, os desfazem e rasgam, homens que não querem permanecer crianças.(72)
Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos(73), os
conduzirão ao poder ou à prisão: pobres, os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados:
e os forçados, se fossem bem nascidos, "tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça".(74) No fundo, a
existência do crime manifesta felizmente uma "incompressibilidade da natureza humana; deve-se ver nele, mais que uma
fraqueza ou uma doença, uma energia que se ergue, um "brilhante protesto da individualidade humana" que sem dúvida
lhe dá aos olhos de todos seu estranho poder de fascínio.
Sem o crime que desperta em nós uma grande quantidade de sentimentos adormecidos e de paixões meio apagadas,
ficaríamos mais tempo na desordem, ou seja, na atonia.(75)
Pode então acontecer que o crime constitua um instrumento político que seja tão importante para a libertação de
nossa sociedade quanto foi para a emancipação dos negros; teria esta acontecido sem ele? "O veneno, o incêndio e às
vezes até a revolta atestam as ardentes misérias da condição social.(76) Os prisioneiros? A parte "mais infeliz e mais
oprimida da humanidade". La Phalange se reunia às vezes à estética contemporânea do crime, mas para um combate bem
diferente.
Daí uma utilização do noticiário policial que não tem simplesmente como objetivo fazer voltar contra o adversário a
acusação de imoralidade, mas fazer aparecer o jogo das forças que se opõem reciprocamente. La Phalange analisa os
casos penais como uma defrontação codificada pela "civilização", os grandes crimes não como monstruosidades mas
como a volta fatal e a revolta do que é reprimido(77), as pequenas ilegalidades não como as margens necessárias da
sociedade mas como o fulcro da batalha que aí se desenrola.
Coloquemos aí, depois de Vidocq e Lacenaire, um terceiro personagem. Esse fez só uma breve aparição; sua
notoriedade não durou mais que um dia. Era apenas a figura passageira das ilegalidades menores: uma criança de treze
anos, sem domicílio nem família, acusada de vadiagem e que uma condenação a dois anos de correção sem dúvida
colocou por muito tempo nos circuitos da delinquência. Teria com toda certeza passado sem vestígios, se não tivesse
oposto ao discurso da lei que a tornava delinquente (mais em nome das disciplinas que em termos do código) o discurso
de uma ilegalidade que permanecia rebelde a essas coerções. E que valorizava a indisciplina de uma maneira
sistematicamente ambígua como a ordem desordenada da sociedade e como afirmação de direitos irredutíveis. Todas as
ilegalidades que o tribunal
240 ▲
codifica como infrações, o acusado reformulou como afirmação de uma força viva: a ausência de habitat em
vadiagem, a ausência de patrão em autonomia, a ausência de trabalho em liberdade, a ausência de horário em plenitude
dos dias e das noites. Essa defrontação da ilegalidade com o sistema disciplina-pe-nalidade-delinqüência foi percebida
pêlos contemporâneos ou antes pelo jornalista que lá se encontrava como o efeito cómico da lei criminal às voltas com os
fatos miúdos da indisciplina. E estava certo: o próprio caso, e o veredicto que se lhe seguiu estão bem no centro do
problema dos castigos legais no século XIX. A ironia com que o juiz tenta envolver a indisciplina na majestade da lei e a
insolência com que o acusado reinscreve a indisciplina nos direitos fundamentais constituem para a penalidade uma cena
exemplar.
O que nos valeu sem dúvida a síntese da Gazette dês tribunauxn: O Presidente - Deve-se dormir em casa.
Béasse - Eu tenho um em casa? - O senhor vive em perpétua vagabundagem. - Eu trabalho para ganhar a vida. -
Qual é a sua profissão? - Minha profissão? Em primeiro lugar, tenho trinta e seis; mas não trabalho para ninguém. Já faz
algum tempo, estou por minha conta. Tenho minhas ocupações de dia e de noite. Assim, por exemplo, de dia distribuo
impressos grátis a todos os passantes; corro atrás das diligências que chegam para carregar os pacotes: dou o meu show na
avenida de Neuilly; de noite, são os espetáculos; vou abrir as portas, vendo senhas de saída; sou muito ocupado. - Seria
melhor para o senhor estar colocado numa boa casa e láfazer seu aprendizado. - Ah, é sim, uma boa casa, um aprendizado,
é chato. Mas esses burgueses resmungam sempre e eu fico sem a minha liberdade. - Seu pai não o chama? - Não tenho
mais pai. - E sua mãe? - Também não, nem parentes, nem amigos, livre e independente.
Ouvindo sua condenação a dois anos de correção, Béasse faz uma careta feia, depois, recobrando o bom humor:
"Dois anos nunca duram mais que vinte e quatro meses. Vamos embora, vamos indo".
Esta é a cena que a Phalange aproveitou. E a importância que lhe atribui, a análise muito lenta, muito cuidadosa que
faz dela, mostra que os partidários de Fourier viam num caso tão cotidiano como esse um jogo de forças fundamentais. De
um lado, a força da "civilização", representada pelo presidente, "legalidade viva, espírito e letra da lei". Ela tem seu
sistema de coerção, que parece o código e na realidade é a disciplina. É preciso ter um local, uma localização, uma
inserção obrigatória:
Dorme-se em casa, diz o presidente, porque na verdade, para ele, tudo tem que ter um domicílio, uma moradia
esplêndida ou mísera, pouco importa; não é a ele que cabe provê-la; ele é encarregado de forçar a isso todos os
indivíduos.
Deve-se além disso ter uma profissão, uma identidade reconhecível, uma individualidade definitivamente fixada:
Qual é sua profissão? Esta pergunta é a expressão mais simples da ordem que se estabelece na sociedade, a qual
repugna e perturba a vagabundagem; é preciso ter uma profissão estável, contínua, de largo fôlego, idéias que vejam o
futuro, idéias de construção do futuro, para premunir a sociedade de qualquer ataque.
241 ▲
Deve-se enfim ter um patrão, estar preso e situado dentro de uma hierarquia; o homem só existe fixado em relações
definidas de dominação:
Para quem o senhor trabalha? Quer dizer, já que o senhor não é patrão, tem que ser servidor, de alguma forma; o que
importa não é a satisfação do indivíduo, mas a ordem a ser mantida.
Diante da disciplina com aspecto de lei, temos a ilegalidade que se impõe como um direito. A ruptura se dá mais
pela indisciplina do que pela infração. Indisciplina da linguagem: a incorreção gramatical e o tom das respostas "indicam
uma cisão violenta ente o acusado e a sociedade que por meio do presidente se dirige a ele em termos corretos".
Indisciplina que é a da liberdade nata e imediata:
Ele sente muito bem que o aprendiz, o operário, é escravo e que a escravidão é triste... Ele sente que não a gozaria
mais na ordem comum essa liberdade de movimento de que é possuído... ele prefere a liberdade, mesmo sendo desordem,
que importa? E a liberdade, ou seja, o desenvolvimento mais espontâneo de sua individualidade, desenvolvimento
selvagem e conseqüentemente brutal e limitado, mas desenvolvimento natural e instintivo.
Indisciplina nas relações familiares: pouco importa que essa criança perdida tenha sido abandonada ou se tenha
libertado voluntariamente, pois "não pôde também suportar a escravidão da educação em casa dos pais ou de
estranhos(78). E através de todas essas pequenas indisciplinas no fundo se acusa a "civilização" inteira, enquanto
desponta a "selvageria":
É trabalho, preguiça, despreocupação, devassidão: é tudo, menos ordem; excetuando-se as ocupações e devassidões,
é a vida do selvagem, no dia-a-dia e sem amanhã.(79)
Sem dúvida as análises de La Phalange não podem ser consideradas representativas das discussões que os jornais
populares faziam na época sobre os crimes e a penalidade. Mas elas se situam no contexto dessa polémica. As lições de
La Phalange não se perderam totalmente. Elas é que foram despertadas pela reação tão ampla de resposta aos anarquistas,
quando, na segunda metade do século XIX, eles, tomando como ponto de ataque o aparelho penal, colocaram o problema
político da delinquência; quando pensaram reconhecer nela a forma mais combativa de recusa da lei; quando tentaram,
não tanto heroicizar a revolta dos delinquentes quanto desligar a delinquência em relação à legalidade e à ilegalidade
burguesa que a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades
populares.
242 ▲
CAPÍTULO III
O CARCERÁRIO
Tivesse eu que fixar a data em que se completa a formação do sistema carcerário, não escolheria 1810 e o Código
Penal, nem mesmo 1844, com a lei que estabelecia o princípio do internamento celular; talvez não escolhesse 1838,
quando foram publicados os livros de Charles Lucas, Moreau-Christophe e Faucher sobre a reforma das prisões. Mas 22
de janeiro de 1840, data da abertura oficial de Mettray. Ou melhor talvez, aquele dia, de uma glória sem calendário, em
que uma criança de Mettray agonizava dizendo: "Que pena ter que deixar tão cedo a colónia".(1) Era a morte do primeiro
santo penitenciário. Muitos bem-aventurados o seguiram, sem dúvida, se é verdade que os colonos costumavam dizer,
para fazer o elogio da nova política punitiva do corpo: "Preferiríamos as pancadas, mas a cela é melhor para nós".
Por que Mettray? Porque é a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que concentram todas as
tecnologias coercitivas do comportamento. Tem alguma coisa "do claustro, da prisão, do colégio, do regimento". Os
pequenos grupos, fortemente hierarquizados, entre os quais os detentos se repartem, têm simultaneamente cinco modelos
de referência: o modelo da família (cada grupo é uma "família" composta de "irmãos" e de dois "mais velhos"); o modelo
do exército (cada família, comandada por um chefe, se divide em suas seções, cada qual com um subchefe; todo detento
tem um número de matrícula e deve aprender os exercícios militares básicos; realiza-se todos os dias uma revista de
limpeza, e uma vez por semana uma revista de roupas; a chamada é feita três vezes por dia); o modelo da oficina, com
chefes e contramestres que asseguram o enquadramento do trabalho e o aprendizado dos mais jovens; o modelo da escola
(uma hora ou hora e meia de aula por dia; o ensino é feito pelo professor e pêlos subchefes); e por fim o modelo
judiciário; todos os dias se faz uma "distribuição de justiça" no parlatório:
A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais
leves faltas; em Mettray reprime-se qualquer palavra inútil;
a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela; pois
o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí principalmente que a voz da religião, mesmo
se nunca houvesse falado a seu coração, recebe toda a sua força e emoção(2);
toda a instituição parapenal, que é feita para não ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras
negras: "Deus o vê".
243 ▲
Essa superposição de modelos diferentes permite determinar a função de "adestramento" no que ela tem de
específico. Os chefes e subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juizes, nem professores, nem contramestres,
nem soboficiais, nem "pais", mas um pouco de tudo isso e num modo de intervenção que é específico. São de certo modo
técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade. Tem que fabricar corpos ao mesmo
tempo dóceis e capazes: controlam as nove ou dez horas de trabalho cotidiano (artesanal ou agrícola); dirigem as paradas,
os exercícios físicos, a escola de pelotão, as alvoradas, o recolher, as marchas com corneta e apito; mandam fazer
ginástica(3); verificam a limpeza, presidem aos banhos. Adestramento que é acompanhado por uma observação
permanente; continuamente se avalia o comportamento cotidiano dos colonos; é um saber organizado como instrumento
de apreciação perpétua:
Ao entrar na colónia, a criança é submetida a uma espécie de interrogatório para se ter uma ideia de sua origem,
posição de sua família, a falta que a levou diante dos tribunais e todos os delitos que compõem sua curta e muitas vezes
bem triste existência. Essas informações são postas num quadro onde se anota sucessivamente tudo o que se refere a cada
colono, sua estada na colônia e sua situação depois que sai.(4)
A modelagem do corpo dá lugar a um conhecimento do indivíduo, o aprendizado das técnicas induz a modos de
comportamento e a aquisição de aptidões se mistura com a fixação de relações de poder; formam-se bons agricultores
vigorosos e hábeis; nesse mesmo trabalho, desde que tecnicamente controlado, fabricam-se indivíduos submissos, e
constitui-se sobre eles um saber em que se pode confiar. Duplo efeito dessa técnica disciplinar que é exercida sobre os
corpos: uma "alma" a conhecer e uma sujeição a manter. Um resultado autentica esse trabalho de treinamento: em 1848,
no momento em que
a febre revolucionária apaixonava todas as imaginações, no momento em que as escolas de Angers, de La Flèche, de
Alfort, e os próprios colégios se insurgiram, os colonos de Mettray redobraram sua calma.(5)
Mettray é sobretudo um exemplo na especificidade que lhe é reconhecida nessa operação de adestramento. Ela se
aproxima de outras formas de controle sobre as quais ela se apoia, isto é, na medicina, na educação geral, na direção
religiosa. Mas não se confunde absolutamente com elas. Nem tampouco com a administração propriamente dita. Os
homens da direção: chefes ou subchefes de família, monitores ou contramestres, tinham que viver bem próximos dos
colonos; usavam uma roupa "quase tão humilde" quanto a deles; praticamente nunca os deixavam, vigiando-os dia e
noite; constituíam no meio deles uma rede de observação permanente. E para a formação destes chefes fora organizada na
colónia uma escola especializada. O elemento essencial de seu programa era submeter os futuros administradores aos
mesmos aprendizados e às mesmas coerções que os próprios detentos: eram "submetidos como alunos à
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disciplina que deveriam como professores impor mais tarde". Era-lhes ensinada a arte das relações de poder. Primeira
escola normal da disciplina pura: o "penitenciário" não é simplesmente um projeto que procura sua caução na
"humanidade" ou seus fundamentos numa "ciência"; mas uma técnica que se aprende, se transmite, e que obedece a
normas gerais. A prática que normaliza à força o comportamento dos indisciplinados ou dos perigosos pode ser por sua
vez "normalizada" por uma elaboração técnica e uma reflexão racional. A técnica disciplinar torna-se uma "disciplina"
que, também, tem sua escola.
A certidão de nascimento da psicologia científica segundo os historiadores das ciências humanas é passada com data
dessa época. Weber, para medir as sensações, teria começado a manipular seu pequeno compasso nesses mesmos anos. O
que se passa em Mettray (e nos outros países da Europa um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde) é evidentemente de
outra ordem inteiramente diversa. É a aparição ou antes a especificação institucional e como que o batismo de um novo
tipo de controle - ao mesmo tempo conhecimento e poder - sobre os indivíduos que resistem à normalização disciplinar. E
no entanto na formação e no crescimento da psicologia, o aparecimento desses profissionais da disciplina, da normalidade
e da sujeição, vale bem sem dúvida a medida de um limiar diferencial. Dir-se-á que a estimação quantitativa das respostas
sensoriais podia pelo menos usar a autoridade dos prestígios da fisiologia nascente e que a esse título merece constar na
história dos conhecimentos. Mas os controles de normalidade eram, por sua vez, fortemente enquadrados por uma
medicina ou uma psiquiatria que lhes garantiam uma forma de "cientifi-cidade"; estavam apoiados num aparelho
judiciário que, de maneira direta ou indireta, lhes trazia sua canção legal. Assim, ao abrigo dessas duas consideráveis
tutelas e aliás servindo-lhes de vínculo, ou de lugar de troca, desenvolveu-se continuamente até hoje uma técnica refletida
do controle das normas. Os suportes institucionais e específicos desses processos se multiplicaram desde a pequena escola
de Mettray; seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície; seus laços se multiplicaram, com os hospitais, as
escolas, as repartições públicas e as empresas privadas; seus agentes proliferaram em número, em poder, em qualificação
técnica; os técnicos da indisciplina fizeram escola. Na normalização do poder de normalização, na organização de um
poder-saber sobre os indivíduos, Mettray e sua escola fazem época.
Mas por que ter escolhido este momento como ponto de chegada na formação de uma certa arte de punir, que é
ainda mais ou menos a nossa? Precisamente porque essa escolha é um pouco "injusta". Porque situa o "fim" do processo
na região menos nobre do direito criminal. Porque Mettray é uma prisão, embora falha: prisão, porque eram detidos aí os
jovens delinquentes
245 ▲
condenados pêlos tribunais; e no entanto algo diferente pois eram presos aí os menores que haviam sido citados mas
absolvidos em virtude do artigo 66 do Código, e alunos internos retidos, como no século XVIII, a título da correção
paterna. Mettray, como modelo punitivo, está no limite da penalidade estrita. Foi a mais famosa de toda uma série de
instituições que bem além das fronteiras do direito penal constituíram o que se poderia chamar o arquipélago carcerário.
No entanto, os princípios gerais, os grandes códigos e as legislações afirmaram: não há encarceramento "fora da lei",
não há detenção que não seja decidida por uma instituição judiciária qualificada, não há mais esses enclau-suramentos
arbitrários e no entanto maciços. Ora, o próprio princípio do encarceramento extrapenal na realidade nunca foi
abandonado.(6) E se o aparelho do grande enclausuramento clássico foi em parte desmantelado (e só em parte), foi muito
cedo reativado, reorganizado, desenvolvido em certos pontos. Mas, o que é ainda mais importante, é que foi
homogeneizado por intermédio da prisão por um lado com os castigos legais, e por outro lado com os mecanismos
disciplinares. As fronteiras que já eram pouco claras na era clássica entre o encarceramento, os castigos judiciários e as
instituições de disciplina, tendem a desaparecer para constituir um grande continuam carcerário que difunde as técnicas
penitenciárias até as disciplinas mais inocentes, transmitem as normas disciplinares até a essência do sistema penal, e
fazem pesar sobre a menor ilegalidade, sobre a mínima irregularidade, desvio ou anomalia, a ameaça da delinquência.
Uma rede carcerária sutil, graduada, com instituições compactas, mas também com procedimentos parcelados e difusos,
encarregou-se do que cabia ao encarceramento arbitrário, maciço, mal integrado da era clássica.
Não se trata aqui de reconstituir todo esse tecido que forma a ambiência imediata, primeira, depois cada vez mais
longínqua da prisão. Que seja suficiente dar algumas referências para avaliar a amplitude, e algumas datas para medir a
precocidade.
Houve as seções agrícolas das casas centrais (cujo primeiro exemplo foi Gaillon em 1824, seguido mais tarde por
Fontevrault, lês Douaires, lê Boulard); houve as colónias para crianças pobres, abandonadas e vadias (Petit-Bourg em
1840, Ostwald em 1842); houve os refúgios, as caridades, as misericórdias destinadas às moças culpadas que "recuam
diante do pensamento de voltar a uma vida de desordem", para "as pobres inocentes expostas a uma perversidade precoce
pela imoralidade materna", ou para as meninas pobres encontradas à porta dos hospitais e das pensões. Houve as colónias
penitenciárias previstas pela lei de 1850: os menores, absolvidos, ou condenados, lá deviam ser "criados em comum sob
uma severa disciplina, e aplicados em trabalhos de agricultura, assim como nas principais indústrias que a ela se ligam", e
mais tarde virão reunir-se a eles os menores passíveis de internamento em colónias, "os pupilos
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viciosos e insubmissos da Assistência Pública".(7) E, afastando-se sempre mais da penalidade propriamente dita, os
círculos carcerários se alargam e a forma da prisão se dilui lentamente antes de desaparecer por completo: as instituições
para crianças abandonadas ou indigentes, os orfanatos (como Neuhof ou Lê Mesnil-Firmin), os estabelecimentos para
aprendizes (como o Bethléem de Reims ou a Maison de Nancy); distanciando-se ainda mais, as fábricas-conven-tos, como
a de La Sauvagère depois de Tarare e de Jujurieu (onde as operárias entram pêlos treze anos, vivem reclusas durante anos
e só saem sob vigilância; não recebem salários, mas fianças em forma de prémios de zelo e bom comportamento, que só
lhes são entregues ao saírem. Indo mais além, houve ainda uma série de dispositivos que não retomam a prisão
"compacta", mas utilizam alguns dos mecanismos carcerários: patronatos, obras de moralização, centrais de distribuição
de auxílios e vigilância, cidades e alojamentos operários - cujas formas primitivas e mais grosseiras trazem ainda muito
visíveis as marcas do sistema penitenciário.(8) E finalmente essa grande organização carcerária reúne todos os
dispositivos disciplinares, que funcionam disseminados na sociedade.
Vimos que, na justiça penal, a prisão transformava o processo punitivo em técnica penitenciária; quatro ao
arquipélago carcerário, ele transporta essa técnica da instituição penal para o corpo social inteiro. Com vários efeitos
importantes.
1) Esse vasto dispositivo estabelece uma gradação lenta, contínua, imperceptível que permite passar como que
naturalmente da desordem à infração e em sentido inverso da transgressão da lei ao desvio em relação a uma regra, a uma
média, a uma exigência, a uma norma. Na época clássica, apesar de uma certa referência comum à falta em geral(9), a
ordem da infração, a ordem do pecado e do mau comportamento ficavam separadas na medida em que dependiam de
critérios e instâncias separadas (a penitência, o tribunal, o enclausura-mento). O encarceramento com seus mecanismos de
vigilância e punição funciona, ao contrário, segundo um princípio de relativa continuidade. Continuidade das próprias
instituições que existem num relacionamento recíproco (dos órgãos de assistência para o orfanato, para a casa de
correção, para a penitenciária, para o batalhão disciplinar, para a prisão; da escola para o patronato, para a oficina, para o
refúgio, para o convento penitenciário; da cidade operária para o hospital, a prisão). Continuidade dos critérios e
mecanismos punitivos que a partir do simples desvio fazem pesar cada vez mais a regra e agravam a sanção. Gradação
contínua das autoridades instituídas, especializadas e competentes (na ordem do saber e na ordem do poder) que, sem
arbitrariedade, mas segundo regulamentos, por meio de verificação e medida, hierarquizam, diferenciam, sancionam,
punem e vão pouco a pouco da sanção dos desvios ao castigo dos crimes. O "carcerário" com suas formas
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múltiplas, difusas ou compactas, suas instituições de controle ou de coação, de vigilância discreta e de coerção insistente,
assegura a comunicação qualitativa e quantitativa dos castigos; coloca em série ou dispõe segundo ligações sutis as
pequenas e as grandes penas, as atenuações e os rigores, as más notas e as menores condenações. "Você ainda vai acabar
nos trabalhos forçados", pode dizer a menor das disciplinas; e a mais severa das prisões diz ao condenado à prisão
perpétua: "Vou tomar nota do menor desvio de seu comportamento". A generalidade da função punitiva que o século
XVIII procurava na técnica "ideológica" das representações e dos sinais tem agora por suporte a extensão, a armadura
material, complexa, dispersa, mas coerente, dos diversos dispositivos carcerários. Por isso mesmo, um certo significado
comum circula entre a primeira das irregularidades e o último dos crimes: não é mais a falta, não é mais tampouco o
ataque ao interesse comum, é o desvio e a anomalia; é a sombra que povoa a escola, o tribunal, o asilo ou a prisão.
Generaliza pelo lado do sentido a função que o carcerário generaliza pelo lado da tática. O adversário do soberano, depois
inimigo social, transformou-se em desviador, que traz consigo o perigo múltiplo da desordem, do crime, da loucura. A
rede carcerária acopla, segundo múltiplas relações, as duas séries, longas e múltiplas, do punitivo e do anormal.
2) O carcerário, com seus canais, permite o recrutamento dos grandes "delinquentes". Organiza o que se poderia
chamar as "carcereiras disciplinares" onde, sob o aspecto das exclusões e das rejeições, todo um trabalho de elaboração se
opera. Na época clássica, ficava aberto nos confins ou nos interstícios da sociedade o campo confuso, tolerante e perigoso
do "fora-da-lei", ou pelo menos do que escapava ao domínio direto do poder: espaço incerto que era para a criminalidade
um local de formação e região de refúgio; lá se encontravam, ao sabor do acaso, a pobreza, o desemprego, a inocência
perseguida, a esperteza, a luta contra os poderosos, a recusa das obrigações e das leis, o crime organizado; era o espaço da
aventura percorrido por Gil Blas, Sheppard ou Mandrin, cada um a seu modo. O século XIX, com o jogo das
diferenciações e das interligações disciplinares, construiu canais rigorosos que, na essência do sistema, adestram a
docilidade e fabricam a delinquência com os mesmos mecanismos. Houve uma espécie de "formação" disciplinar,
contínua e cerceadora, que tem um pouco de curso pedagógico, um pouco de canal profissional. Delineiam-se carreiras,
tão certas, tão fatais quanto as de função pública: asilos e associações de ajuda, prisões domiciliares, colónias
penitenciárias, batalhões de disciplina, cadeias, hospitais, asilos de velhos. Esses canais já eram bem conhecidos no século
XIX:
Nossos estabelecimentos de beneficência apresentam um conjunto admiravelmente coordenado por meio do qual o
indigente não permanece um momento sem ajuda do nascimento até o túmulo. Segui o infeliz: vê-lo-eis nascer no meio
das crianças enjeitadas; daí passa à creche, depois às salas de asilo; daí sai aos seis anos para entrar na escola primária e
mais tarde nas escolas de adultos. Se
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não pode trabalhar, é inscrito nos centros de beneficência de seu bairro, e, se ficar doente, pode escolher entre 12
hospitais... Enfim, quando o pobre de Paris chega ao fim de sua carreira, 7 asilos esperam sua velhice e muitas vezes seu
regime saudável prolongou dias inúteis até bem mais longe que os dos ricos.(10)
A rede carcerária não lança o elemento inassimilável num inferno confuso, ela não tem lado de fora. Toma por um
lado o que parece excluir por outro. Economiza tudo, inclusive o que sanciona. Não consente em perder nem o que
consentiu em desqualificar. Nesta sociedade panóptica, cuja defesa onipresente é o encarceramento, o delinquente não
está fora da lei; mas desde o início, dentro dela, na própria essência da lei ou pelo menos bem no meio desses mecanismos
que fazem passar insensivelmente da disciplina à lei, do desvio à infração. Se é verdade que a prisão sanciona a
delinquência, esta no essencial é fabricada num encarceramento e por um encarceramento que a prisão no fim de contas
continua por sua vez. A prisão é apenas a continuação natural, nada mais que um grau superior dessa hierarquia
percorrida passo a passo. O delinquente é um produto da instituição. Não admira, pois, que, numa proporção considerável,
a biografia dos condenados passe por todos esses mecanismos e estabelecimentos dos quais fingimos crer que se
destinavam a evitar a prisão. Que se encontre aí, se quisermos, o indício de um "temperamento" delinquente irredutível: o
recluso de Mende foi cuidadosamente produzido a partir da criança de casa de correção, segundo as linhas de força do
sistema carcerário generalizado. E inversamente o lirismo da marginalidade pode se encantar o quanto quiser com a
imagem do "fora-da-lei", grande nómade social que ronda nos confins da ordem, dócil e amedrontado. A criminalidade
não nasce nas margens e por efeito de exílios sucessivos, mas graças a inserções cada vez mais rigorosas, debaixo de
vigilâncias cada vez mais insistentes, por uma acumulação de coerções disciplinares. Em resumo, o arquipélago carcerário
realiza, nas profundezas do corpo social, a formação da delinquência a partir das ilegalidades sutis, o ressarcimento destas
por aquela e a implantação de uma criminalidade especificada.
3) Mas o efeito mais importante talvez do sistema carcerário e de sua extensão bem além da prisão legal é que ele
consegue tornar natural e legítimo o poder de punir, baixar pelo menos o limite de tolerância à penalidade. Tende a apagar
o que possa haver de exorbitante no exercício do castigo, fazendo funcionar um em relação ao outro os dois registros, em
que se divide: um, legal, da justiça, outro extralegal, da disciplina. Com efeito, a grande continuidade do sistema
carcerário por um lado e outro da lei e suas sentenças dá uma espécie de caução legal aos mecanismos disciplinares, às
decisões e às sanções que estes utilizam. De um extremo a outro dessa rede, que compreende tantas instituições
"regionais", relativamente autónomas e independentes, transmite-se, com a "forma-prisão", o modelo da grande justiça.
Os regulamentos das casas de disciplina podem reproduzir a lei; as sanções, imitar os veredictos e
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as penas; a vigilância, imitar o modelo policial; e acima de todos esses múltiplos estabelecimentos, a prisão que é em
relação a todos eles uma forma pura, sem mistura nem atenuação, lhes dá uma maneira de caução de Estado. O carcerário,
com toda sua gama de punições que se estende dos trabalhos forçados ou da reclusão criminal até aos enquadramentos
difusos e leves, comunica um tipo de poder que a lei valida e que a justiça usa como sua arma preferida. Como poderiam
parecer arbitrários as disciplinas e o poder que nelas funciona, se o que fazem é apenas acionar os mecanismos da própria
justiça, com o risco de diminuir-lhes a intensidade? Ou, se generalizam esses efeitos, se os transmitem até os últimos
níveis, é para evitar seus rigores? A continuidade carcerária e a difusão da forma-prisão permitem legalizar, ou em todo
caso legitimar, o poder disciplinar, que evita assim o que possa comportar de excesso ou de abuso.
Mas inversamente a pirâmide carcerária dá ao poder de infligir punições legais um contexto no qual este aparece
livre de qualquer excesso e violência. Na gradação sabiamente progressiva dos aparelhos de disciplina e dos "ajustes" que
eles supõem, a prisão não representa absolutamente o desencadear de um poder de outra natureza, mas apenas um grau
suplementar na intensidade de um mecanismo que não parou de funcionar desde as primeiras sanções. Entre a última das
instituições de "adestramento" onde a pessoa é recolhida para evitar a prisão, e a prisão aonde ela é enviada depois de uma
infração caracterizada, a diferença é mau e mal perceptível (e deve ser). Rigorosa economia que tem o efeito de tornar tão
discreto quanto possível o singular poder de punir. Nele nada mais lembra agora o antigo excesso do poder soberano
quando vingava sua autoridade sobre o corpo dos supliciados. A prisão continua, sobre aqueles que lhe são confiados, um
trabalho começado fora dela e exercido pela sociedade sobre cada um através de inúmeros mecanismos de disciplinas.
Graças ao continuum carcerário, a instância que condena se introduz entre todas as que controlam, transformam,
corrigem, melhoram. Na verdade, nada mais os distinguida realmente, não fora o caráter singularmente "perigoso" dos
delinquentes, a gravidade de seus desvios e a necessária solenidade do rito. Mas, em sua função, esse poder de punir não é
essencialmente diferente do de curar ou educar. Recebe destes e de sua tarefa menor e inferior uma garantia que vem de
baixo mas nem por isso menos importante, pois é o socorro da técnica e da racionalidade. O carcerário "naturaliza" o
poder legal de punir, como "legaliza" o poder técnico de disciplinar. Homogeneizando-os assim, apagando o que possa
haver de violento em um e de arbitrário no outro, atenuando os efeitos de revolta que ambos possam suscitar, tornando
conse-qüentemente inúteis sua exasperação e excesso, fazendo circular de um para o outro os mesmos métodos
calculados, mecânicos e discretos, o carcerário permite a realização daquela grande "economia" do poder, cuja fórmula o
século XVIII procurou, quando veio à tona o problema da acumulação e da gestão útil dos homens.
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A generalidade carcerária, funcionando em toda a amplitude do corpo social e misturando incessantemente a arte de
retificar com o direito de punir, baixa o nível a partir do qual se toma natural e aceitável ser punido. Muitas vezes se
pergunta como, antes e depois da Revolução, se deu um novo fundamento ao direito de punir. E sem dúvida é pelo lado
da teoria do contrato que se deve procurar a resposta. Mas deve-se também e talvez sobretudo fazer a pergunta contrária:
como se fez para que as pessoas aceitassem o poder de punir, ou simplesmente, sendo punidos, tolerassem sê-lo. A teoria
do contrato só pode responder a isto pela ficção de um sujeito jurídico que dá aos outros o poder de exercer sobre ele o
poder que ele próprio detém sobre eles. E bem provável que o grande continuum carcerário, que faz se relacionarem o
poder da disciplina e o da lei, e se estende, sem ruptura das menores coerções, até a grande detenção penal, tenha
constituído a dupla técnica real e imediatamente material daquela cessão quimérica do direito de punir.
4) Com essa nova economia do poder, o sistema carcerário, que é seu instrumento de base, encareceu uma nova
forma de 'lei": um misto de legalidade e natureza, de prescrição e constituição, a norma. Daí toda uma série de efeitos: o
deslocamento interno do poder judiciário ou ao menos de seu funcionamento; cada vez mais dificuldade de julgar, e uma
tal qual vergonha de condenar; um desejo furioso de parte dos juizes de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o normal
e o anormal; e a honra reivindicada de curar ou readaptar. Inútil creditar isso à consciência limpa ou pesada dos juizes,
nem mesmo a seu inconsciente. Seu imenso "apetite de medicina" que se manifesta sem cessar - desde seu apelo aos
peritos psiquiatras, até à atenção que dão ao falatório da criminologia - traduz o fato maior de que o poder que exercem
foi "desnaturado"; que a um certo nível ele é realmente regido pelas leis, que a outro, e mais fundamental, funciona como
poder normativo; é a economia do poder que exercem, e não a de seus escrúpulos ou humanismo, que os faz formular
veredictos "terapêuticos" e decidir por encarceramentos "readaptati-vos". Mas inversamente, se os juizes aceitarem cada
vez com mais dificuldade ter que condenar por condenar, a atividade de julgar se multiplicará na medida em que se
difundir o poder normalizador. Levado pela onipresença dos dispositivos de disciplina, apoiando-se em todas as
aparelhagens carcerárias, este poder se tornou uma das funções mais importantes de nossa sociedade. Nela há juizes da
normalidade em toda parte. Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do "assistente
social"-juiz; todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, aí submete o
corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos. Arede carcerária, em suas formas
concentradas ou disseminadas, com seus sistemas de inserção, distribuição, vigilância, observação, foi o grande apoio, na
sociedade moderna, do poder normalizador.
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5) A tessitura carcerária da sociedade realiza ao mesmo tempo as captações reais do corpo e sua perpétua
observação; é, por suas propriedades intrínsecas, o aparelho de punição mais de acordo com a nova economia do poder, e
o instrumento para a formação do saber que essa mesma economia tem necessidade. Seu funcionamento panóptico lhe
permite desempenhar esse duplo papel. Através de seus processos de fixação, repartição, registro, foi ele por muito tempo
uma das condições, a mais simples, a mais primitiva, a mais material também, mas talvez a mais indispensável, para que
se desenvolvesse essa imensa atividade de exame que objetivou o comportamento humano. Se entrarmos, depois da era da
justiça "inquisitória", na da justiça "examinatória", se, de uma maneira ainda mais geral, o procedimento do exame pôde
estender-se tão amplamente à sociedade toda, e dar lugar às ciências do homem, um dos grandes instrumentos disso foi a
multiplicidade e o entrecruzamento preciso dos diversos mecanismos de encarceramento. Não quer dizer que da prisão
saíram as ciências humanas. Mas se elas puderam se formar e provocar no êpistemê todos os efeitos de profunda alteração
que conhecemos, é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova de poder: uma certa política do corpo,
uma certa maneira de tornar dócil e útil a acumulação dos homens. Esta exigia a implicação de correlações definidas de
saber nas relações de poder: reclamava uma técnica para entrecruzar a sujeição e a objetivação: incluía novos
procedimentos de individualização. A rede carcerária constitui uma das armaduras desse poder-saber que tornou
historicamente possíveis as ciências humanas. O homem conhecível (alma, individualidade, consciência, comportamento,
aqui pouco importa) é o efeito-objeto desse investimento analítico, dessa dominação-observação.
6) Isto explica sem dúvida a extrema solidez da prisão, essa pequena invenção desacreditada desde o nascimento. Se
ela tivesse sido apenas um instrumento para eliminar ou esmagar a serviço de um aparelho estatal, teria sido mais fácil
modificar suas formas evidentes demais ou encontrar para ela um substituto mais aceitável. Mas enterrada como está no
meio de dispositivos e de estratégias de poder, ela pode opor a quem quisesse transformá-la uma grande força de inércia.
Um fato é característico: quando se pretende modificar o regime de encarceramento, as dificuldades não vêm só da
instituição judiciária; o que resiste não é a prisão-sanção penal, mas a prisão com todas as suas determinações, ligações e
efeitos extrajudiciários; é a prisão como recurso de recuperação na rede geral das disciplinas e das vigilâncias; a prisão, tal
como funciona num regime panóptico. O que não quer dizer que não possa ser modificada ou dispensável definitivamente
para um tipo de sociedade como a nossa. Podemos, ao contrário, situar os dois processos que na própria continuidade dos
processos que a fizeram funcionar são capazes de restringir conside-ravelmente seu uso e transformar seu funcionamento
interno. E eles já foram
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sem dúvida iniciados em grande escala. Um é o que diminui a utilidade (ou faz aumentar as desvantagens) de uma
delinquência organizada como uma ilegalidade específica, fechada e controlada; assim, com a constituição em escala
nacional ou internacional de grandes ilegalidades ligadas aos aparelhos políticos e económicos (ilegalidades financeiras,
serviços de informação, tráfico de armas e de droga, especulações imobiliária), é evidente que a mão-de-obra um pouco
rústica e manifesta da delinquência se mostra ineficiente: ou ainda, em escala mais restrita, a hierarquia arcaica da
prostituição perde grande parte de sua antiga utilidade, desde o momento em que previsões económicas sobre o prazer
sexual foram feitos de modo muito melhor pela venda de anticoncepcionais, ou através de publicações, filmes e
espetáculos. O outro processo é o crescimento das redes disciplinares, a multiplicação de seus intercâmbios com o
aparelho penal, os poderes cada vez mais amplos que lhe são dados, a transferência para eles cada vez maior de funções
judiciárias; ora, à medida que a medicina, a psicologia, a educação, a assistência, o "trabalho social" tomam uma parte
maior nos poderes de controle e de sanção, em compensação o aparelho penal poderá se medicalizar, se psicologizar, se
pedagogizar; e desse modo tornar-se menos útil a ligação que a prisão constituía quando, pela defasagem entre seu
discurso penitenciário e seu efeito de consolidação da delinquência, ela articulava o poder penal e o poder disciplinar. No
meio de todos esses dispositivos de normalização que se densificam, a especificidade da prisão e seu papel de junção
perdem parte de sua razão de ser.
Portanto, se há um desafio político global em torno da prisão, este não é saber se ela será não corretiva; se os juizes,
os psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poder que os administradores e guardas; na verdade ele está na
alternativa prisão ou algo diferente de prisão. O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de
normalização e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles trazem, através da colocação de novas objetividades.
Em 1836, um correspondente escrevia à La Phalange:
Moralistas, filósofos, legisladores, e todos os que gabais a civilização, aí tendes a planta de vossa cidade de Paris
bem ordenada: planta aperfeiçoada, onde todas as coisas semelhantes estão reunidas. No centro, e num primeiro círculo:
hospitais para todas as doenças, asilos para todas as misérias, hospícios, prisões, locais de trabalhos forçados de homens,
de mulheres e de crianças. Em torno do primeiro círculo, quartéis, tribunais, delegacias de polícia, moradia dos beleguins,
local dos cadafalsos, habitação do carrasco e de seus ajudantes. Nos quatro cantos, câmara dos deputados, câmara dos
pares, Instituto e Palácio do Rei. Fora, o que alimenta o círculo central, o comércio com suas fraudes e bancarrotas; a
indústria e suas lutas furiosas; a imprensa e seus sofismas; as casas de jogo; a prostituição, o povo que morre de fome ou
chafurda na orgia, sempre atento à voz do Génio das Revoluções; os ricos sem coração... enfim, a guerra encarniçada de
todos contra todos.(11)
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Termino aqui com este texto anónimo. Estamos agora muito longe do país dos suplícios, das rodas, dos patíbulos,
das forcas, dos pelourinhos; estamos muito longe também daquele sonho que, cinquenta anos antes, alimentavam os
reformadores: a cidade das punições, onde mil pequenos teatros levariam à cena constantemente a representação multicor
da justiça e onde os castigos cuidadosamente encenados sobre cadafalsos decorativos constituiriam a quermesse
permanente do Código. A cidade carcerária, com sua "geopolítica" imaginária, obedece a princípios totalmente diferentes.
O texto de La Phalange lembra alguns desses princípios mais importantes: que no coração da cidade e como que para
mante-la há, não o "centro do poder", não um núcleo de forças, mas uma rede múltipla de elementos diversos - muros,
espaço, instituição, regras, discursos; que o modelo da cidade carcerária não é então o corpo do rei, com os poderes que
dele emanam, nem tampouco a reunião contratual das vontades de onde nasceria um corpo ao mesmo tempo individual e
coletivo, mas uma repartição estratégica de elementos de diferentes naturezas e níveis. Que a prisão não é filha das leis
nem dos códigos, nem do aparelho judiciário; que não está subordinada ao tribunal como instrumento dócil e inadequado
das sentenças que aquele exara e dos efeitos que queria obter; que é o tribunal que, em relação a ela, é externo e
subordinado. Que, na posição central que ocupa, ela não está sozinha, mas ligada a toda uma série de outros dispositivos
"carcerários", aparentemente bem diversos - pois se destinam a aliviar, a curar, a socorrer - mas que tendem todos como
ela a exercer um poder de normalização. Que aquilo sobre o qual se aplicam esses dispositivos não são as transgressões
em relação a uma lei "central", mas em torno do aparelho de produção — o "comércio" e a "indústria" -, toda uma
multiplicidade de ilegalidades, com sua diversidade de natureza e de origem, seu papel específico no lucro, e o destino
diferente que lhes é dado pêlos mecanismos punitivos. E que finalmente o que preside a todos esses mecanismos não é o
funcionamento unitário de um aparelho ou de uma instituição, mas a necessidade de um combate e as regras de uma
estratégia. Que, conseqüentemente, as noções de instituição de repressão, de eliminação, de exclusão, de marginalização,
não são adequadas para descrever, no próprio centro da cidade carcerária, a formação das atenuações insidiosas, das
maldades pouco confessáveis, das pequenas espertezas, dos procedimentos calculados, das técnicas, das "ciências" enfim
que permitem a fabricação do indivíduo disciplinar. Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de
complexas relações de poder, corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de "encarceramento", objetos para
discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia, temos que ouvir o ronco surdo da batalha.(12)
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NOTAS
CAPÍTULO I
1. P. Rossi, Trité de droit penal, 1829, vol. III, p. 169.
2. Van Meenen, "Congresso penitenciário de Bruxelas", in Annales de Ia Charité, 1847, p. 529-530.
3. A. Duport, "Discurso à constituinte", in Archives parlementaires.
4. O jogo entre as duas "naturezas" da prisão ainda é constante. Há alguns dias o chefe da Nação lembrou o "princípio" de
que a detenção só devia ser uma "privação de liberdade" - a pura essência do encarceramento libertado da realidade da
prisão; e acrescentou que a prisão só se podia justificar por seus efeitos "corretivos" ou readaptadores.
5. Motifs du Code d'instruction criminelle, relatório de G.A. Real, p. 244.
6. Ibid., Relatório de Treilhard, p. 8-9. Nos anos anteriores, encontramos frequentemente o mesmo tema: "A pena de
detenção pronunciada pela lei tem principalmente por objeto corrigir os indivíduos, ou seja, torná-los melhores, preparálos,
com provas mais ou menos longas, para retomar seu lugar na sociedade sem tornar a abusar... Os meios mais seguros
de tornar melhores os indivíduos são o trabalho e a instrução". Esta consiste não só em aprender a ler e a calcular, mas
também em reconciliar os condenados "com as ideias de ordem, de moral, de respeito por si mesmos e pêlos outros"
(Beugnot, prefeito de Seine-Infé-rieure, portaria de Frimário, ano X). Nos relatórios pedidos por Chaptal aos conselhos
gerais, mais de uma dúzia pedem prisões onde se possa fazer os detentos trabalhar.
7. Os mais importantes foram sem dúvida os propostos por Ch. Lucas, Marquei Wasselot, Faucher, Bonneville, um pouco
mais tarde Ferrus. Deve-se ressaltar que a maior parte destes não eram filantropos, que criticavam do exterior a instituição
carcerária, mas que estavam ligados, de um modo ou de outro, ? administração das prisões. Técnicos oficiais.
8. Na Alemanha Julius dirigia os Jahrbücher für Strafs- und Besserungs Anstalten.
9. Se bem que esses jornais tenham sido principalmente órgãos de defesa dos prisioneiros por dívidas e que várias vezes
marcaram sua distância em relação aos delinquentes propriamente ditos, encontramos a afirmação de que "as colunas de
Pauvre Jacques não são absolutamente consagradas a uma única especialidade. A terrível lei da coação por corpo, sua
funesta aplicação não serão o único ponto atacado pelo prisioneiro jornalista... Pauvre Jacques levará a atenção dos
leitores aos locais de reclusão, de detenção, às cadeias, aos centros de refúgio, não manterá silêncio sobre os locais de
tortura onde o homem culpado é entregue aos suplícios, quando a lei só o condena aos trabalhos..." (Pauvre Jacques, ano
I, n° 7). Assim também a Gazette de Sainte-Pélagie milita por um sistema penitenciário que tivesse por finalidade a
"melhoria da espécie", sendo todo o resto "expressão de uma sociedade ainda bárbara" (21 mar. 1833).
10. L. Baltard, Architectonographie dês prisons, 1829.
11. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, 1838, vol. II, p. 123-124.
12. A. de Tocqueville, Rapport à Ia Chambre dês Deputes, citado in Beaumont e Tocqueville, Lê Système pénitcntiaire
aux Etats-unis, 3a ed. 1845, p. 392-393.
13. E. de Beaumont e A. de Tocqueville, Ibid., p. 109.
14. S. Aylies, Dusystème pénitentiaire, 1837, p. 132-133.
15. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, t. I, 1836, p. 167.
16. A discussão aberta na França por volta de 1830 não estava encerrada em 1850; Charles Lucas, partidário de Auburn,
inspirara a portaria de 1839 sobre o regime das Centrais (trabalho em comum e silêncio)
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absoluto). A vaga de revolta que se segue e talvez a agitação geral no país durante os anos 1842-1843 fazem que seja
preferido em 1844 o regime pensilvaniano do isolamento absoluto, gabado por Demetz, Blouet, Tocqueville. Mas o 3°
congresso penitenciário em 1847 opta contra esse método.
17. K. Mittermaier, in Revue française et étrangère de législation, 1836.
18. A.E. de Gasparin, Rapport au ministre de 1'Intérieur sur Ia reforme dês prisons.
19. E. de Beaumont e A. de Tocqueville, Du système penal aux Etats-Unis, ed. de 1945, p. 112.
20. "Cada homem, dizia Fox, é iluminado pela luz divina e eu a vi brilhar através de cada homem". Nesta linha dos
quakers e de Walnut Street é que foram organizadas a partir de 1820 as prisões de Pensilvânia, Pitsburgo, depois Cherry
Hill.
21. Journal dês economistas, vol. II, 1842.
22. Abel Blouet, Projet dês prisons cellulaires, 1843.
23. Abbé Petigny, Allocution adressée aux prisonniers, à l'occasion de 1'inauguration dês bâtiments cellulaires de Ia
prison de Versailles. Cf. alguns anos mais tarde, em Monte-Cristo, uma versão muito claramente cristológica da
ressurreição depois do encarceramento; mas então se trata, não de aprender na prisão a docilidade às leis, mas de adquirir
por um saber secreto o poder de fazer justiça além da injustiça dos magistrados.
24. N.H. Julius, Leçonssurles prisons, trad. francesa, 1831, t. I, p. 417-418.
25. G.A. Real, Motifs du Code dMnstruction criminelle. Antes disso, várias instruções do Ministério do Interior haviam
lembrado a necessidade de fazer trabalhar os detentos: 5 Frutidor ano VI, 3 Messidor ano VIII, 8 Pluvioso e 28 Ventoso
ano IX, 7 Brumário ano X. Logo depois dos códigos de 1808 e de 1810, encontramos ainda novas instruções: 20 de
outubro de 1811, 8 de dezembro de 1812: ou ainda a longa Instrução de 1816: "É da maior importância ocupar o mais
possível os detentos. Deve-se fazer nascer neles o desejo de trabalhar, diferenciando o destino dos que se ocupam e dos
detentos que querem permanecer ociosos. Os primeiros serão mais bem nutridos, mais bem acomodados que os
segundos". Melun e Clairvaux foram muito cedo organizados em grandes oficinas.
26. J.J. Marquei Wasselot, t. III, p. 171.
27. Cf. abaixo, p. 251.
28. Cf. J.P. Aguei, Lês Greves sous Ia monarchie de Juillet, 1954, p. 30-31.
29. L'Atelier, 30° ano, n° 4, dez. 1842.
30. Ibid., 6° ano, n° 2, nov. 1845. 31.1bid.
32. L'Atelier, 4° ano, n° 9, jun. 1844 e 5° ano, n° 7, abr. 1845; cf. também na mesma época La Démocratie pacifique.
33. L'Atelier, 5° ano, n° 6, mar. 1845.
34. Bérenger, Rapport à 1'Académie dês sciences morales, junho de 1836.
35. E. Danjou, Dês prisons, 1821, p. 180.
36. L. Faucher, De Ia reforme dês prisons, 1838, p. 64. Na Inglaterra, o tred-mill e a bomba realizariam uma mecanização
disciplinar dos detentos, sem nenhum efeito produtivo.
37. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 313-314.
38. Ibid., p. 243.
39. E. Danjou, Dês prisons, 1821, p. 210-211; cf. também L'Atelier, 6° ano, n° 2, nov. 1845.
40. Ch. Lucas, op. cit. Um terço do salário diário era posto de lado para a saída do detento.
41. E. Ducpétiaux, Du système de I'empresionnement cellulaire, 1857, p. 30-31.
42. Compare-se com o seguinte texto de Faucher: "Entrai numa fábrica de tecidos; ouvi as conversas dos operários e o
ruído das máquinas. Haverá no mundo um contraste mais aflitivo que a regularidade e a
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previsão desses movimentos mecânicos, comparados com a desordem de ideias e de costumes produzida pelo contato de
tantos homens, mulheres e crianças"? De Ia reforme dês prisons, 1838, p. 20.
43. A. Bonneville, Dês libérations préparatoires, 1846, p. 6. Bonneville propunha medidas de "liberdade preparatória",
mas também de "suplemento de sofrimento" ou de aumento penitenciário se se evidencia que "a prescrição penal, fixada
aproximadamente de acordo com o grau provável de endurecimento do delinquente, não foi suficiente para produzir o
efeito esperado". Esse suplemento não devia ultrapassar um oitavo da pena; a liberdade preparatória podia intervir depois
de três quartos da pena (Traité dês diverses instructions complémcntaires, p. 251 s).
44. Ch. Lucas, citado na Gazette dês tribunaux, 6 de abril de 1837.
45. In Gazette dcs tribunaux. Cf. também Marquei-Wasselot, La Ville du refuge, 1832, p. 64-76. Ch. Lucas anota que os
contraventores "são geralmente recrutados nas populações urbanas" e "as moralidades reclusionárias provêm geralmente
das populações agrícolas". De Ia reforme dês prisons, vol. I, 1836, p. 46-50.
46. R. Fresnel, Considérations sur lês maisons de refuge, Paris, 1829, p. 29-31.
47. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 440.
48. L. Duras, Artigo publicado no Lê Progressif e citado por La Phalange, 1° dez. 1838.
49. Ch. Lucas, Ibid., p. 441-442.
50. A. Bonneville, Dês libérations préparatoires, 1846, p. 5.
51. A. Bérenger, Rapport à PAcadémie dês sciences morales et politiques, jun. 1836.
52. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 418-422.
53. E. Decaz.es, Rapport au Rói sur lês prisons, Lê Moniteur, 11 abr. 1819.
54. Vivien, in G. Ferrus, Dês prisonniers, 1850, p. VIII. Uma ordenação de 1847 criara as comissões de vigilância.
55. Léon Faucher, De Ia reforme dês prisons, 1838, p. 6.
56. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. I, 1836, p. 69.
57. "Se quisermos tratar a questão administrativa abstraindo a de construção, expomo-nos a estabelecer princípios a que
não corresponde a realidade; enquanto que, com o suficiente conhecimento das necessidades administrativas, um arquiteto
pode muito bem admitir esse ou aquele sistema de encarce-ramenlo que a teoria talvez houvesse colocado entre as
utopias" (Abel Blouet, Projet de prison cellulaire, 1843, p. 1).
58. L. Baltard, Architectonographie dês prisons, 1829, p. 4-5.
59. "Os ingleses trazem em Iodas as suas obras o génio da mecânica... e quiseram que seus edifícios funcionassem com
uma máquina submelida à ação de um único motor". Ibid., p. 18.
60. N.P. Harou-Romain, Projet de pénitencier, 1840, p. 8.
61. V. ilustrações nos 18-26.
62. Ducatel, Instruction pour Ia construction dês maisons d'arrêt, p. 9.
63. E. Ducpétiaux, Du système de Pemprisonnement cellulaire, 1847, p. 56-57.
64. Cf. por exemplo G. de Gregory, Projet de Code penal universel, 1832, p. 199s; Grellet-Wammy, Manuel dês prisons,
1839, vol. II, p. 23-25 e 199-203.
65. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 449-450.
66. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 440-442.
67. Seria necessário estudar como a prática da biografia se difundiu a partir da constituição do indivíduo delinquente nos
mecanismos punitivos; biografia ou autobiografia de prisioneiros em Appert; estabelecimento de dossiês biográficos
sobre o modelo psiquiátrico; utilização da biografia na defesa dos acusados. Sobre esse último ponto poderíamos
comparar as grandes memórias justificalivas do fim do
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século XVIII para os três homens condenados à roda, ou para Jeanne Salmon - e as defesas criminais, da época de Luís
Filipe. Chaix d'Est-Age defendia La roncière: "Se muito tempo antes do crime, muito tempo antes da acusação, podeis
escrutar a vida do acusado, penetrar em seu coração, sondar seu âmago mais escondido, pôr a descoberto todos os seus
pensamentos, sua alma inteira..." (Discours et Plaidoyers, vol. II, p. 166).
68. J.J. Marquet-Wasselot, L'Ethmographie dês prisons, 1841, p. 9.
69. G. Ferrus, Dês prisonniers, 1850, p. 182s e 278s.
CAPÍTULO II
1. Faucher notava que a cadeia era um espetáculo popular "principalmente depois que se haviam quase suprimido os
cadafalsos".
2. Revue de Paris, 7jun. 1836. Essa parte do espetáculo em 1836 não era mais pública; só alguns espectadores
privilegiados eram admitidos a ela. O relato da ferração que se encontra na Revue de Paris é exatamente de acordo - às
vezes com as mesmas palavras - com o de Dernicr jour d'um condamné, 1829.
3. Gazette dês tribunaux, 20 jul. 1836.
4. Ibid.
5. LaPhalange, l°ago. 1836.
6. A Gazette dês tribunaux publica regularmente essas listas e notas "criminais". Exemplo de descrição para se reconhecer
bem Delacollonge: "Calças de sarja, velhas, cobrindo um par de botas, um boné do mesmo tecido com viseira e uma blusa
cinza... casaco de sarja azul" (6jun. 1836). Mais tarde, resolvem disfaçar Delacollonge para fazê-lo escapar das violências
da multidão. A Gazette dês tribunaux descreve logo o disfarce: "Calças listradas, blusa de tela azul, chapéu de palha" (20
jul.).
7. Revue de Paris, jun. 1836. Cf. Claude Gueux: "Apalpai todos esses crânios; cada um desses homens caídos tem por
baixo seu tipo bestial... Eis o lobo, eis o gato, eis o macaco, eís o abutre, eis a hiena".
8. La Phalange, 1° ago. 1836.
9. Revue de Paris, 7 jun. 1836. Segundo a Gazette dês tribunaux, o capitão Thorez, que comandava a cadeia de 19 de
julho, quis mandar retirar esses enfeites: "É inconveniente que, indo para os trabalhos forçados expiar vossos crimes,
levais a afronta ao ponto de enfeitar a cabeça, como se fosse para vós um dia de núpcias".
10. Revue de Paris, 7 jun. 1836. Nessa data, a cadeia fora encurtada para impedir a farândola, e os soldados encarregados
de manter a ordem até à partida da cadeia. O sabá dos forçados é descrito no Dernier jour d'um condamné. "A sociedade
lá estava, representada pêlos carcereiros e curiosos apavorados, enquanto o crime zombava dela um pouco, fazendo desse
tremendo castigo uma festa de família".
11. Uma canção do mesmo género é citada pela Gazette dês tribunaux de 10 abr. 1836. Era cantada com a melodia da
"Marselhesa". O canto da guerra patriótica nela se torna claramente o canto da guerra social: "Que quer de nós esse povo
imbecil, vem insultar a desgraça? Vê-nos com um olhar tranquilo. Nossos carrascos não o horrorizam".
12. Há uma classe de escritores que "se dedicou a colocar malfeitores dotados de espontosa habilidade na glorificação do
crime, que os faz desempenhar o papel principal e entrega os agentes da autoridade a suas piadas, ironias e sua zombaria
mal disfarçada. Quem tiver visto representar Auberge dês Adrets ou Robert Macaire, drama famoso no meio do povo,
reconhecerá facilmente a justeza de minhas observações. É o triunfo, é a apoteose da audácia e do crime. A gente honesta
e a polícia são totalmente mistificadas" (H.A. Fregier, Lês classes dangereuses, 1840, vol. II, p. 187-188).
13. Lê dernier jour d'um condamné.
14. Gazette dês tribunaux, 19 jul. 1836.
15. Gazette dês tribunaux, 15 jun. 1837.
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16. Gazettedes tribunaux, 23 jul. 1837. A 9 de agosto, a Gazette conta que a carruagem virou nos arredores de Guingamp:
em vez de se amotinar, os prisioneiros "ajudaram os guardas a erguer o veículo comum". A 30 de outubro, entretanto, ela
indica uma evasão em Valence.
17. La Fraternité, n° 10, fev. 1842.
18. Número citado por G. de Ia Rochefoucauld durante a discussão sobre a reforma do Código Penal, 2 dez. 1831,
Archives parlementaires, t. LXXII, p. 209-210.
19. E. Ducpétiaux, De Ia reforme pénitentiaire, 1837, t. Ill, p. 276s.
20. E. Ducpétiaux, Ibid.
21. G. Ferrus, Dês prisonniers, 1850, p. 363-367.
22. E. de Beaumont e A. de Tocqueville, Note sur lê système pénitentiaire, 1831, p. 22-23.
23. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. I, 1836, p. 127 e 130.
24. F. Bigot Préameneu, Rapport au conseil general de Ia société dês prisons, 1819.
25. La Fraternité, mar. 1842.
26. Texto dirigido a L'Atelier, out. 1842, 3° ano, n° 3, por um operário preso por conluio. Ele pôde anotar esse protesto a
uma época em que o mesmo jornal fazia campanha contra a concorrência do trabalho penal. No mesmo número, outra
carta de outro operário sobre o mesmo assunto. Cf. também La Fraternité, mar. 1842, l°ano, n° 10.
27. L. Moreau-Christophe, De Ia mortalité et de Ia folie dans lê regime pénitentiaire, 1839, p. 7.
28. UAlmanach populaire de Ia France, 1839, assinado D., p. 49-56.
29. F. de Barbe Marbois, Rapport sur 1'état dês prisons du Calvados, de 1'Eure, Ia Manche et Ia Seine Inférieure, 1823, p.
17.
30. Gazette dês tribunaux, 3 dez. 1829. Cf. no mesmo sentido Gazette dês tribunaux, 19 jul. 1839; a Ruche populaire, ago.
1840, La Fraternité, jul.-ago. 1847.
31. Charles Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 64.
32. Essa campanha foi muito viva antes e depois da nova regulamentação das centrais em 1839. Regulamentação severa
(silêncio, supressão do vinho e do fumo, diminuição da cantina) que foi seguida por revoltas. Lê Moniteur, 3 out. 1840:
"Era escandaloso ver os detentos se fartarem de vinho, de carne, de caça, de guloseimas de todo tipo e tomar a prisão por
um hotel confortável onde lhes eram proporcionadas todas as comodidades que muitas vezes o estado de liberdade lhes
recusava".
33. Em 1826, muitos conselhos gerais pedem que a deportação substitua um encarceramento constante e sem eficácia. Em
1842, o Conselho Geral dos Hautes-Alpes pede que as prisões se tornem "verdadeiramente expiatórias"; no mesmo
sentido, o de Drôme, de Eure-et-Loir, de Nièvre, de Rhône e de Seine-et-Oise.
34. Segundo uma pesquisa feita em 1839 junto aos diretores de prisões centrais. Diretor de Embrun: "O excesso de bemestar
nas prisões provavelmente contribui muito para o aumento assustador das reincidências". Eysses: "O regime atual
não é suficientemente severo, e, se uma coisa é certa, é que para muitos detentos a prisão tem encantos e eles nela
encontram gozos depravados que são tudo para eles". Limoges: "O regime atual das casas centrais que na realidade não
passam, para os reincidentes, de verdadeiros pensionatos, não é absolutamente repressivo" (cf. L. Moreau-Christophie,
Polemiques pénitcntiaires, 1840, p. 86). Comparar com as declarações feitas em julho de 1874 pêlos responsáveis pêlos
sindicatos de administração penitenciária, a respeito dos efeitos da liberalização na prisão.
35. Cf. supra, p. 77s.
36. Ch. Comte, Traité de législation, 1843, p. 49.
37. H. Lauvergne, Lês Forçais, 1841, p. 337.
38. E. Buré, De Ia misère dês classes laborieuses en Angleterre et en France, 1840, vol. II, p. 391.
39. P. Rossi, Traité de droit penal, 1829, vol. I, p. 32.
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40. Ch. Lucas, De Ia reforme dês prisons, vol. II, 1838, p. 82.
41. P. Rossi, Loc. Cit., p. 33.
42. Cf. E.J. Hobsbawm, Lês Bandits, tradução francesa 1972.
43. Sobre o problema da deportação, cf. F. de Barbé-Marbois (Observations sur lês votes de 41 conseils généraux) e a
discussão entre Blosseville e La Pilorgerie (a respeito de Botany Bay). Buré, o coronel Marengo e L. de Carne, entre
outros, fizeram projetos de colonização da Argélia com delinquentes.
44. Um dos primeiros episódios foi a organização sob controle da polícia das casas de tolerância (1823), o que
ultrapassava largamente as disposições da lei de 14 de julho de 1791 sobre a fiscalização nas casas de prostituição. Cf.
sobre esse ponto os registros manuscritos da Delegacia de Polícia (20-26). Particularmente esta circular do delegado de
polícia, de 14 de junho de 1823: "O estabelecimento das casas de prostituição deveria naturalmente dessagradar a
qualquer homem que se interesse pela moralidade pública; não me espanta absolutamente que os Srs. Comissários de
Polícia se oponham com todas as suas forças ao estabelecimento dessas casas em seus diversos bairros... A polícia
acreditaria ter cuidado bastante bem da ordem pública, se conseguisse fechar a prostituição em casas toleradas sobre as
quais sua ação pode ser constante e uniforme e não pudessem escapar à fiscalização".
45. O livro de Parent-Duchatelet sobre a prostituição em Paris (Prostitution à Paris, 1836) pode ser lido como testemunha
dessa ramificação, patrocinada pela polícia e pelas instituições penais, do meio delinquente sobre a prostituição. O caso da
Máfia italiana transplantada para os Estados Unidos e utilizada em conjunto para a obtenção de lucros ilícitos e fins
políticos é um belo exemplo da colonização de uma ilegalidade de origem popular.
46. Sobre esse papel dos delinquentes na vigilância policial e principalmente política, cf. a memória redigida por Lemaire.
Os "denunciantes" são gente que "espera indulgências"; são "geralmente maus elementos que servem para descobrir os
que o são mais. Além disso, o simples fato de alguém ser incluído uma só vez no registro da polícia, desde esse momento
não é mais perdido de vista".
47. K. Marx, Lê 18-Brumaire de Louis-Napoléon Bonaparte, Ed. Sociales, 1969, p. 76-78.
48. A. Bonneville, Dês institutions complémentaires du système pénitencier, 1847, p. 397-399.
49. Cf. H.A. Fregier, Lês classes dangereuses, 1840, vol. I, p. 142-148.
50. A. Bonneville, De Ia recidive, 1844, p. 92-93. Aparecimento da ficha e constituição das ciências humanas: mais uma
invenção pouco celebrada pêlos historiadores.
51. Da resistência dos magistrados a participarem desse funcionamento temos testemunhos muito precoces, desde a
Restauração (o que prova bem que não é um fenómeno, nem uma reação tardia). Particularmente a liquidação ou antes a
reutilização da polícia napoleônica trouxe problemas. Mas as dificuldades se prolongaram. Cf. o discurso com o qual
Beleyme em 1825 inicia suas funções e procura se diferenciar de seus predecessores: "As vias legais estão abertas para
nós... Educado na escola das leis, instruído na escola de uma magistratura tão digna... somos os auxiliares da justiça" (cf.
Histoire de TAdministration de M. de Belleyme); ver também o panfleto muito interessante de Molène, De Ia liberte.
52. Ver tanto suas Mémoires, publicadas em seu nome, quanto a Histoire de Vidocq racontée par lui-mêne.
53. A acusação é formalmente retomada por Canler, Mémoires (reeditadas em 1968), p. 15.
54. Sobre o que Lacenaire poderia ter sido, segundo seus contemporâneos, ver o dossiê feito por M. Lebaily em sua
edição das Mémoires de Lacenaire, 1968, p. 297-304.
55. Foi a ronda dos anos 1835-1836: Fieschi, que se incluía na pena comum aos parricidas e regicidas, foi uma das razões
por que Rivière, o parricida, fosse condenado à morte apesar de uma memória cujo caráter espantoso foi sem dúvida
abafado pelo brilho de Lacenaire, de seu processo e de seus escritos publicados graças ao chefe da segurança (não sem
certas censuras), no começo de 1836, alguns meses antes de seu cúmplice François ir dar, com a cadeia de Brest, um dos
últimos grandes espetáculos ao ar livre do crime. Ronda das ilegalidades e das delinqiiências, ronda dos discursos do
crime e sobre o crime.
56. No fim do século XVIII, Colquhoum dá ideia da dificuldade da tarefa para uma cidade como Londres. Traité de Ia
police de Londres, traduzido para o francês 1807, vol. I, p. 32-34; 299-300.
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57. "Nenhuma outra classe está sujeita a uma vigilância deste género; é exercida quase da mesma maneira que a dos
condenados libertados; parece colocar os operários na categoria que se chama agora a classe perigosa da sociedade"
( L'Atelier, 5° ano, n° 6, mar. 1845, a respeito da caderneta).
58. Cf. por exemplo J.B. Monfalcon, Histoire dês insurrections de Lyon, 1834, p. 142.
59. Cf. L'Atelier, outubro de 1840, ou ainda La Fraternité, julho-agosto de 1847.
60. Fora a Gazette dês tribunaux e o Courrier dês tribunaux, o Journal dês concierges.
61. Cf. L'Atelier, julho de 1844. Petição à Câmara de Paris para que os detentos sejam encarregados dos "trabalhos
insalubres e perigosos"; em abril de 1845 o jornal cita a experiência da Bretanha onde um número bem grande de
condenados militares morreu de febre ao fazer trabalhos de canalização. Em novembro de 1845 porque os prisioneiros
não trabalham com mercúrio ou com alvaiade?... Cf. igualmente a Démocratie politique dos anos 1844-1845.
62. Em L'Atelier, de novembro de 1843, um ataque contra os Mystèrcs de Paris porque exaltam demais os delinquentes,
seu pitoresco, seu vocabulário, e porque é sublinhado demais o caráter fatal da inclinação para o crime. Na Ruche
populaire encontramos ataques do mesmo tipo a respeito do teatro.
63. Délinquance et systcme pénitentiaire de France au XIXe siècle (texto inédito).
64. L'Humanitaire, ago. 1841.
65. La Fraternité, nov. 1845.
66. La Ruche populaire, nov. 1842.
67. Cf. em La Ruche populaire (dez. 1839) uma réplica de Vinçard a um artigo de Balzac no Lê Siècle. Balzac dizia que
uma acusação de roubo devia ser levada com prudência e discrição quando se tratasse de um rico, cuja menor
desonestidade é imediatamente conhecida: "Diga, senhor, com a mão na consciência, se não acontece o contrário todos os
dias, se, com uma grande fortuna e uma posição elevada no mundo, não se encontram mil soluções, mil maneiras de
abafar um caso desagradável".
68. La Fraternité, nov. 1841.
69. Almanach populaire de Ia France, 1839, p. 50.
70. Pauvre Jacques, 1° ano, n° 3.
71. Em Fraternité, mar. 1847, fala-se do caso Drouillard e alusivamente dos roubos na administração da marinha em
Rochefort. Em junho de 1847, artigo sobre o processo Boulmy e sobre o caso Cubière-Pel-laprat; em julho-agosto de
1847, sobre o caso de peculato Benier-Lagrange-Jussieu.
72. LaPhalange, lOjan. 1837.
73. "A prostituição patente, o furto material direto, o roubo, o assassinato, o banditismo para as classes inferiores;
enquanto que os esbulhos hábeis, o roubo indireto e refinado, a exploração bem feita do gado humano, as traições de alta
tática, as espertezas transcendentes, enfim todos os vícios e crimes realmente lucrativos e elegantes, em que a lei está alta
demais para atingi-los, se mantêm monopólio das classes superiores" (1° dez. 1838).
74. La Phalange, l dez. 1838.
75. La Phalange, lOjan. 1837.
76. Ibid.
77. Cf. por exemplo o que diz La Phalange de Delacollonge, ou de Elirabide, 1° de agosto de 1836 e 2 out. 1840.
78. La Gazette dês tribunaux, ago. 1840.
79. La Phalange, 15 ago. 1840.
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CAPÍTULO III
1. E. Ducpétiaux, De Ia condition physique et morale dês jeunes ouvriers, t. II, p. 383.
2. Ibid., p. 377.
3. "Tudo o que contribui para cansar contribui para afastai' os maus pensamentos; assim cuidamos que os jogos se
componham de exercícios violentos. À noite, eles adormecem no mesmo instante em que se deitam" (Ibid., p. 375-376.
Cf. figura n° 27).
4. E. Ducpétiaux, Dês colonies agricoles, 1851, p. 61.
5. G. Ferrus, Dês prisonniers, 1850.
6. Haveria todo um estudo a ser feito sobre os debates que houve sob a Revolução a respeito dos tribunais de família, da
correção paterna e do direito dos pais de mandar prender os filhos.
7. Sobre todas estas instituições, cf. H. Gaillac, Lês Maisons de correction, 1971, p. 99-107.
8. Cf. por exemplo a respeito das habitações operárias construídas em Lille, em meados do século XIX: "A limpeza está
na ordem do dia. É a alma do regulamento. Algumas disposições severas contra os que fazem barulho, os bêbados, as
desordens de qualquer natureza. Uma falta grave acarreta exclusão. Levados a hábitos regulares de ordem e de economia,
os operários não desertam mais na segunda-feira... As crianças mais bem vigiadas não são mais razão de escândalo... São
distribuídos prémios pelo cuidado da casa, por bom comportamento, pêlos gestos de dedicação e cada ano concorrem em
grande número a esses prémios". Houzé de 1'Aulnay, Dês longements ouvriers à Lille, 1863, p. 13-15.
9. Encontramo-la explicitamente formulada por certos juristas como Muyart de Vouglans, Réfutation dês príncipes
hasardés dans lê traité dês délits et dês peines, 1767, p. 108. Lês lois criminelles de Ia France, 1780, p. 3; ou como
Rousseaud de Ia Combe, Traité dês matières criminelles, 1741, p. 1-2.
10. Moreau de Jonnès, citado in H. du Touquei, De Ia condition dês classes pauvres (1846).
11.LaPhalange, lOago. 1836.
12. Interrompo aqui este livro que deve servir como pano de fundo histórico para diversos estudos sobre o poder de
normalização e sobre a formação do saber na sociedade moderna.
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